O óbvio e o obtuso

5 de abril de 2002

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Assim como os detratores da “arte pela arte” insistem em confundir a ética com a estética, exigindo que se faça uma “arte engajada”, boa parte dos críticos do Poder Judiciário embrenha-se por sendas que nada tem de pertinentes com as atribuições conferidas aquele segmento do Poder, perpassando, assim, províncias reservadas a outras esferas de competência, ao tempo em que reclamam interesses outros dos mais diversos estamentos da sociedade, incomodados com a maneira desassombrada com que vem sendo aplicada a Justiça que, de forma gradual e segura, se desapega das peias sempre invisíveis de antanho e dos maniqueísmos explícitos de outrora, que só se faziam necessários para o fim da manutenção das regalias daqueles que, sem embargo, jamais consideraram de boa sonoridade a palavra democracia.

Tais críticos confundem, amiúde, a aplicação das leis com o que nelas se contenha, pelo que reservam para o Judiciário as pechas de “julgar de maneira antiquada”, de “ser excessivamente formalista” ou, mesmo, de agir em desconformidade com aquilo (seja o que for) que eles timbram de “anseios mais recônditos e legítimos da sociedade”, o que só concorre para que se apregoe a falsa informação, sobretudo por entre os menos atentos, de que o Judiciário é um “mar de rosas”, paraíso no qual juízes e servidores embolsam salários nababescos e onde qualquer coisa somente se decide se houver interesses dos “graúdos da moda” a exigir proteção.

É da essência do regime democrático o pluralismo das ideias e, por isso mesmo, averba-se vênia a todos os que, racionalmente e de boa-fé, defendem o que pensam.

Mas mesmo cônscio de que ha muito a avançar para que se obtenha uma prestação jurisdicional efetivamente sintonizada com os reais interesses da sociedade, pense que o Poder Judiciário da Nação tem, sim, cumprido a sua missão institucional da maneira mais proba e eficiente possível.

A prova da afirmativa se encontra no âmbito dos Tribunais Regionais Federais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, colegiados diretamente responsáveis por significativos avanços na jurisprudência do Pais, os quais, mesmo tendo por base leis que remontam (algumas) ao final do século XIX, estão a perfilhar as vertentes doutrinarias mais atualizadas, sem desgarrar-se dos fatos e sem perder de vista a missão precípua do Poder Judiciário no Brasil: render permanente homenagem a Constituição da Republica e as leis do Pais, tal como concebido pelo ministro Jose Delgado, do Superior Tribunal de Justiça.

É consabido que o Supremo Tribunal Federal entre nós, diferentemente do que ocorre em boa parte dos países democráticos do Ocidente, que reservam as Cortes Magnas funções exclusivas de controle da constitucionalidade e cujos membros detém, inclusive, investidura temporária, debate-se com incontáveis recursos extraordinários desafiados contra acórdãos dos diversos tribunais “a quo”, o que exige do seus eminentes ministros devotamento sacerdotal no ato de desatá-los todos.

O Superior Tribunal de Justiça, órgão que, dentre outras competências, vela pela aplicação uniforme do direito federal no Pais, tem empreendido esforço notável, tanto no que diz respeito a prestação jurisdicional propriamente dita, tarefa carregada as suas Turmas, Seções e Corte Especial, como no tocante a implementação de ações em favor da interiorização da Justiça Federal e do funcionamento dos Juizados Especiais Federais (cíveis e criminais), tudo sob a inspiração de tomar mais efetiva e célere a Justiça com a qual todos sonham.

Não e diferente, no que diz a atuação dos Tribunais Regionais Federais. O Tribunal da Quinta Região, por exemplo, passou de trinta e cinco mil processos distribuídos em 1995, para sessenta e cinco mil em 1999,o que patenteia quão desinformada e a crítica que endereçada ao Judiciário, notadamente a que se esboça quando as decisões envolvem temas relacionados a direitos de servidores, prerrogativas dos aposentados ou, ainda, contra as que proclamam a inconstitucionalidade de atos que, sob a inspiração movediça da “importância superior para os destinos do Pais“, impactam a olhos vistos a Carta Política que nos rege desde 1988.

Tem sido assim, também, ao menos em Pernambuco, no que diz com as atividades carregadas a Justiça comum Estadual; ali não se tem medido esforços para aproximar a Justiça do povo e, com isso, transformá-la em valioso instrumento a serviço da cidadania.

Cumpre anotar, ainda, que todos os órgãos julgadores ora referidos já implementaram ou estão a implantar planos de gestão e programas de qualidade total, o que equivale a dizer: decidiram abandonar a chamada “administração burocrática” em favor do usa de ferramentas de qualidade, o “benchmarking”, as certificações ISO e os indicadores de desempenho; e a busca incessante do Graal que, para os jurisdicionados e para os juízes, traduz-se em uma Justiça de Resultados.

Disso esquecem, quase sempre, os detratores do Judiciário; e fazem o mesmo em relação ao infindável numero de processos que ainda abarrota os corredores e gabinetes dos juízes; e de que não ha, outrossim, nos quadros funcionais do Poder Judiciário do Pais, pessoal suficiente para realizar os serviços do Foro, a conta do grande numero de exonerações ocorridas nos últimos anos, por decorrência de um achatamento salarial que só tem concorrido para fomentar, seja a deserção – os que podem, seguem rumos novos – seja a insatisfação; ambas as situações, e intuitivo, definitivamente não concorrem para uma melhor efetivação da Justiça.

Deficiências ha, com certeza. Mas, em verdade, varias delas decorrentes muito mais de fatores exógenos aos lindes da organização judiciária do Pais, a exemplo da falta de recursos, do acanhado numero de juízes em relação ao crescimento populacional, do quantitativo exagerado de recursos e de uma sistemática recursal que se avizinha dos limites da irracionalidade.

Parafraseando Roland Barthes, o agir desses tantos que se enxergam como os mais autorizados senhores da critica, subsume-se no que o eminente autor rotula de o óbvio e o obtuso. O óbvio: a tese de que o Poder Judiciário precisa modernizar-se. O obtuso: O interesse, facilmente detectável em muitos libelos que se assacam contra a Justiça, de que se amordace a vocação de independência do Poder Judiciário – leia-­se, de que não se avance o esforço rumo ao aperfeiçoamento democrático -; de que se instaure e prevaleça o golpe institucional, risco concreto antevisto por Paulo Bonavides; de que se neutralize com eficiência qualquer processo de inserção social das legiões de inopiosos que, entre nos, clamam sem cessar para que se concretize uma justiça social efetiva, deixando-se de lado a retórica infecunda; de que se alterem distorções graves de distribuição das rendas e dos encargos, enfim, de que se faça da Constituição da Republica letra morta, só mais um livro que possa ser descartado sem consequencias por qualquer desavisado, importando pouco ou nada tudo o que de malsão possa daí advir. E imperioso que assim nunca ocorra. Por isso, tal como se disse na musica, a arte popular por excelência, e preciso estar atento e forte.