A livre iniciativa na Constituição de 1988

3 de agosto de 2022

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I. INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988, por meio dos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da liberdade empresarial, resguarda o campo de atuação do particular. A ideia de liberdade, pedra de toque na construção do Estado Democrático de Direito, vem intrinsecamente conectada à individualidade e à garantia de um espaço de autorrealização das potencialidades e capacidades de cada um.

Muito embora o Texto Constitucional também veicule disposições alusivas à construção de uma sociedade justa e solidária, enquanto diretriz coletiva, com vistas à concretização da igualdade, não valida, jamais, eventual sacrifício da liberdade em prol de uma pretensa igualdade absoluta. É dizer, não há justiça sem liberdade. A conciliação dessas duas vertentes é o grande desafio da contemporaneidade.

A perspectiva não é diferente quando se trata da economia. Em muitas passagens da Carta da República nota-se o estímulo à liberdade empresarial como pilar estruturante da ordem econômica brasileira. Tanto é assim, que, nada obstante os agentes estejam sujeitos à regulação do Poder Público em prol de interesses sociais, numa leitura sistêmica da Lei Maior depreende-se que a livre iniciativa e a propriedade privada são tidas como elementos fundantes da vivência coletiva em nosso País.

Logo, não se pode perder de vista a adoção de um regime econômico que prestigie o “ser livre” e o caráter inventivo e empreendedor que resulta de tal esfera de autorrealização. Por tal ângulo, a atuação estatal, quer se dê na forma de intervenção direta na economia, quer se realize mediante a regulação de uma dada atividade, deve ser modulada de forma a não fazer pender para um dos lados a balança finamente ajustada pelo constituinte originário e, assim, inviabilizar o campo de atuação do particular.

O Poder Judiciário assume importante papel na manutenção desse equilíbrio entre público e privado. Ao ser chamado a decidir quando surge conflito entre as duas esferas, cabe-lhe dar concretude às balizas delineadas em nossa Constituição à luz do conceito de liberdade nela encerrado.

Pretende-se, com este ensaio, avançar nesse campo de preocupações, desenvolvendo-se a ideia do que é ser livre, em especial sob a vertente empresarial, e como essa noção se encontra contemplada na Constituição Federal de 1988.

II. POR UMA IDEIA DE LIBERDADE

Para enfrentar o tema da liberdade empresarial, cumpre, de início, consignar o alcance do conceito base, isto é, liberdade, e os diferentes sentidos que o termo assumiu no curso do tempo[1]. Ainda que não seja a intenção, aqui, descer à análise minuciosa de cada um deles, vale fazer um breve resgate das acepções que vigoraram ao longo da história.

Em estudo seminal acerca da noção de liberdade, Isaiah Berlin a aborda a partir de duas perspectivas, uma negativa e outra positiva. Se, por um lado, a noção assume viés relacionado à proteção de direitos fundamentais como típicas áreas imunes à intervenção estatal, por outro também estaria relacionada à capacidade do próprio indivíduo de desenvolver um projeto de vida[2].

A primeira acepção pressupõe a ausência de qualquer coação exterior, de tal sorte que, para ser livre, o indivíduo não poderia ter suas atividades restringidas por ninguém. Eventual limitação só haveria de ser imposta formalmente, isto é, mediante lei, que ditaria as balizas para a livre atuação do ser. Está-se no campo da não interferência, no qual ao homem é permitido atuar sem obstrução alguma. Trata-se, assim, de uma dimensão da liberdade oponível não apenas aos demais indivíduos mas principalmente em relação ao Estado, traduzida na ideia de abstenção em relação ao indivíduo.

Sob o ângulo positivo, por sua vez, a palavra “liberdade” traduz, segundo Berlin, a concretização da individualidade, consideradas as potencialidades e capacidades de cada pessoa. Relaciona-se, portanto, com a delimitação e o controle de um projeto de vida que, em última análise, implicaria a ideia de autorrealização ou de autodomínio[3].

Avançando à óptica clássica do liberalismo, o significado de uma sociedade livre está intrinsecamente conectado à vertente negativa preconizada por Berlin[4]. Remete à abstenção estatal, excepcionada tão somente quando em jogo a proteção de um direito fundamental de terceiro, sempre segundo o corolário da legalidade[5]. Tal interpretação não conversa com a concretização material da liberdade. Em outras palavras, não interessa, por esse ângulo, se o indivíduo de fato tem capacidade para autorrealizar-se. Considerando o dogma liberal, para que uma sociedade possa ser considerada livre, basta estar fundada em consonância com o corolário do laissez-faire. Apenas se faz necessário, portanto, que o indivíduo detenha direitos legalmente estabelecidos e esteja submetido a deveres também normativamente prescritos[6].

Ante a necessária conexão com existência de lei – como se anotou, único veículo de limitação do “ser livre”[7] – referida perspectiva de liberdade acabou sendo reconhecida como formalista. Esse modelo, em que pese tenha sido fundamental para a legitimação do ideário burguês nascido com a Revolução Francesa, mais tarde se revelou insuficiente em vista das complexidades surgidas, em especial a profunda desigualdade social.

A necessidade de repensar a ênfase na liberdade mostrou-se tão essencial que no mundo inteiro diversas constituições passaram a contemplar, em especial a partir do Século XX, maior papel interventivo ao Estado, a fim de, por meio de prestações positivas, garantir um patamar mínimo de existência digna. Desponta o chamado Estado de Bem-Estar Social, que assume para si as mais variadas atribuições, de promotor de maior igualdade material até – e sobretudo – de principal responsável pelo crescimento econômico.

Acompanhando tal agigantamento, e em oposição à versão minimalista até então reinante, assoma a necessidade de cada vez mais recursos, angariados principalmente por meio de maior arrecadação de tributos. Sob esse ângulo, importa observar que a atividade financeira do Estado ganha novo alcance em termos de instrumento de legitimação do ente político, deixando de ser encarada como própria a garantir a liberdade individual, por meio do financiamento do aparato estatal, para ser interpretada como o preço que se paga a fim de que o Estado, ao promover a igualdade, venha a concretizar a liberdade das parcelas mais pobres da sociedade. A ênfase na igualdade, e na consequente intervenção do Estado, faz com que o ideal de liberdade assuma tônica inédita[8].

Ocorre que, diante da expansão desenfreada do campo de atuação estatal, passa a ficar evidente a ineficiência do modelo de bem-estar social, não apenas como força motriz do crescimento econômico, mas até como indutor de melhor redistribuição de renda[9]. Entre as críticas direcionadas a tal modelo, há o risco que a intervenção excessiva e a exagerada receita tributária poderiam representar em termos de aniquilação da própria liberdade, motivando, assim, uma repactuação constitucional.

Sobreveio tal repactuação já no fim do Século XX, com o surgimento do chamado Estado Democrático de Direito, voltado a conciliar as preocupações inerentes ao paradigma do bem-estar social sem renunciar a um espaço próprio à iniciativa privada. O modelo estatal decorre do reconhecimento de que, sem o concurso dessa última, o qual só se faz possível a partir do respeito à livre iniciativa, é inviável alcançar o crescimento econômico e a redistribuição de renda pretendidas.

Devolve-se à sociedade o protagonismo na conformação dos objetivos coletivos da comunidade política, conferindo-se a ela espaços de atuação que não mais dependem da ingerência nem se submetem ao julgo planejador do Estado[10]. Assume-se, na liberdade de iniciativa, o potencial disruptivo próprio e inovador da nova era que se inicia, na busca por soluções criativas aos desafios impostos, inclusive no que toca à promoção de uma vivência mais solidária.

Ao Estado cumpre proporcionar os meios para que tal concretização seja viabilizada, não mais em uma perspectiva individualista, inerente ao liberalismo clássico, mas outra na qual a esfera econômica seja regulada a partir de um caráter subsidiário[11]. Esse novo tipo de Estado, longe de sufocar a esfera privada com a expansão indevida do setor público, prestigia a atuação em parceria com a sociedade, reconhecendo nesta a autoridade para solucionar os seus problemas[12].

A liberdade ganha nova feição, passando a protagonista na delimitação do agir estatal. Pelo ângulo coletivo, volta a ser centrada na sociedade civil – em vez de no Estado – o que representa sua emancipação na qualidade de agente transformador da realidade, conquanto assumindo o tensionamento intrínseco a tal emancipação em face do poder estatal.

Devedora desse momento histórico[13], a Constituição Federal promulgada em 1988 sintetiza o ideal de liberdade republicano, que representa, em última análise, a concepção de ausência de dominação[14]. É dizer, extrapola a compreensão clássica do que é ser livre, a qual, como se viu, reduz-se à ausência de constrangimento externo à conduta dos agentes econômicos. A sociedade livre, considerada a vertente que norteou o constituinte originário, é aquela que defende a existência de arranjos institucionais não só aptos a delimitarem a atuação do Estado, mas, principalmente, capazes de enfrentar relações políticas, sociais e econômicas cuja nota característica seja a dependência ou submissão de um indivíduo em relação a outro de tal modo que sua liberdade termina sufocada[15].

Dito de outra forma, a liberdade material começa a ser enxergada para além da abstenção do Estado, passando a revelar preocupação também com as condições materiais de autodeterminação dos indivíduos. Então, para a liberdade sob essa perspectiva ser considerada efetivada, é preciso, por óbvio, que o indivíduo tenha garantido um espaço de inviolabilidade em relação ao poder político, mas também que lhe seja franqueado acesso a uma esfera de reivindicações por melhores condições de vida, descrevendo-se uma garantia constitucional de reconhecimento da sensibilidade e acessibilidade a alternativas de conduta e resultado[16]. Para tanto, faz-se essencial a atuação estatal, não como antes, na forma preconizada pelo modelo social de Estado, mas em uma vertente própria aos desafios impostos pelo Século XXI, na qual sejam calibrados espaços de intervenção e de abstenção, otimizados os esforços, públicos e privados, na busca pela gestão eficiente e equânime dos recursos escassos[17].

Logo, a efetivação de uma sociedade livre não se limita a sua vertente liberal clássica, prescrita em nossa Carta de 1988 a partir dos princípios da livre iniciativa e da proteção à propriedade privada. Embora represente substrato importante do Documento Maior, que vê nesses preceitos os pilares de nosso modelo econômico, não devemos ignorar que tais garantias foram inseridas no texto constitucional ao lado de princípios como o da valorização do trabalho humano e o da necessidade de observância da função social dos direitos individuais. Como afirma Tercio Sampaio Ferraz Júnior[18], uma ideia de liberdade deve abandonar o viés próprio à plena abstenção estatal para ser reconstruída em torno de um sentido socialmente comprometido[19].

Por outro lado, também não se pode conferir à igualdade – e à intervenção estatal em prol desta – caráter absoluto e inafastável. Apenas com o respeito à liberdade se poderá concretizar um ideal de justiça e igualdade em que o espaço do indivíduo essencial a sua autodeterminação seja preservado. De nada adianta buscar a igualdade e ao mesmo tempo negar voz a cada um dos sujeitos, tolhendo-lhes a autonomia, indispensável ao conceito material de liberdade, de buscar na projeção de seu futuro uma vida melhor.

Sendo assim, é de se observar a tênue linha que demarca a atuação dos particulares e do Estado. A existência de nossa comunidade política é fundada em ideais que, em aparente tensão, devem ser harmonizados na busca da pacificação social. A Constituição Federal de 1988 é reflexo dessa relação dicotômica que existe no âmago da ideia de liberdade.

III. A LIVRE INICIATIVA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Desde o Preâmbulo, o Texto Constitucional é minucioso no trato da liberdade. Como se fez ver, sob as mais variadas vertentes a temática assume papel fundante em nosso Estado Democrático de Direito, reclamando, de um lado, espaço próprio ao indivíduo e, de outro, o reconhecimento do protagonismo da sociedade civil.

Quando se trata das relações econômicas realizadas no âmbito do mercado, encontra-se na livre iniciativa e na livre concorrência, ao lado da propriedade privada, importantes desdobramentos desse princípio geral alusivo à liberdade. Todos eles igualmente guarnecidos pelo expresso tratamento atribuído pela Carta Maior.

Tem-se, assim, já no art. 1º, a eleição da livre iniciativa como um dos fundamentos do Estado brasileiro. Aponta-se, ainda, no art. 3º, constituir objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

No campo dos direitos e garantias fundamentais, vê-se, no caput do art. 5º, a garantia, considerados brasileiros e estrangeiros residentes no País, do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso XIII do mesmo dispositivo estabelece ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Já a liberdade associativa vem balizada entre os incisos XVII e XXI, ao passo que a propriedade privada é regida pelos incisos XXII a XXVI. O inciso XXIX prevê que a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, além de proteção às criações, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do Brasil.

Ao avançarmos ao Título VII, notamos que a Constituição Federal contempla a liberdade logo no art. 170. Ali dispõe sobre a ordem econômica, a qual, a par de ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, de acordo com os ditames da justiça social. Entre os princípios enumerados inclui-se o de que serão observados a soberania nacional; a propriedade privada; a função social da propriedade; a livre concorrência; a defesa do consumidor; a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; a redução das desigualdades regionais e sociais; a busca do pleno emprego; e o tratamento favorecido das empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no País. No parágrafo único, reforça-se o protagonismo dado ao indivíduo na esfera econômica, assegurando-se o livre exercício de qualquer atividade, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Por meio do art. 173, é reafirmado o caráter subsidiário da atuação do Estado no que toca à exploração direta da atividade econômica, a qual, ressalvados os casos previstos na Constituição, só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, nos termos definidos em lei.

O art. 174 disciplina a forma como se desenvolverá a relação do Estado enquanto agente normativo e regulador da atividade econômica. Confere-se a ele a atribuição para exercer, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, previsto este como determinante para o setor público e indicativo para o privado.

Como se pôde observar, a liberdade assume posição ímpar na estruturação da comunidade política, dialogando com as outras prescrições constitucionais com vistas à máxima efetivação. É bem verdade que sua concretização não passa ao largo da consumação dos demais princípios constitucionais, a exemplo da valorização do trabalho humano[20]. Todavia, a leitura em conjunto de todas essas disposições não deixa dúvida quanto à adoção de um regime econômico característico de livre mercado[21].

Embora não seja absoluta, a livre iniciativa, vertente da liberdade, deve ser prestigiada. A intervenção estatal, balizada pelos princípios e regras constitucionais, se realiza em caráter subsidiário. Em verdade, o Estado é chamado a atuar para corrigir eventuais falhas alocativas do mercado, sempre com respeito aos objetivos traçados por nossa comunidade política por meio da Carta Maior.

Tal perspectiva subsidiária, por sua vez, não pode ser menosprezada. Com efeito, cabe ao Estado a importante função de regular certos aspectos da atividade econômica, mediante agências próprias a tal fim, ou, ainda, operar diretamente na economia, por intermédio das empresas públicas e sociedades de economia mista. A atuação ainda se fará presente na hipótese de haver algum interesse de ordem pública que o mercado, por si só, não possa alcançar[22].

Para além disso, a própria previsão de que a ordem econômica se fundará na livre concorrência induz o Estado a certa atuação positiva na vigília contra práticas atentatórias a tal princípio, como a organização de cartéis ou a concentração e controle da atividade econômica em poucos agentes. É dizer, eventualmente deverá o agente público atuar na esfera privada com o escopo de limitar o exercício da autonomia das vontades, de molde a manter um ambiente econômico saudável e competitivo. Não por outra razão o § 4º do art. 173 dispõe que a “lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”, enquanto o § 5º direciona também à lei estabelecer a responsabilidade da pessoa jurídica, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, em relação aos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Por esse ângulo, vale anotar, destaca-se a atuação do Estado em prol do consumidor, por meio de mecanismos próprios à defesa do hipossuficiente nas relações econômicas ali travadas ou mesmo a favor da proteção do meio ambiente, seja coibindo atuações predatórias, seja induzindo práticas positivas.

Isso, ressalte-se, sem mencionar a busca do pleno emprego e a valorização do trabalho humano, ideais que, caminhando ao lado da livre iniciativa, traduzem a relação de “tensão harmônica” característica da ordem econômica pátria.

A Constituição, assim, opta por um regime voltado à esfera econômica, que, por seu turno, se estrutura a partir da propriedade privada e do livre mercado. Valoriza a livre iniciativa, a título de mola propulsora do desenvolvimento econômico e social, ao mesmo tempo que confere ao Estado papel subsidiário, reduzindo sua intervenção aos casos – e em prol dos objetivos – constitucionalmente contemplados, vedada qualquer ação apta a sufocar o particular[23]. Mas, ainda assim, busca contemplar os valores sociais – do trabalho e da propriedade – sinalizando à sociedade as balizas próprias a atuação econômica, sem nunca descuidar do fim último de assegurar a todos uma vida digna.

IV. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, O ESTADO E A LIVRE INICIATIVA

Não raro o Supremo é acionado, na condição de detentor da última palavra sobre o sentido das disposições constitucionais, para estabelecer as balizas da fina relação entre o setor público e a iniciativa privada.

Com efeito, chama a atenção a profusão de casos nos quais envolvida, direta ou indiretamente, a ordem econômica. Cumpre pinçar alguns, a pretexto de ilustrar o papel exercido pela Corte na densificação da livre iniciativa.

Nesse contexto, é de destacar o Recurso Especial (RE) 635.546, cujo acórdão foi redigido pelo Ministro Roberto Barroso, no qual se discutia, à luz da possibilidade de terceirização já reconhecida pelo Tribunal, a equiparação remuneratória entre os empregados da empresa contratada e os da empresa pública tomadora dos serviços quando em tela a atuação na atividade-fim. Na ocasião, privilegiando os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, naquilo que buscam garantir aos agentes econômicos a autonomia para decidir como estruturarão seu negócio, o Supremo fez consignar o entendimento segundo o qual “a decisão sobre quanto pagar ao empregado é tomada por cada empresa, de acordo com suas capacidades econômicas, e protegida pelos mesmos princípios constitucionais”. Assentou, assim, a impossibilidade de se sujeitar a contratada à decisão da tomadora, e vice-versa, fixando a tese de repercussão geral: “A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.445, redator do acórdão o Ministro Dias Toffoli, colocou-se em discussão lei do Estado do Pará que previa a redução das mensalidades devidas aos estabelecimentos da rede privada de ensino durante a crise sanitária decorrente do novo coronavírus. Ao apreciar a controvérsia, o colegiado afastou óptica segundo a qual a lei preconizava disciplina consumerista. Conforme constou do acórdão, “a lei em comento interfere na essência do contrato, de forma a suspender a vigência de cláusulas contratuais que se inserem no âmbito da normalidade dos negócios jurídicos onerosos, matéria ínsita ao Direito Civil, sobre a qual compete à União legislar”.

Todavia, para além do vício alusivo à competência legislativa, o Supremo deu importante passo na densificação da liberdade de iniciativa ao reconhecer que o legislador estadual teria avançado indevidamente na esfera de autonomia empresarial, “na medida em que impôs uma redução de receita às instituições de ensino do estado, sem qualquer contrapartida e de forma anti-isonômica, já que atribuiu especificamente ao setor da educação privada o dever de compensar os prejuízos experimentados pelos particulares em razão da pandemia, sendo certo, ainda, que a estipulação de descontos lineares não necessariamente importa em benefício para os usuários do sistema de ensino, pois retira das partes contratantes a capacidade de negociar formas de pagamento que se adequem à especificidade de cada situação”.

Outro caso paradigmático em que reforçada a liberdade de empresa foi o do RE 1.054.110, da relatoria do Ministro Roberto Barroso, cuja discussão dizia respeito à proibição do uso de carros particulares para o transporte remunerado individual de pessoas por meio de aplicativos. Questionava-se a licitude da exploração de tal atividade em mercado até então exclusivo aos taxistas.

A relevância da questão jurídica ali em debate era evidente na medida em que envolvidos os impactos de um novo modelo negocial, em muito ocasionado pelo ímpeto inovador que veio na esteira dos avanços tecnológicos, algo próprio a um ambiente de liberdade não apenas econômica mas também – e principalmente – criativa.

Na oportunidade, posicionando-se pela inconstitucionalidade da lei municipal que vedava a atividade, o Supremo concluiu que “a admissão de uma modalidade de transporte individual submetida a uma menor intensidade de regulação, mas complementar ao serviço de táxi afirma-se como uma estratégia constitucionalmente adequada para acomodação da atividade inovadora no setor”. Fez consignar que tal forma negocial não só prestigiava a livre iniciativa e a livre concorrência como incentivava a inovação, favorecia a mobilidade urbana, ao mesmo tempo que protegia o meio ambiente e o consumidor, e ainda corrigia ineficiências de um segmento econômico historicamente monopolista.

Importante menção é de ser feita também ao que decidido no RE 839.950, Relator o Ministro Luiz Fux, quando a Corte se debruçou sobre o exame da constitucionalidade de leis municipais a obrigarem supermercados e congêneres à prestação de serviço de empacotamento em relação aos itens adquiridos no local.

Mais uma vez, para além da usurpação da competência privativa da União no tratamento da matéria, a Corte assentou que “o princípio da livre iniciativa, plasmado no art. 1º, IV, da Constituição como fundamento da República e reiterado no art. 170 do texto constitucional, veda a adoção de medidas que, direta ou indiretamente, destinem-se à manutenção artificial de postos de trabalho, em detrimento das reconfigurações de mercado necessárias à inovação e ao desenvolvimento, mormente porque essa providência não é capaz de gerar riqueza para trabalhadores ou consumidores”. Destacou-se que a lei municipal, ao impor a exigência quanto à prestação do serviço em tela, desaguaria na ampliação dos custos a serem repassados aos consumidores quando da aquisição dos produtos. Eis a tese de repercussão então fixada: “São inconstitucionais as leis que obrigam supermercados ou similares à prestação de serviços de acondicionamento ou embalagem das compras, por violação ao princípio da livre iniciativa (art. 1º, IV, e 170 da Constituição)”.

Conquanto em situações outras a Corte possa ter proclamado a legitimidade da intervenção estatal no domínio econômico, em especial na busca pela proteção de outros princípios e valores caros ao texto constitucional, os precedentes aqui analisados bem denotam o importante papel do colegiado na garantia da liberdade econômica e na densificação das balizas que conformam o espaço de atuação do particular.

V. CONCLUSÃO

Do raciocínio desenvolvido verifica-se que a interação entre as esferas pública e privada não se mostra tranquila. Ao contrário, tem sido objeto de disputas, expansões e restrições ao longo da história e dos diferentes modelos de Estado adotados pelas comunidades políticas.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no entardecer do Século XX, abre-se a uma nova era, livre das amarras inerentes à adoção deste ou daquele campo ideológico. Acomoda as disputas travadas ao longo das últimas décadas e se apresenta como um texto moderno e atemporal, excelente para o enfrentamento dos desafios surgidos e a surgirem nestes novos tempos, em que ora se demanda maior atuação do Poder Público, ora se imprime maior espaço de liberdade ao particular, mas jamais se desdenha do protagonismo e da centralidade conferidos à sociedade civil.

A linha tênue traçada pela Carta Maior impõe aos atores atenção contínua aos fluxos e influxos compreendidos na concretização da liberdade enquanto princípio fundante de nossa comunidade política. Quando envolvida a ordem econômica, contexto no qual a liberdade assume a vertente própria da livre iniciativa, é de se conferir ao empresário, pessoa física ou jurídica, o papel de maior destaque, isto é, de principal agente da inovação ou desenvolvimento, mas sem nunca se perder de vista que os avanços alcançados devem gerar retorno à coletividade.

Esse, de certo modo, é o paradigma deste século. Revela-se uma estrutura produtiva que, embora eminentemente capitalista, não descuida dos compromissos com metas socialmente relevantes. Nasce um modelo econômico que, no mesmo passo que entrega ao agente privado a primazia na condução do desenvolvimento econômico, delega ao Estado importante atuação subsidiária na correção de rumos e na proteção dos interesses da coletividade.

É essencial, para o Estado, no alvorecer deste novo tempo, manter a prudência e a autocontenção, a fim de que a intervenção, quando se fizer necessária, não venha a se tornar excessiva a ponto de retirar da sociedade a centralidade atribuída pelo constituinte de 1988.

Ao Supremo, guardião último da Carta, cumpre zelar para que as balizas traçadas sejam observadas por todos, sempre com o objetivo último de privilegiar o ideal da liberdade, que é tão caro a todos nós e, na esfera econômica, se apresenta como pedra fundante de nossa realidade.

NOTAS______________________

[1] “A palavra Liberdade tem uma notável conotação laudatória. Por esta razão, tem sido usada para acobertar qualquer tipo de ação, política ou instituição considerada como portadora de algum valor, desde a obediência ao direito natural ou positivo até a prosperidade econômica. Os escritos políticos raramente oferecem definições explícitas de Liberdade em termos descritivos: todavia, em muitos casos, é possível inferir definições descritivas do contexto.” (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. “Dicionário de política”. 13ª edição. Brasília: Editora UnB, 2007. p. 708).

[2] BERLIN, Isaiah. “Two concepts of liberty”. In: BERLIN, Isaiah. Four Essays on Liberty. New York: Oxford University Press, 1969. p. 119-172.

[3] “The ‘positive’ sense of the word ‘liberty’ derives from the wish on the part of the individual to be his own master. I wish my life and decisions to depend on myself, not on external forces of whatever kind. I wish to be the instrument of my own, not of other men’s acts of will. I wish to be a subject, not an object; to be moved by reasons, by conscious purposes, which are my own, not by causes which affect me, as it were, from outside. I wish to be somebody, not nobody; a doer-deciding, not being decided for, self-directed and not acted upon by external nature or by other men as if I were a thing, or an animal, or a slave incapable of playing a human role, that is, of conceiving goals and policies of my own and realizing them. This is at least part of what I mean when I say that I am rational, and that it is my reason that distinguishes me as a human being from the rest of the world. I wish, above all, to conscious of myself as a thinking, willing, active being, bearing responsibility for my choices and able to explain them by references to my own ideas and purposes. I feel free to the degree that I believe this to be true, and enslaved to the degree that I am made to realize that it is not.” (BERLIN, Isaiah. “Two concepts of liberty”. In: BERLIN, Isaiah. Four Essays on Liberty. New York: Oxford University Press, 1969. p. 131).

[4] BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; BELLUZO, Luiz Gonzaga. “Capitalismo, neoliberalismo e democracia: Propostas para uma agenda de pesquisa”. In: ALMADA, Jhonatan; JABBOUR, Elias; PAULA, Luiz Fernando de (orgs.). Repensar o Brasil. Rio de Janeiro: AMFG, 2020. p. 19.

[5] “A democracia e a aristocracia não são Estados livres por natureza. A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite.” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. “O espírito das leis”. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 166-167).

[6] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. “Dicionário de política”. 13ª edição. Brasília: Editora UnB, 2007. p. 711.

[7] “[A] liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. Deve-se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este poder.” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. “O espírito das leis”. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 166).

[8] Luís Eduardo Schoueri, ao marcar a passagem do Estado liberal para o social, no que toca à conformação de ideal de liberdade, ressalta que “a liberdade ganha nova feição, pois passa a ser coletiva. Já não mais se pode considerar o cidadão livre, se o ambiente em que se insere é marcado por desigualdades sociais. Não goza de liberdade aquele que, em um ambiente desigual, isola-se em sua propriedade, qual prisioneiro dentro de seu próprio ambiente. A liberdade somente pode ser fruída quando todos têm acesso a ela. A sociedade, não o indivíduo, é que está no centro da liberdade” (SCHOUERI, Luís Eduardo. “Direito tributário”. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 28).

[9] TORRES, Ricardo Lobo. “Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário”. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. 1, p. 539-542.

[10] “Com efeito, no Estado do Século XXI, a liberdade já não tem as características individualistas, próprias do Século XIX, mas tampouco recai no exagero do Estado do Bem-Estar Social, que se buscou no Século XX. No Estado doSéculo XXI, a liberdade assume nova feição, síntese da exacerbação do individualismo, própria do liberalismo e do Estado, característica do Estado Social: o Estado é afastado e a sociedade civil reivindica para si espaço que fora ocupado por aquele.” (SCHOUERI, Luís Eduardo. “Direito tributário”. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 29).

[11] Nas palavras de Ricardo Lobo Torres, “a mudança de ênfase operada nas relações entre Estado e sociedade com o advento do Estado Democrático e Social Fiscal faz com que o Estado Orçamentário se redirecione no sentido de assumir as características de Estado Subsidiário. O fenômeno do primado da sociedade sobre o Estado, que se observa na fase presente do liberalismo social, trouxe a tendência de a própria sociedade resolver os seus problemas, restando ao Estado atuar subsidiariamente, nos espaços nos quais haja carência de meios e de recursos societais. O Estado Orçamentário Subsidiário vai perdendo as grandes incumbências que assumira em décadas anteriores e a própria comunidade passa a se responsabilizar pelos gastos como desenvolvimento econômico. O Estado orçamentário Subsidiário é sobretudo o guardião da moeda, o regulador e garantidor da concorrência e do consumo e o prestador de serviços nas áreas da educação, saúde e seguridade para a defesa dos direitos fundamentais, sociais, econômicos e difusos.” (TORRES, Ricardo Lobo. “Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário”. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. 1, p. 552-553).

[12] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. “Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal”. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 4, p. 10, nov./dez. 2005, jan. 2006.

[13] TORRES, Ricardo Lobo. “Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário”. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. 1, p. 543.

[14] SARMENTO, Daniel. “Por uma república inclusiva: usos e abusos do princípio republicano nos 30 anos da Constituição Federal”. In: BOLONHA, Carlos et al. (coord.). Trinta anos da Constituição de 1988: uma jornada inacabada. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 65.

[15] De acordo com Daniel Sarmento, “o ideário republicano visa também a assegurar a cada cidadão as condições necessárias para o exercício da sua liberdade, não só perante o Estado, como também diante dos poderes sociais privados. Essa pretensão requer, muitas vezes, a intervenção estatal nas relações sociais. Portanto, a república não se concilia com o abstenseísmo do Estado diante de fortes assimetrias de poder e opressão das partes mais vulneráveis. Republicanos normalmente endossam a conhecida máxima de Lacondaire: ‘entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta’”. (SARMENTO, Daniel. “Por uma república inclusiva: usos e abusos do princípio republicano nos 30 anos da Constituição Federal”. In: BOLONHA, Carlos et al. (coord.). Trinta anos da Constituição de 1988: uma jornada inacabada. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 66).

[16] GRAU, Eros. “A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica”. 18ª edição atualizada. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 197.

[17] MARTINS, Ives Gandra da Silva. “O Direito Econômico na Constituição de 1988”. In: NUSDEO, Fábio (coord.). A ordem econômica constitucional. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 40.

[18] FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. “Estudos de filosofia do Direito: Reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o Direito”. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. p. 109.

[19] Diz Amartya Sen que é essencial “favorecer a criação de condições nas quais as pessoas tenham oportunidades reais de julgar o tipo de vida que gostariam de levar. Fatores econômicos e sociais como educação básica, serviços elementares de saúde e emprego seguro são importantes não apenas por si mesmos como pelo papel que podem desempenhar ao dar às pessoas a oportunidade de enfrentar o mundo com coragem e liberdade. Essas considerações requerem uma base informacional mais ampla, concentrada particularmente na capacidade de as pessoas escolheram a vida que elas têm razões para valorizar.” (SEN, Amartya. “Desenvolvimento como liberdade”. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 82).

[20] Sob o ponto, inclusive, bem destaca Luís Eduardo Schoueri que “a inserção de ambos os valores em conjunto, por duas vezes no texto constitucional, revela uma opção do constituinte por um convívio harmônico entre ambos, não permitindo que em nome de um dos valores seja o outro reduzido. Impõe-se, então, à ordem econômica buscar uma solução em que a livre-iniciativa seja a forma como se dará a valorização do trabalho humano, ou, noutro sentido, seja a valorização do trabalho humano uma garantia para o exercício da livre-iniciativa”. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Norma tributária indutora e intervenção econômica”. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 85.

[21] MARTINS, Ives Gandra da Silva. “O Direito Econômico na Constituição de 1988. In: NUSDEO, Fábio (coord.). A ordem econômica constitucional. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. P. 40.

[22] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. “Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal”. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 4, p. 13, nov./dez. 2005, jan. 2006.

[23] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. “Limites à abrangência e à intensidade da regulação estatal”. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 4, p. 21, nov./dez. 2005, jan. 2006.