A liberdade de escolha e o encalço populista: Desordem informativa e ameaças à democracia

3 de agosto de 2022

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I. INTRODUÇÃO

Estudos antropológicos indicam que a participação em eleições propicia, a um nível subconsciente, a satisfação de uma necessidade básica da espécie humana, haja vista que a passagem pelas urnas implica a reafirmação de um “sentimento de pertença” (ANDRADE SÁNCHEZ, 2013, p. 194), relacionado, em primeira mão, com a comunidade nacional e, secundariamente, com subgrupos formados por indivíduos com identidade de pensamento. A exemplo do que ocorre com outros ritos cerimoniais, como os de índole religiosa e, inclusive, futebolística (HARARI, 2018, p. 299), os processos eleitorais animam um estado de “efervescência coletiva” (GIDDENS; SUTTON, 2015, p. 63), a partir do qual importantes vínculos sociais podem ser criados e/ou fortalecidos.

É por aí que esse texto de cunho exclusivamente acadêmico propõe um diálogo, tomando por base interlocuções levadas a efeito pelos coautores em ambiência de debates sobre processos eleitorais, qualidade da democracia e ameaças ao Estado de Direito democrático.

É evidente que, em virtude de seu caráter concorrencial, os processos eleitorais estimulam, momentaneamente, um debate social coberto de antagonismos, uma vez que a escolha materializada nas urnas implica uma discussão prévia mais ou menos acalorada acerca dos méritos e deméritos dos candidatos, partidos e propostas em liça. Sem embargo, desde uma perspectiva histórica e funcional, em condições normais os pleitos estimulam a harmonia a longo prazo e, consequentemente, a estabilidade do governo representativo, na medida em que logram equacionar os conflitos políticos na esteira de um método justo e racional, substitutivo de todas as formas de violência[1].

Dado o fato inexorável de que, em sociedades pluralistas, revela-se impossível o encontro de uma concepção unívoca de progresso e justiça, as eleições solucionam o impasse relativo à concretização do princípio do autogoverno, tendo em tela que ofertam “um marco dentro do qual pessoas de certo modo iguais e até certo ponto livres podem lutar em paz para melhorar o mundo de acordo com suas diferentes visões, valores e interesses” (PRZEWORSKI, 2019, p. 21).

A perpetuação dos regimes democráticos, todavia, reclama que o infactível consenso de fundo seja substituído por um sólido acordo pro forma. O respeito geral pelas instituições eleitorais – e sua consequente apreciação como únicométodo capaz de estabilizar o conflito ínsito ao choque de interesses discordes – constitui uma exigência fulcral para que o progresso comum seja perseguido em contato com a vontade social e à margem da opressão das liberdadespúblicas e do belicismo. Fora do marco eleitoral a democracia falece; o governo do povo queda convertido, como alude Sartori (2009, p. 21 e 69), em um governo sobre o povo, que, em última instância, perde o “direito de querer” e, nesse passo, deixa de ser apreciado como “’digno de ser livre’, de escolher individualmente e de não estar sujeito a que outros escolham por ele” (COLOMBO, 2012, p. 37).

O reforço de laços potencialmente caucionado pela técnica eletiva, sem embargo, encontra-se, no contexto nacional, continuamente desafiado pela retórica cáustica do populismo autoritário, traduzida em combustível para a desinformação. Nesse diapasão, divisa-se no horizonte político uma série insistente e concertada de ataques que, em seu conjunto, denotam um desígnio indisfarçado, tendente à exclusão do pensamento divergente, ao enfraquecimento dos mecanismos de monitoramento social e do sistema de checks and balances e, mais especificamente, à animação do radicalismo e ao descredenciamento das eleições como termômetro acurado da arbitragem social.

Em paralelo com a defesa inflamada de um novo método de votação, havido por um conjunto quase unânime de especialistas como pernicioso, antieconômico e ineficaz, o assédio discursivo engloba referências diretas a um eventual boicote às eleições de 2022, cujas justificativas, que variam ao sabor do vento, impulsionam uma metanarrativa baseada em acusações de fraudes vazias de provas e levantamento de suspeitas sem um mínimo respaldo na realidade.

Uma vez que a retórica da fraude esbarra no robusto capital de integridade gradativamente acumulado pelas eleições brasileiras, o processo de mobilização da opinião pública resulta deslocado, sem surpresa, para o terreno da desinformação. A chave para a preservação da experiência democrática, nessa quadra, vê-se questionada por atores interessados que almejam sequestrar o poder estabelecendo um “regime de inverdade consensual”, fundado num “acordo sobre a mentira” (TIBURI, 2017, p. 110) que, como fruto da pós-verdade, assume ares de um “pré-fascismo” (SNYDER, 2017).

Dentro dessa paisagem, a máquina de erosão da confiança manobra a matriz discursiva para gerar torrentes de ruído contínuo, em ordem a criar câmaras de eco movidas por uma “eletricidade sentimental” (INNERARITY, 2017, p. 110) e que relativizam, perante a cidadania, o valor fundamental dos consensos mínimos, buscando naturalizar, moto continuo, um eventual descarte da consulta popular, o que, para todos os efeitos, selaria a demissão sumária da liberdade de escolha popular e, consequentemente, a instauração tout court de um regime de exceção.

Tendo em consideração a aludida perspectiva, enunciadora daquilo que, em associação com a pandemia, remata o tétrico mosaico das tragédias do agora, o presente artigo suscita uma defesa racional da engenharia eletiva, explorando, como razões auxiliares, a franca nocividade dos sermões populistas que embalam “ameaças verbais à democracia” (SINGER; ARAÚJO; BELINELLI, 2021, p. 225), assim como os riscos associados à desinformação e à descontinuidade do regime constitucional.

II. A SÍNDROME POPULISTA

Levitsky e Ziblatt (2018) afirmam que tendemos a pensar na morte de democracias pelas mãos de homens armados, num ato explícito de rapina política. Lembram, porém, que há maneiras menos dramáticas de arruinar uma democracia, ainda igualmente destrutivas. Democracias podem morrer não por uma ação orquestrada de forças, mas pelas mãos “de líderes eleitos – presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. (…) Autocratas eleitos mantêm um verniz de democracia enquanto corroem a sua essência”[2].

Cientistas políticos têm afirmado que “a palavra ‘populismo’ está na moda” (MUDDE; KALTWASSER, 2019); que “estamos vivendo em tempos populistas” (MOFFITT, 2016); que “o populismo revoluciona a política do Século XXI” (ROSANVALLON, 2020); que “entramos em uma era de ‘contágio’ populista” (TORMEY, 2019); que vivemos um zeitgeist populista (MUDDE, 2004) ou, de forma mais aberta, que “existe um amplo consenso de que há uma ‘crise de representação’” (TORMEY, 2015), na esteira da qual o descontentamento avulta como o ingrediente principal de uma “sopa primitiva” (CABALLERO, 2021, p. 13). Vozes importantes assentam, inclusive, que o populismo emerge hoje como “uma ideologia enraizada em correntes duradouras e profundas” (EATWELL; GOODWIN, 2020, p. 9), que encoraja a hostilidade intergrupal (LARDIEZ, 2021, p. 53) e arrisca, como nenhum outro fenômeno, a integridade da democracia liberal (RUNCIMAN, 2018, p. 52).

Dada a magnitude de suas implicações, cobra sentido investigar o conceito e as características do populismo, assim como os seus impactos na estrutura do paradigma do governo representativo, em especial no que concerne ao quadro de liberdade que orienta e protege a soberania popular.

Com vistas a captar seus aspectos essenciais e refletir um conjunto mínimo de fatores que o caracterizam, reproduz-se, de plano, conceito cunhado por Mudde e Kaltwasser (2019), para quem o populismo traduz “uma ideologia débil que considera a sociedade dividida em dois campos homogêneos e antagônicos, o ‘povo puro’ versus a ‘elite corrupta’, e que a política deve ser a expressão da vontade geral do povo”.

O populismo não encampa uma ideologia robusta, dado carecer de um corpo coerente de ideias sobre a natureza do homem e da sociedade, ou como esta deve ser organizada e seus respectivos propósitos. Ludovico Incisa (2009, p. 980), nesse diapasão, registra que o populismo não é uma doutrina precisa, mas uma “síndrome” órfã de uma elaboração teórica e sistemática.

Tal como refere Robertson (2004, p. 393), o populismo é falto de consistência ideológica, apresentando-se mais propriamente como um apanhado de atitudes e valores escolhidos de maneira cínica, empregado para mobilizar membros excluídos de uma sociedade de massa e direcionar a sua fúria e energia contra as elites e instituições existentes. Ao contrário de ideologias bem delineadas, como o liberalismo e o socialismo, que reúnem um corpo doutrinário, manifesta-se mais como um estilo de fazer política, normalmente vinculado a outros elementos ideológicos cruciais para a promoção de projetos políticos variados, sejam de esquerda ou direita.

O populismo, portanto, remete a uma das palavras viajantes que percorrem o tempo e – observadoras atentas de suas próprias mudanças – são sensíveis às contingências, assumindo novas nuances que, em última análise, turvam a sua compreensão. As dificuldades semânticas principiam já com o caráter paradoxal do termo que, mesmo tendo nítida conotação pejorativa, deriva daquilo que fundamenta positivamente a democracia (TORMEY, 2019), a saber uma proclamada identificação direta e não mediada entre as instâncias políticas e o povo (BEALEY, 1999, p. 262).

A despeito da fluidez ideológica, é possível identificar seus elementos mínimos, tal como fizeram Mudde e Kaltwasser (2019). Nesse diapasão, o elemento central do populismo remonta à concepção de que “o povo” é o verdadeiro sujeito da política[3], e o que o motiva é a certeza de que os seus interesses se encontram em franco desacordo com os interesses das elites. A crítica das elites, nas palavras de Müller (2016, p. 2) é a condição necessária – ainda que não suficiente – para o populismo”, de sorte que todas as variantes populistas envolvem, sem exceção, a exaltação ao “povo” em conexão com a condenação de algum segmento contraposto.

O antielitismo se cumpre, ademais, pelo desafio às autoridades legítimas ou às instituições contrapeso, que asseguram o jogo democrático[4], seja para enfraquecê-las ou para tomar os seus assentos. Seus alvos são móveis, de modo a se adaptarem às circunstâncias e, em regra, abrangem a grande mídia (havida como produtora de fake news); a classe política tradicional (sempre “suja” e mal-intencionada); os partidos políticos (incapazes de traduzir a vontade do “povo”); o processo eleitoral (a “máquina de produzir fraudes”); os burocratas do setor público (classe conspiratória, orientadas pelo domínio do “estado profundo”); os juízes, com óbvia predileção pelos integrantes das cortes constitucionais (delatados como “inimigos do povo”); a classe empresarial (lobistas corruptos que desejam manter seus ganhos à custa do suor do trabalhador); cientistas (especialistas tecnocratas a serviço das grandes corporações); organizações internacionais e as ONGs (organizações a serviço de um suposto país inimigo) e, sem variação, a Constituição (aquela mesma que assegurou ao populista o acesso ao poder, mas que depois se transforma no estorvo para a realização da vontade popular).

Se as elites são o inimigo, seu aliado é o “povo”, cuja definição é havida de forma arbitrária, com o propósito claro de criar antagonistas a partir de “significantes vazios” (LARDIEZ, 2021, p. 34). Essa exclusividade autodeclarada elimina, como consectário, a legitimidade das alternativas concorrentes, demonstrando-se, portanto, eficaz como mecanismo de perseguição e “apagamento” das instâncias adversárias (CHARAUDEAU, 2015, p. 298).

Líderes populistas afirmam que a única fonte legítima de autoridade política e moral em uma democracia reside no “povo”, na voz dos cidadãos comuns, na “maioria silenciosa”, no cidadão esquecido, constituindo-se na única forma genuína de governança democrática, mesmo quando em conflito com representantes eleitos. O exemplo ilustrativo está no discurso de posse do ex-presidente Donald Trump: “Estamos transferindo o poder de Washington DC e devolvendo-o para vocês, o povo americano […]”. Promove-se, assim, uma clara dissociação entre a “vontade geral” e a “vontade democrática” (NORRIS; INGLEHART, 2019, p. 5).

Visto o que precede, o populismo pode ser compreendido como uma corrente “que considera a sociedade separada em dois grupos homogêneos e antagônicos – ‘o povo puro’ e ‘a elite corrupta’ – e sustenta que a política deve ser uma expressão da vontade geral do povo” (MUDDE, 2004, p. 543).

Esse antagonismo conduz, logicamente, a uma visão maniqueísta do tecido social, dividido radicalmente entre amigos e inimigos. Os oponentes não são apenas pessoas com prioridades e valores diferentes: são apontados como essencialmente “maus” e “desprezíveis”. A existência de um inimigo comum traça a linha divisória entre “nós” e “eles”, com a correspondente cisão da sociedade em dois campos antagônicos, com uma radicalização da política ativada pelo código binário dentro/ fora. A dissolução da ideia de povo como corpo político, no sentido consagrado pela democracia liberal, marcada pela presença constante de compromissos e entendimentos, encerra a disputa baseada na oposição de interesses ou disputa de poder para substitui-la pelo ódio que separa, social e moralmente, apoiadores e contestadores do governo.

Trata-se de uma concepção que, evidentemente, engendra tendências de cariz autoritário, evocando uma concepção clássica desenvolvida por Ernesto Laclau, para quem a construção de uma identidade coletiva formada por um grupo moralmente superior, merecedor de um “favoritismo”, é essencial para o discurso populista (LARDIEZ, 2021, p. 50). Esse caráter homogêneo do conceito de povo antagoniza com um dos maiores pilares do regime democrático, a saber o pluralismo que, como giza Samuel Naspolini (2011, p. 34), é sumamente acolhido como “valor constitutivo” de nossa Constituição.

Os populistas, em oposição, afirmam que eles – e somente eles – representam a vontade do povo, cuja reivindicação não é exclusivamente empírica, mas claramente moral, ressaltando Müller (2016, p. 20 e 24) que “não pode haver populismo sem que alguém fale em nome do povo como um todo”. Há, aqui, um processo de invisibilização de grupos opostos, com a divisão das “pessoas entre aquelas que importam e aquelas que nada significam” (MÜLLER, ibidem), consoante um claro “discurso de divisão” (CABALLERO, 2021, p. 15). Para Yascha Mounk (2018, p. 62), no populismo:

“[…] o apelo ao povo é tão importante para quem ele exclui quanto para quem ele inclui. Quando os populistas invocam o povo, estão postulando um grupo interno – unido em torno de etnicidade, religião, classe social ou convicção política compartilhada – contra um grupo externo cujos interesses podem ser justificadamente negligenciados. Em outras palavras, estão demarcando a fronteira do demos, defendendo, de modo implícito, que a consideração política é devida a alguns cidadãos, mas não a outros. Estão, nas palavras precisas de Jan-Werner Müller, reivindicando um ‘monopólio moral da representação’”.

Esse conjunto de propriedades projeta outros efeitos igualmente graves para a democracia, a começar pela percepção de que “a instalação da lógica de destruição do outro” enseja como produto inexorável a detonação da esfera pública (SINGER; ARAÚJO; BELINELLI, 2021, p. 224), como consequência do abandono indisfarçado do que se denomina “gramática da paz” (LARDIEZ, 2021, p. 29).

Ao qualificar a oposição como inimiga, o populista enquadra o contexto político em uma permanente “crise” que assume, com frequência, um aspecto de ameaça existencial e apocalíptica. A sensação é de que apenas um dos grupos – povo ou elite – sobreviverá, o que justifica um estado de alerta contínuo que, de certo modo, estimula um estado de paralisia social que prejudica, como pontuam Singer, Araújo e Belinelli (2021, p. 223), a organização de respostas coletivas estáveis.

Enquanto a democracia vive da diferença em busca de consenso, o populismo projeta a homogeneização da sociedade para perpetuar a crise. Mestres do rancor, o seu habitat é o conflito e sua gramática, conforme Da Empoli (2020, p. 58 e 114), distingue-se tanto pela “brutalidade da linguagem” quanto pelo uso frequente do “léxico da deslegitimação”. Na ausência de crise, com o desaparecimento do caráter dramático da condição populista, seus líderes temem que os cidadãos passem a fazer suas escolhas a partir de um cálculo mais racional e menos emotivo.

Em síntese, o populismo demonstra-se intrinsecamente hostil aos valores associados ao constitucionalismo, como restrições à vontade da maioria, ao sistema de checks and balances, à defesa das minorias, à garantia de direitos fundamentais e, principalmente, às regras da democracia representativa. Além do anti-institucionalismo, que torna os populistas impacientes com procedimentos e intolerantes com as instituições, preferindo um relacionamento não mediado com o povo, o populismo concebe a democracia à base do “vencedor leva tudo”.

III. A DESINFORMAÇÃO COMO UM ATIVO NA NARRATIVA POPULISTA

Dada a constatação de que os populistas buscam, como princípio de sobrevivência, “manter o público insuflado” (SINGER; ARAÚJO; BELINELLI, 2021, p. 223), segue-se que o populismo e as redes sociais constituem um “par perfeito” que, em função de seus desdobramentos, coloca à prova a solidez das democracias (RÍOS, 2021).

É conhecido que o desenvolvimento progressivo das ferramentas tecnológicas provoca efeitos sísmicos na “base material da sociedade” (CASTELLS, 1996, p. 27) e, por conseguinte, afeta com especial contundência – e a um ritmo acelerado – as dinâmicas e as formas de manifestação política (ZAMBELLI, 2015, p. 74).

Parte central dessas alterações tem a ver com a eliminação da necessidade de intermediários nos processos de comunicação social, o que contribui para a debilitação modelo de distribuição então monopolizado pela imprensa tradicional.

O novo panorama da atividade informativa descortina um universo fragmentado em tradicionais, ignoram códigos deontológicos e não perseguem, necessariamente, uma finalidade social. O debate público, nesse guião, resulta poluído por mercadores da mentira e pela mídia de reframing.

Em uma realidade em que qualquer indivíduo tem condições de emitir opiniões, elaborar narrativas ficcionais e distribuir conhecimento não rigoroso (JIMÉNEZ SOLER, 2020. p. 15), a sociedade queda, como consequência, muito mais exposta à mentira.

Dentro desse contexto, Manuel Torres (2019, p. XI-XV) explica que a Internet deu um “novo impulso” às operações de desinformação, mormente em razão dos seguintes fatores: i) diminui radicalmente o custo em termos de tempo, dinheiro e esforço, ampliando o número de atores que participam do jogo da (des)informação); ii) oferece um ampla margem para a ação encoberta e, com isso, diminui o risco para os manipuladores; iii) arrebata a centralidade dos meios tradicionais, que perdem a capacidade de neutralizar a desinformação; iv) a economia das plataformas, baseada no prolongamento do consumo, estimula, pela via dos algoritmos, a produção de emissões chocantes com alta receptividade; v) o desenvolvimento de ferramentas automatizadas de edição de áudios e vídeos que permitem a criação de expressões faciais torna a mentira cada vez mais indistinguível da verdade.

Carmela Ríos (2021) anota que o boom da desordem informativa tem origem há pouco mais de dez anos, quando as mídias sociais optaram por melhorar as suas funcionalidades, introduzindo mudanças sem as quais seria impossível compreender a história moderna da desinformação. Refere-se, especificamente, ao desenvolvimento do re-tweet (Twitter, 2009) e da função compartilhar (Facebook, 2012).

Em sua percepção, essas opções deram aos cidadãos uma arma bastante poderosa: compartilhar com os respectivos seguidores, em questão de segundos, conteúdos que poderiam, por sua vez, ser novamente replicados pelos destinatários iniciais, gerando o chamado “efeito viral”. Pese o fato de que os instrumentos de difusão de amplo alcance não constituem, essencialmente, um mal em si – visto que propiciam, igualmente, a rápida disseminação de informações benéficas – é inegável que possuem efeitos potencialmente perversos, estimulados, a propósito, em função de “variáveis menos inocentes” (RÍOS, 2021).

Nesse norte, a desinformação – havida como a “difusão de informações falsas com o objetivo de prejudicar pessoas, organizações ou grupos” (GREIFENEDER et al, 2021, p. 03) – finca pé em motivos diversos, primordialmente assentados em: a) razões econômicas – manchetes chamativas, ainda que falsas, possuem maior probabilidade de ‘viralização’ (cabendo pontuar, nesse contexto, a importância da visibilidade dentro do modelo de receitas por publicidade); ou b) razões políticas – os políticos perceberam, em seguida, que as redes sociais poderiam trazer-lhes os mesmos benefícios ofertados às empresas caça-clicks, tendo em consideração que notícias, acusações e opiniões preocupantes, emotivas ou escandalosas, ainda que baseadas em realidades mais ou menos alteradas, animam a reação dos seguidores e estimulam o compartilhamento (RÍOS, 2021).

Versando, especificamente, sobre os fins ideológicos, a autora soma que o clima imperante nas redes sociais se adequa perfeitamente ao marco linguístico do discurso populista (RÍOS, 2021), no que coincide com Da Empoli (2019, p. 23), que opina que “do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda”, mas um “formidável vetor de coesão”.

Em primeiro lugar, o crescimento hiperbólico do volume de informações disponíveis aumenta o custo de acesso a dados adequados e dificulta, como consectário, a identificação tempestiva da verdade. A capacidade de “produzir mentiras em escala industrial” prejudica fortemente o mercado de ideias, haja vista que instala, como mínimo, um estado de “dúvida permanente” (JIMÉNEZ SOLER, 2019, p. 17).

Permanentemente alimentado por um “amontoado de lixo e de dados”, o ambiente informativo resulta convertido em um “depósito de tralhas”, fatalmente propício a um projeto de desconstrução da memória autêntica a partir da hegemonização de certas narrativas (HAN, 2021, p. 20). Nessa senda, os populistas buscam “reescrever a memória”, sendo essa a “fase final do percurso da reapropriação” (MURGIA, 2019, p. 110)

Lado outro, as campanhas negativas despertam sentimentos de medo ou ódio e, nesse caminho com mais força (GREIFENEDER et al, 2021). Os constantes ataques, sejam contra adversários ou contra as instituições públicas, rendem-lhe préstimos sob o prisma das intenções políticas, designadamente em função do alto rendimento da “canalização algorítmica do descontentamento” (RÍOS, 2021), efetiva como instrumento para a agitação das bases, mediante a exploração política das emoções (INNERARITY, 2017, p. 105). D’Ancona (2017, p. 26) assinala, nesse caminho, que na sociedade de hoje a chave para o êxito populista reside em “oferecer à grande massa de eleitores uma série de inimigos contra quem eles podem se unir”.

Com efeito, as campanhas de ataque casam perfeitamente com a tática populista, haja vista que reforçam, simultaneamente, o método de destruição reputacional e a reposição do cartel de inimigos, necessários para a manutenção da base de apoio em uma “mobilização permanente” (COLOMER, 2015, p. 78). Por esse ângulo, Da Empoli (2019, p. 21) sustenta que, para os populistas:

“[…] o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir os extremos.

Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, os engenheiros do caos diluem as antigas barreiras ideológicas e rearticulam o conflito político, tendo como base uma simples oposição entre ‘o povo’ e ‘as elites’”.

Em paralelo, surge o uso do “método de perfilado psicológico”, utilizado na difusão de desinformação customizada, cirurgicamente adaptada consoante as preferências dos destinatários. Casos como o que envolveu a empresa Cambridge Analytica nas eleições norte-americanas de 2016 revelam que a coleta de mega dados em redes sociais tem propiciado o desenho e a disseminação de inverdades à la carte, com alto potencial persuasivo (RÍOS, 2021), na esteira de um sistema de vigilância que apresenta, consoante Harari (2018, p. 89), os primeiros traços de uma possível “ditadura digital”.

Pese o exposto, o estado atual de coisas não exsurge, pura e simplesmente, como um produto exclusivo das novas tecnologias. Pelo contrário, no que se refere às condições estruturais, “os populistas não teriam sucesso se não houvesse sociedades dispostas a lhes dar ouvidos” (INNERARITY, 2017, p. 109).

Assim sendo, a ascensão da nova onda populista encontra, igualmente, explicações situadas no campo cultural, designadamente como subproduto da pós-verdade que assenta, como resume D’Ancona (2017, p. 14 e 19), “na difusão contagiosa de um relativismo pernicioso” que deságua no “valor declinante da verdade como moeda de reserva da sociedade”. Para o especialista britânico, o cenário evidencia:

“[…] uma nova fase de combate político e intelectual, em que ortodoxias e instituições democráticas estão sendo abaladas em suas bases por uma onda de populismo ameaçador. A racionalidade está ameaçada pela emoção; a diversidade, pelo nativismo; a liberdade, por um movimento rumo à autocracia. Mais do que nunca, a prática da política é percebida como um jogo de soma zero, em vez de uma disputa entre ideias. A ciência é tratada com suspeição e, às vezes, com fraco desprezo.

No cerne dessa tendência global está um desmoronamento do valor da verdade, comparável ao colapso de uma moeda ou de uma ação. A honestidade e a exatidão não são mais consideradas como prioridade nas trocas políticas (D’ANCONA, 2017, p. 19-20).”

Em definitivo, a política da pós-verdade implica “o triunfo do visceral sobre o racional, do enganosamente simples sobre o honestamente complexo” (D’ANCONA, 2017, p. 29). Cuida-se, como afirma Bernardelli (2020, p. 556), de “um momento da comunicação política e da construção da opinião pública no qual a realidade tem pouco ou nenhum valor”.

Como é intuitivo, no terreno aludido o ativo mais importante é a desinformação, descrita como um fenômeno complexo que “não abarca apenas conteúdo falso, mas todo um ecossistema de produção e difusão deste mesmo conteúdo”, consistindo, portanto, em “parte de um fenômeno” que envolve, igualmente, “a produção, a divulgação e a legitimação de conteúdo falso ou enganoso” (RECUERO, 2020, p. 235).

Explica Lozano (2020, p. 20-21) que essas práticas assomam particularmente úteis às estratégias do populismo retrógrado, nomeadamente porque descortinam vias para estimular a “arquitetura da divisão”. Por esse prisma, argui que a promoção da desordem informativa vai ao encontro de três grandes objetivos: a) erodir o debate público, debilitá-lo como veículo racional para a tomada de decisões (ao contaminá-lo com falsidades e desinformação, inabilitá-lo como ferramenta essencial da democracia); b) exacerbar a polarização e a divisão da sociedade; c) incrementar a desconfiança direcionada às elites: tudo o que sirva para debilitar as instituições que, tradicionalmente, monopolizam o conhecimento verdadeiro.

Sem embargo, o tempo da pós-verdade aporta mudanças significativas na estrutura social, não somente porque, em seu contexto, a verdade deixa de ser estimada como um valor supremo, mas sobretudo porque queda vertida em uma “mercadoria consumível” (TIBURI, 2017, p. 107), o que, no limite, suscita o levante de uma espécie de “antipolítica”, no marco da qual “os fatos não são suficientes” (D’ANCONA, 2017, p. 109), as narrativas prevalecem e a hipocrisia é alçada a paradigma (TIBURI, 2017, p. 110).

Dado que a pós-verdade constitui um fenômeno preponderantemente emocional, indutor de um cenário em que a verdade é constantemente ofuscada pela teatralidade (D’ANCONA, 2017, p. 111), segue-se que os jogos de linguagem populistas se acomodam organicamente ao contexto momentâneo. Isso porque o seu método comunicativo tem como traço basal a agitação dos sentimentos coletivos a partir da redução da complexidade de temas chave, rumo à reprodução insistente de uma “pirâmide perversa”, em cujos vértices aparecem o povo (perspectivado como vítima), um inimigo (enquadrado como ameaça) e um caudilho carismático (a quem toca o papel de salvador) (DEL REY MORATÓ, 2007, p. 222).

De mais a mais, tendo em consideração que a convivência pacífica e a prosperidade coletiva dependem fortemente da confiança social, não há como negar que a indústria da desinformação, como indutora de um descrédito endêmico, representa um sério risco para as democracias (GREIFENEDER et al, 2021, p. 03).

IV. O ENCALÇO POPULISTA AO PROCESSO ELEITORAL E AS AMEAÇAS VERBAIS À DEMOCRACIA

Przeworski (2019, p. 116) esclarece que a imagem populista da política “está associada à rejeição da democracia representativa e sua substituição por uma democracia diferente, ‘direta’”, o que explica o seu renhido desprezo pelas instituições.

O desprezo assinalado, em determinadas conjunturas, exterioriza-se mediante ataques que, em definitivo, possuem o condão de sobrelevar a imagem de seus líderes, que de resto se afirmam como únicos agentes efetivamente aptos a assegurar que a vontade do povo prevaleça nas instâncias de poder.

Ocorre, no entanto, que na vertente autoritária o “povo” representado é considerado a partir de uma visão “estrita, exclusivista e baseada na total rejeição da legitimidade de visões e grupos sociais alternativos”, sendo essa razão pela qual o populismo tende a conceber uma política “hostil”, “antipluralista” e “antidemocrática” (EATWELL; GOODWIN, 2020, p. 78).

Perspectivando o populismo autoritário como uma evidente ameaça à democracia, Przeworski (2019, p. 204) refere que, no cenário desenhado, a chave para a compreensão do risco democrático está em atentar para medidas errôneas que, “isoladas ou em termos abstratos poderiam ser justificadas como compatíveis com as normas democráticas”, mas que, apesar disso, podem “ser utilizadas como mecanismos para deitar abaixo a democracia constitucional”.

Em par com essa visão, considera que a primeira lição a ser aprendida com as experiências recentes é que a liberdade de expressão tem sido utilizada como brecha para que governos eleitos consoante normas constitucionais trabalhem, em seguida, para debilitar a democracia (PRZEWORSKI, 2019, p. 204). De maneira análoga, Murgia (2019) pontua que “a propensão dos democratas para legitimar tudo”, em última instância, é útil para o planejamento autoritário: basta o abandono de referências muito explícitas e o discurso autoritário termina por encontrar uma vazão, passando “como um cavalo de Troia” pelas portas institucionais.

Valendo-se do fato de que a autoridade constitui, em si, um elemento de legitimação do discurso (RECUERO, 2020, p. 235), líderes populistas têm se apresentado como fontes diretas de desinformação. Lozano (2020, p. 216), nesse guião, explica que na atualidade, “o populismo se beneficia da crise de vigilância epistêmica, em sua dupla vertente, social e individual, e busca o controle do discurso, pois que esse é o âmbito que lhe beneficia, e não o das ideias ou o das realizações”. A partir dessa premissa, soma:

Costuma-se dizer que o populismo é emocional e despreza a razão, o que é verdade, porém não pelos motivos a que normalmente se alude (o manejo das emoções é consubstancial à política e à vida e elas convivem com a razão), mas sim porque deixa de usar a razão de forma argumentativa, é dizer, da maneira em que é mais produtiva, mais eficiente e mais socialmente vantajosa. O populismo não argumenta, narra. Conta histórias. E sua capacidade de fazê-lo é ilimitada, já que não tem propósitos éticos, mas apenas fins de poder. O populismo, mediante narrativas, captura com mais eficácia a imaginação dos cidadãos e deixa de lado a racionalidade e sua função primordial de argumentação social, imprescindível para a cooperação humana e para a tomada de melhores decisões para o avanço das sociedades (LOZANO, 2020, p. 216).

O populismo introduz no mapa cognitivo da sociedade um “notório deterioramento epistemológico”, um estado de erro ou deturpação dos acontecimentos, um transtorno da ordem das coisas a partir do “poder perturbador das palavras” (DEL REY MORATÓ, 2007, p. 224) que, como tal manuseadas, “silvam como balas” (JIMÉNEZ SOLER, 2020, p. 59), fomentam o conflito e promovem rupturas (LARDIEZ, 2021, p. 77).

Na medida em que grassam como “intrusos carismáticos”, os populistas não precisam discursos logicamente convincentes. Atuando numa área paralela à da racionalidade pura, buscam persuadir as massas mediante “arroubos emocionais” embalados em “convocatórias de aspecto sentimental” (INNERARITY, 2017, p. 109-110), a fim de “nutrir-se de águas turbulentas” (CABALLERO, 2021, p. 15).

É dentro desse contexto que se enquadra a estratégia de deslegitimação social das eleições. Os populistas consideram o povo como um “agregado social homogêneo” (INCISA, 2009, p. 980) e, dentro desse arco, abominam a pluralidade e, em especial, o dissenso. Negam-se ao controle interorgânico, à vigilância da imprensa e ao julgamento popular.

Não surpreende, portanto, que líderes populistas recusem ter o legado escrutinado pela sociedade no bojo de uma eleição política. Os direitos políticos dos cidadãos dissidentes, em sua concepção, carecem de dignidade, tendo em tela que a não aclamação de seus projetos como um todo – e de sua figura, obviamente – implica, automaticamente, a marginalização da cidadania. Na gramática populista, o coletivo discordante é inexoravelmente eivado de atributos negativos e tachado como “não-povo” (INCISA, 2009, p. 982), como obstáculo à persecução dos verdadeiros interesses nacionais.

O poder, para se consolidar, necessita de um crédito social. Sob a perspectiva democrática, o aval apontado ressai perseguido nos domínios do progresso, da eficiência, da repartição de prosperidade, da oitiva atenta e da ação responsiva, e enfrenta, resignadamente, procelas hauridas do controle da legalidade, da oposição política, das pressões sociais e da vigília acurada da imprensa. O poder autoritário, em compasso invertido, faz-se avesso a rédeas, contrastes e críticas, e procura reescrever a história em termos que o dignificam.

A retórica bélica, o diversionismo e o sequestro da verdade, nesse contexto, cumprem funções-chave no jogo de manipulação. A linguagem populista, como regra, deprecia as manifestações do dissenso, elege alvos variáveis e investe na radicalização como estratégia, asfixiando, até o limite do possível, as possibilidades de entendimento entre grupos dissonantes do espaço social.

O aprisionamento da liberdade de escolha política, como se sabe, constitui um mal histórico da nossa República, cuja engenharia eleitoral enfrenta, mormente até o nascimento da Justiça Eleitoral, a influência deletéria do coronelismo que, conforme a leitura de Nunes Leal (2012), remete ao peso das estruturas oligárquicas para o exercício de um domínio amplo sobre a população, por ocasião do chamamento às urnas.

A dinâmica do poder, sem embargo, tem historicidade e, como decorrência, adapta-se ao curso dos acontecimentos, em ordem a encontrar novos e efetivos canais de expressão.

A eclosão da Internet revoluciona a comunicação, afetando negativamente o modelo econômico e o capital de credibilidade da chamada “grande imprensa”: a abundância de fontes de informação rápida e a custo zero induz à perda da audiência e, consequentemente, impacta as receitas de publicidade; paralelamente, a necessidade de adaptação às tendências de consumo forceja o défice de aprofundamento das notícias, prejudicando a elevação da consciência coletiva; por fim, a abertura de canais alternativos para a manifestação do pensamento – conquanto sobejamente salutar, em si – oportuniza a difusão de teorias conspiratórias destinadas ao descredenciamento das elites e das instituições, eleitorais inclusive.

A erosão da confiança nos veículos tradicionais dispara uma crise epistêmica, na medida em que estimula um ceticismo dogmático que, em última instância, deprime a capacidade de convencimento das informações confiáveis, o que se percebe, em nosso cenário, no arco de debates que envolvem a segurança e a eficácia das vacinas e das urnas eletrônicas.

Jiménez (2020), a esse respeito, escreve que as fontes de conhecimento, antes identificadas com instituições arraigadas, intelectuais, cientistas e filósofos que dispunham de autoridade e espaço para legitimar determinadas posturas enfrentam hoje um “processo de demolição”. As redes sociais, sob esse ângulo, inundam a esfera pública com uma sorte de “visco cultural” que exerce uma grande influência social.

O negacionismo científico, nesse norte, explicita uma quadra delicada, dentro da qual se assiste ao avanço de um pseudocientificismo que funda, consoante a expressão de Lozano (2020), uma “visão tribal” da política, multiplicada por ações comunicativas que lucram com o crescimento sucessivo de uma mentalidade de rebanho.

A manipulação das consciências a partir da desinformação, dentro desse cenário, inaugura novo capítulo de um romance conhecido e secular, e que se apresenta, a rigor, como a face contemporânea do coronelismo, ora adaptada a um novo estádio da economia da atenção.

Sendo constatado que um número cada vez maior de cidadãos utiliza as mídias sociais como fonte primária de informação política, segue-se que a Internet emerge como palco de uma verdadeira guerra de narrativas falsas, profusa na produção de efeitos colaterais para a democracia.

A Internet facilita e acelera a difusão de ideias e opiniões e, em função dessas características, as possibilidades do universo digital conferem, conforme observa Torres (2019), um “impulso diferenciado” às operações de desinformação.

No terreno da política a compreensão dos temas e correspondentes repercussões têm custos cognitivos elevados, e demanda recursos e tempo dos quais os indivíduos, muitas vezes, não dispõem. A engenharia digital oportuniza a entrega de conteúdos simplificados e que aparentam cumprir antecipadamente o papel de reflexão exigido do cidadão, sem, contudo, descurar que a manipulação influi cada vez mais sobre a configuração dos estados gerais da opinião pública.

Se por um lado é certo que esse cenário maximiza as chances de vitória de atores políticos que capitalizam sobre a desinformação, é preciso notar que “o sistema de manipulação tem limites” (LOZANO, 2020), de sorte que os mercadores de mentiras são, por vezes, derrotados nas urnas.

Como consequência, a economia do pensamento despótico recomenda planejar para contingências, sendo essa a raiz que embala o novo discurso anti-eleição, inaugurado nos EUA e replicado, posteriormente, em diversas nações: dentro desse contexto, o questionamento infundado da honestidade das eleições não é senão uma semente de golpe, havida como tática elementar de um novo coronelismo digital, cuja intenção inconfessável mira, em suma, a demissão das liberdades públicas, a revogação do direito de escolha e o sequestro da democracia.

A sabendas de que o novo populismo exsurge, sem surpresas, como um efeito colateral da crise de representação, resta gizar que a abolição do método eleitoral não resulta em um remédio viável para a promoção do interesse do povo, em particular porque o processo eleitoral consiste, precisamente, no instrumento que garante a decantação das frustrações políticas. Runciman (2018, p. 227-228) agrega, nesse sentido, que a democracia, a despeito de suas falhas, encontra uma razão especial para persistir, tendo em vista que, em seu marco – e apenas em seu marco:

Quando as pessoas ficam absolutamente fartas de certos políticos, sempre podem substituí-los por outros. Os péssimos líderes – ou ‘maus imperadores’, como costumavam ser chamados na China – podem ser despachados mais ou menos sem dor. Partidos políticos moribundos acabam despejados nos pátios dos ferros-velhos. […]

As democracias continuam a ser eficazes em evitar a hora mais difícil. Sua incapacidade de se posicionar ou manter as coisas em proporção é útil para adiar o pior, ainda que a frustração possa ser profunda quando se tenta fazer melhor que isso. Empurrar o problema para adiante é o melhor que as democracias fazem. E é por isso que o caminho que ainda têm pela frente pode se revelar mais comprido do que achamos.

Sob esse ângulo, a conjuntura atual torna imperativo reavivar a consciência de que o valor da democracia, como sugere Innerarity (2017, p. 93), “consiste precisamente em permitir aos cidadãos mudar de opinião e de dirigentes sem que isso implique pôr em risco a ordem política em seu conjunto”.

Esses eram os passos que os coautores almejam dar no transcurso dessa construção de um texto acadêmico, a modo de diálogo e interlocução. E assim arrematamos, lembrando que falto das faculdades de crítica e julgamento do poder constituído o povo retorna, inexoravelmente, à condição de escravo. A desinformação, nesse contexto, emerge como ameaça mais extremada ao esquema de liberdades dos cidadãos.

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NOTAS_________________

[1] Não por acaso, a organização de eleições livres exsurge como um pressuposto chave em esforços para o encerramento de conflitos armados, em especial para consolidar processos de transição rumo à instalação de governos democráticos (FATH-LIHIC; BRANCATI, 2017, p. 5). Por antonomásia, é lícito afirmar, com David Runciman (2018, p. 20), que “a democracia fracassa quando as batalhas simbólicas se transformam em combates de verdade”.

[2] David Runciman (2018, p. 51-53), a par de elaborar um catálogo relativamente amplo de modalidades de “golpes clássicos”, argumenta que as democracias de hoje experimentam outras espécies de talhos, por ele denominadas “golpes graduais”. Discorre que: “A grande diferença entre um golpe de Estado clássico e esses outros tipos de golpe é que o primeiro é um evento isolado em que se decide entre tudo ou nada, enquanto os outros são processos graduais. Um golpe do primeiro tipo irá dar certo ou fracassar em questão de horas. Os outros se estendem por anos a fio, sem que ninguém saiba ao certo se triunfaram ou não. Fica muito difícil distinguir os limites. E mais que isso: enquanto o povo espera que o golpe real se revele, o golpe gradual pode estar em curso há tempos”.

[3] Cuida-se, sem embargo, de uma afirmação puramente retórica, haja vista que no populismo autoritário a democracia resulta “subvertida”, sendo o povo reduzido, na prática, ao papel de “simples espectador” (RUNCIMAN, 2018, p. 53)

[4] David Robertson (2004, p. 394), por essa senda, afirma que é da essência do populismo “mobilizar as massas contra as instituições preexistentes do Estado”.