Um Código Civil no tempo VUCA

2 de fevereiro de 2024

Vice-Presidente do STF / Professor Titular de Direito Civil da UFPR

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VUCA é um acrônimo com as iniciais em inglês de volátil, incerto, complexo e ambíguo. Advém do tempo da emergência de cenários imprevisíveis. Esse termo se difundiu com os estudos de Warren Bennis e Burt Nanus. Nele estão as dimensões do risco, nomeadamente presentes a partir da análise de Ulrich Beck. 

Soa induvidoso que, a partir do século XX, o risco passa a ser elemento central da produção material da vida. Está-se diante de um conceito que encapsula mais do que volatilidade, abrangendo incerteza, complexidade e ambiguidade. 

Mais ultimamente, fatos e circunstâncias se relacionaram mais diretamente com o denominado ‘mundo vuca’, embora também seja fora de dúvida que esse ‘mundo vuca’ vai além da pandemia.

Daí a razão pela qual o presente ensaio acadêmico o toma emprestado para caracterizar o tempo contemporâneo pela volatilidade, vale dizer, pelo inesperado; pela incerteza, isto é, pelo aleatório; pela complexidade, ou seja, pelo inescrutável; e ainda pela ambiguidade, o que corresponde ao que é indefinido. VUCA não é um ou outro, mas todos ao mesmo tempo.

Os saberes, nessa estação, demandam flexibilidade e rápida adaptação a um ambiente em constante mudança. Basta um rápido olhar sobre esses horizontes: na volatilidade legal, defrontam-se muitas fontes, como também alterações legislativas; na incerteza, a experiência prévia não oferece ferramentas suficientes para a tomada de decisões futuras. Na complexidade no campo jurídico, Luhmann é a grande referência. Num sentido mais prosaico, a complexidade, no Direito, deriva da profusão de normas, precedentes e possíveis interpretações. Quanto à ambiguidade: os ambientes da área estão desafiados pela presença incessante de quebra-cabeças. 

O Direito é também uma técnica de solução de conflitos que se ampara na aplicação da lei e na tomada de decisões por autoridades investidas pelo poder estatal, ou seja, a estrutura jurídica é toda engendrada para não ceder à ambiguidade. 

Os afazeres no campo do Direito, por conseguinte, estão em busca de antídotos, como a preparação prévia como resposta à volatilidade; a informação como antídoto à incerteza; a metodologia eficiente para lidar com a complexidade; e exposição ao risco consciente como forma de enfrentar a ambiguidade.

Concluo esse esclarecimento inicial anotando que, como se sabe, há nessa configuração controvérsias, dissensos e propostas de aprofundamentos, como o fez o pensador norte-americano Jamais Cascio; nada obstante, seja fragilidade, não linearidade, como também seja incompreensão, apresenta-se aí cenário razoavelmente robusto de predicados tormentosos da época.

É esse olhar metodológico que fotografa esse tempo e que anima o presente estudo.

Introdução – Reformas, revisões e modernizações são fenômenos metodológicos amiúde aplicáveis aos Códigos Civis nas famílias romano-germânicas ocidentais. Atualização é, em suma, a finalidade almejada. Para levar a cabo esse múnus, a inteligência de tais movimentos é desafiada, de um lado, para captar a evolução da jurisprudência constitucional e infraconstitucional, as novas leis especiais e a contribuição marcante da literatura jurídica, de outro, pela força constitutiva dos fatos. Arrosta, ainda, a experimentada dimensão de permanência e resistência da codificação, bem como a disputabilidade de percepções decorrente da constitucionalização. Vive o Brasil essa dinâmica.

Não por acaso, em setembro de 2023 foi instalada a comissão de revisão e atualização do Código Civil, sob a presidência do eminente Ministro do STJ Luis Felipe Salomão. 

De um lado, vê-se o propósito de tonificar os significados encontrados na legítima tensão entre a codificação e a principiologia axiológica de índole constitucional, nomeadamente nos contratos, nas famílias e no patrimônio. De outro, dar ao texto um teste de contraprova no contexto social, econômico e cultural vivenciado por uma sociedade ainda distante do ideal de plena justiça, liberdade e solidariedade, pródiga em leis, precedentes e contributos.

O movimento – Há mesmo sensíveis transformações na vida brasileira, parte em razão da repercussão das novas tecnologias, do aprofundamento das características da sociedade do hiperconsumo e, mais recentemente, da pandemia.

É inequívoco (e não de agora) o fenômeno da multiplicação de leis especiais, tão bem retratado por Ricardo Lorenzetti. Ou seja, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei do Divórcio, a Lei do Inquilinato, o Estatuto das Cidades, dentre outras leis especiais. 

A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a antiga Lei de Introdução ao Código Civil, contém, no art. 4o, uma espécie de antídoto à incerteza, vale dizer, uma espécie de confissão de que o direito positivado não dará conta de todos os problemas da vida real. 

No mesmo sentido, a adoção, pelo Código Civil de 2002, das chamadas cláusulas gerais ou cláusulas abertas, como a liberdade de contratar ou a boa-fé objetiva também são antídotos à incerteza e consiste numa técnica legislativa que permite que a lei não fique obsoleta.

Assim, já que combater a incerteza e gerar segurança é um dos escopos do Direito, o Código Civil também tem estas ferramentas e é preciso pensar no Direito Civil também a partir destes objetivos, o que ganha ainda mais relevância diante dos complexos desafios do século XXI, mais amiúde a impermanência dos últimos 20 anos. 

Portanto, se não podemos deixar de lado as tensões entre a aplicação de regras e princípios constitucionais e o ordenamento, ou seja, uma vez que estejamos conscientes e cientes que os Código Civis são reinterpretados pelas Constituições no Estado Democrático de Direito, é preciso contemplar os Códigos Civis a partir das mudanças operadas no trânsito da ‘faticidade’ do real para o conteúdo normativo que neles se insere.

É pela força construtiva dos fatos, já mencionada, mas também pelo intermédio da doutrina e da jurisprudência que o Direito Civil ganha vida. 

Há, pois, três ideias-chave: a incidência franca da Constituição nos diversos âmbitos das relações entre particulares; a existência de legítimos limites ao autorregulamento dos interesses privados, em respeito às garantias constitucionais, de que é exemplo a funcionalização; a necessária tarefa dos juízes e demais operadores do direito, iluminada sempre pelo imprescindível conhecimento teórico refinado, na harmonização entre a Constituição e a ordem jurídica, aqui enfocada no Código Civil.

Itinerários metodológicos para um tempo VUCA no Direito Civil brasileiro –Alguns planos metodológicos compõem uma cartografia sobre o como, vale dizer, desenhos bussolares metodológicos de procedimento.

    Plano teleológico. Aqui se põe em tela a constituição de significados via legislação, jurisprudência e doutrina; impende dar critérios seguros para a disputabilidade, como e.g. a função social da empresa, a renegociação contratual e externalidades, à luz do caput art. 170 da Constituição; uma necessária cultura da fundamentação há de fomentar racionalidade dentro do ordenamento unitário. 

    Plano temporal. Nisto se alça o contemporâneo como sempre presente, porquanto, ao mesmo tempo legatário (da racionalidade da codificação) e porvindouro (da racionalidade prospectiva) é produtor do desenvolvimento hermenêutico progressivo. É que se deu com o estatuto jurídico da filiação do Código de 1916 ao vigente Código, filtrada a travessia pela filiação na Constituição de 1988, fotografada na jurisprudência, na legislação infraconstitucional e na doutrina. Tradição e movimento são dois pilares que suscitam atenção e caminhos.

  Plano da espacialidade do conhecimento. Os saberes que produzem sentidos na ordenação jurídica devem atender a três critérios simultâneos: formal, substancial, prospectivo. São três pilares inerentes a categorias substancialmente seguras; à falta de um corresponde a superlativação do outro; a harmonia dos três significará equilíbrio e temperança.

  No plano procedimental alvitra-se conjugar
pensamento jurídico tópico (lócus) e sistemático (tecido normativo). O pontual se alça em sua singularidade dentro do contextual. 

  No plano material, o enfoque apoia-se no tripé fundamental do governo jurídico das relações privadas (titularidades, trânsito jurídico e projeto parental) e a filtragem pelos ‘contornos constitucionais’ (como patamar mínimo de respeito às liberdades).

  No padrão protetivo constitucional, apresenta-se como inerente ao ser o devir, isto é, o direito da pode ser também direito à. Estática (ser) e dinâmica (vir a ser) das relações jurídicas se perfazem como sentidos simbióticos.

    No plano conceitual são hauridas, como ferramentas necessárias à precisão das categorias e definições, as funções da teoria geral da relação jurídica.

    No plano dogmático, o exame a conjugar a importância do Código Civil de 2002 na perspectiva civil-constitucional se ergue como baliza. 

  No plano da pessoa, duas realidades residem: a individualidade (singular) e a coexistencialidade (plural). Sujeito, pessoa e personalidade moram nos Direitos fundamentais e nos Direitos Humanos, porquanto imperioso o canal da porosidade entre Direito Privado e o controle de constitucionalidade, como também e (especialmente) o de convencionalidade.

  No plano pragmático dialogam com as teorias (discurso normativo textual) as práticas (empiria); a prestação jurisdicional legitimada pelo procedimento propicia, como método, o escrutínio das razões dessa união. No banco de provas, imprescindível, assim, precedentes e jurisprudência, ao lado do direito estrangeiro e doutrina comparada.

  E no plano pedagógico, estrutura e função no Direito Civil navegam entre formas e fôrmas, frequentando limites e possibilidades de ensino e de pesquisa. Quem codifica ou recodifica à luz da principiologia axiológica de índole constitucional educa pela norma que irradia sentidos e valores.

Esses diversos traçados correspondem aos diagramas de mudanças e adaptações dos desígnios na ordenação jurídica, que poderá ser resiliente e resistente diante de elementos voláteis, incertos, complexos e ambíguos. 

Nota posterior – A recodificação do que virá depende muito do desempenho individual e coletivo de todos, especialmente do modo de apreender a produção de bens, valores e serviços. Criatividade e ousio são ingredientes desse caminho a construir para um direito comum da humanidade, o novo direito civil dos civis, uma renovada civitas, um redesenhado ius commune, apto a dar margem à sociedade dos bens essenciais, com tecnologia e capacidade de reinvenção. 

Por isso, esse trabalho profícuo deve ser iluminado pelo desígnio de servir à estabilidade, à previsibilidade e à coerência na legislação, na jurisprudência e na doutrina do Direito Civil brasileiro. Será ainda mais benfazejo se tiver em atenção o intento de contribuir para uma sociedade mais justa, livre e solidária.

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