“O futuro é colaborativo”

1 de junho de 2022

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Entrevista com o Ministro Jorge Mussi

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jorge Mussi integra a magistratura desde 1994, quando ingressou no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) como desembargador, pelo quinto constitucional. Antes, dentre outros cargos importantes em órgãos públicos, havia sido Procurador-Geral do Município de Florianópolis, sua cidade natal.

No TJSC desempenhou inúmeras atividades institucionais, dentre as quais a Presidência da Corte, entre 2004 e 2006, quando chegou a assumir interinamente o Governo do Estado. Em 2007 tornou-se ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Por sua competência, desempenhou uma série de atribuições institucionais como membro das cortes superiores. Dentre outras funções, foi presidente da 5ª Turma e da 3ª Seção (Direito Penal) do STJ, e Corregedor-Geral  da Justiça Eleitoral, entre 2018 e 2019. Em 2020, assumiu os atuais cargos de Vice-Presidente do STJ, Vice-Presidente do Conselho da Justiça Federal (CJF) e Corregedor-Geral da Justiça Federal, posição na qual teve a grande responsabilidade de conduzir um dos mais importantes eventos do calendário jurídico nacional, que está de volta após um hiato de quatro anos.

É justamente a IX Jornada de Direito Civil o principal assunto dessa entrevista, que o Ministro Jorge Mussi concedeu à Revista Justiça & Cidadania poucos dias após o evento. Na conversa, ele nos falou ainda sobre a evolução do Direito em sua tentativa de adaptar-se às inovações digitais e fez um balanço sobre sua atuação como Corregedor-Geral.

Revista Justiça & Cidadania – Qual é a importância das Jornadas de Direito Civil para a evolução do Direito nacional?

Ministro Jorge Mussi – As Jornadas de Direito Civil, assim como as demais Jornadas de Direito realizadas pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, têm se firmado como um grande espaço democrático dedicado à cultura da reflexão de temas jurídicos, cuja interpretação ainda remanesce necessária em nosso ordenamento.

A contribuição deste evento para o Direito nacional é inegável, na medida em que possibilita uma abordagem dinâmica sobre pontos específicos, permitindo uma extração coletiva do verdadeiro sentido dos fatos jurídicos analisados. Em outras palavras, vemos a ciência social aplicada como em uma espécie de construção de menu, no qual os ingredientes são trazidos pelos convidados, mas o tempero, o ajuste fino da receita a ser seguida dali por diante, é realizado pelos grandes especialistas.

Aprecio a proatividade que vem sendo executada nas Jornadas de Direito, no seu esforço em construir soluções antecedentes à propositura de lides. Há, neste ambiente, uma inquestionável inovação metodológica, que contribui para a adaptação do Judiciário aos novos tempos, superando-se o apego litúrgico de que deveríamos sempre esperar a provocação judicial.

JC – Qual é a avaliação que o senhor faz da IX edição? Quais foram os diferenciais em relação às edições passadas?

JM – A IX edição da Jornada de Direito Civil foi um sucesso, inovamos com a inclusão do Direito Digital, que trouxe grande contribuição sobre este tema tão atual e recorrente. Além disso, recebemos um número recorde de propostas de enunciados, foram 915, o que indica que este evento do Conselho da Justiça Federal está cada vez mais conquistando o espaço e a confiança da sociedade e da comunidade jurídica brasileira.

Para além de debates científicos, nestes dois dias de Jornada de Direito Civil o que vimos foi um grande espetáculo cívico, com a participação engajada dos mais variados seguimentos da sociedade, de alunos da graduação de Direito a PhDs, em prol da melhoria da prestação do serviço jurisdicional.

A ampliação significativa do número de propostas oferecidas certamente é fruto da ampla transparência dada à divulgação do evento. Além de refletir uma inegável correlação com o espírito inovador despertado em todos por força das contingências trazidas pela pandemia de coronavírus.

JC – Quais foram os critérios utilizados para a escolha da coordenação científica e dos integrantes das comissões de trabalho?

JM – As coordenações científicas, bem como as comissões de trabalho foram escolhidas por critérios eminentemente técnicos. O Superior Tribunal de Justiça é o Tribunal da Cidadania, a quem cabe o mister constitucional de interpretar a legislação federal em última instância. Os ministros do STJ são membros do Poder Judiciário cujas carreiras pressupõe elevado e notório saber jurídico. Nesta linha, indicamos para a coordenação científica  aqueles ministros que se destacam em suas áreas de atuação, com familiaridade sobre os assuntos enfrentados.

O mesmo pode-se dizer da formação das comissões de trabalho, na qual levou-se em consideração a expertise dos cientistas que ali atuaram.

JC – Qual é a avaliação que o senhor faz dos enunciados aprovados? Destacaria alguns em especial, por sua relevância?

JM – Os enunciados aprovados são de fundamental importância, pois eles contribuem para a interpretação e a aplicação do Direito aos casos concretos, auxiliando os magistrados na análise de seus processos, tornando mais rápida e eficiente a prestação jurisdicional, na medida em que as decisões estarão ancoradas em estudos científicos.

Dos enunciados aprovados, destaco com relevância o que trata de direito materno e versa sobre a inclusão das despesas com doula e consultoras de amamentação dentro dos alimentos gravídicos, privilegiando um pré-natal de qualidade para as gestantes e, consequentemente, a saúde dos futuros cidadãos brasileiros.

Outro enunciado muito importante, a meu ver, é o que versa sobre o patrimônio digital, considerado como integrante do conjunto de bens a integrar o espólio, inclusive para a sua disposição testamentária.

Com efeito, os assuntos imateriais que envolvem o mundo digital e virtual dos cidadãos precisam de um olhar profundo dos intérpretes, pois é justamente nestas questões que ainda temos muitas lacunas normativas.

JC – Os enunciados não possuem força normativa. Até que ponto eles impactam a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos demais tribunais?

JM – Tenho destacado que os enunciados das Jornadas de Direitos não possuem forma normativa, porém, têm inegável força persuasiva, pois eles são elaborados por meio dos mais amplos debates realizados por mestres e doutores, portanto, por especialistas sobre a matéria, o que impõem força e ancoragem científica ao entendimento neles consignados.

O impacto que vejo na atuação jurisdicional é extremamente positivo, pois os enunciados contribuem para agilizar o livre convencimento e a persuasão dos julgadores, que não raro se veem sozinhos para realizar a exegese de temas ainda não desbravados. Por óbvio que a autonomia, ínsita aos magistrados, segue incólume, porém não há como negar que esta análise dialógica realizada nas Jornadas de Direito Civil torna menos árida e mais fértil a atividade jurisdicional.

JC – Desde a entrada em vigor do Código Civil, em 2002, o mundo passou por intensas transformações de ordem social e tecnológica, bem como por uma pandemia mundial sem precedentes. Em sua opinião, a aplicação dos dispositivos do Código tem conseguido acompanhar essas mudanças?

JM – Bem sabemos que as normas nem sempre conseguem acompanhar as transformações sociais, e de fato a evolução tecnológica, exponencializada pelas contingências trazidas pela pandemia de coronavírus, acelerou muitos processos.

Novas demandas vêm surgindo nesta conversão do físico ao digital, todavia considero que o Código Civil de 2002 têm muito potencial para continuar suprindo a organização da vida em sociedade, pois ele foi concebido sobre bases inovadoras.

Estamos vivenciando, inegavelmente, uma mudança de época, e para que possamos sintonizar nossas atividades é preciso haver centralidade em nosso cotidiano, para então irmos atribuindo valores as novas realidades culturais. A ampla adesão ao mundo virtual que temos presenciado indica um anseio de todos por tornar mais simples e objetivas as relações públicas e privadas. Deste modo, penso que o fundamental neste momento é ressignificar estas relações.

JC – Em agosto haverá a troca de comando no Superior Tribunal de Justiça. Qual é o balanço que o senhor faz da gestão que ora se encerra, da qual fez parte como
Vice-Presidente e Corregedor-Geral da Justiça Federal?

JM – Considero que a troca de comando do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal, a cada biênio, é de salutar importância para a democracia no Judiciário, pois oxigena a máquina púbica e permite que novas ideias sejam acolhidas e implementadas.

A gestão que ora se encerra em muito contribuiu para a realização da missão institucional do STJ e do CJF, tendo elevado o espírito republicano, fazendo com que os serviços judiciários fossem mantidos com excelência, a despeito das limitações orçamentárias e de pessoal, sem contar as restrições sanitárias trazida pela pandemia, que impuseram a virtualização dos serviços judiciais.

O Ministro Humberto Martins tem feito um trabalho primoroso à frente da Presidência destes dois órgãos, destacando-se no âmbito do CJF o planejamento ambiental e a implantação do Tribunal Regional Federal da 6ª Região.

À frente da Corregedoria-Geral da Justiça Federal, promovi o acolhimento e a fiscalização próprios da relevância deste órgão correcional, por meio de amplo diálogo com os tribunais.

Realizamos inspeções em todas as regiões da Justiça Federal, promovendo uma importante troca de boas práticas. Realizamos diversos fóruns, como de Conciliação, Penal e Previdenciário, ampla atenção e diálogo dedicado às corregedorias de presídios federais, além das Jornadas de Direito aqui tratadas. Ainda temos alguns meses pela frente, mas a sensação é de dever cumprido, pois foram muitas frentes atendidas, com atenção e entusiasmo.

JC – Que mensagem o senhor gostaria de deixar aos usuários internos e externos do Poder Judiciário, a partir de sua experiência como Corregedor-Geral da Justiça Federal?

JM – O Brasil é um País diverso, multiétnico, multicultural e tem um território muito extenso, com repercussões climáticas e econômicas distintas, o PIB varia muito entre as regiões. Todos estes elementos, que compõem o nosso tecido social, têm de estar presentes na tomada de decisões para a escolha das políticas administrativas.

Vejo, portanto, que precisamos de engajamento das administrações judiciárias para aprimorarmos ainda mais o serviço judicial. O futuro, que já estamos vivenciando nesta verdadeira mudança de época, é colaborativo. Não cabe mais atuar em frentes isoladas, desperdiçando inovações e tecnologias já desenvolvidas. Assim, minha mensagem é que seja mantido sempre um amplo diálogo para o intercâmbio de boas práticas, pois desta forma a Justiça Federal continuará prestando serviços de excelência aos cidadãos, de modo cada vez mais sistêmico e igualitário, mesmo nas regiões mais longínquas do País.

Nossos gestores têm de estar atentos à realidade de que prestamos um serviço jurisdicional público, e que o foco deve ser sempre o adequado atendimento dos usuários.