A Reforma tributária do Consumo e Desafios do Senado

6 de setembro de 2023

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Não há tema mais nobre, na atualidade, do que a reforma tributária. O Sistema Tributário Nacional atual impacta negativamente o crescimento do País e revê-lo é dever irrenunciável daqueles que detêm o poder, ainda que impopular.

Os principais objetivos da reforma são de consenso: simplificação, maior justiça fiscal, neutralidade, transparência, eliminação de litígios decorrentes de conflito de competências e de limitações à não-cumulatividade.

Os desafios são enormes e, por isso, deve-se aplaudir quem se dedica ao tema. Isso não significa concordância cega com as proposições em andamento, especificamente com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 45, cuja análise será iniciada pelo Senado, e deve ser objeto de importantes debates e aprimoramentos.

O objetivo do presente, sem a intenção de esgotar o assunto, é abordar alguns aspectos de preocupação da reforma tributária, de três perspectivas, quais sejam: dos entes estatais, dos contribuintes em geral e das sociedades de profissões regulamentadas. 

Antes, apesar de ser inegável que a PEC, em sua redação original, está colocada na mesa faz tempo, tampouco se pode rejeitar o fato de que a redação final da PEC submetida à votação, com alterações significativas, foi apresentada minutos antes do início da votação e que, durante os trabalhos, foi modificada. É inadmissível que assunto de tal relevância tenha sido assim conduzido na Câmara dos Deputados, fazendo com que parlamentares tenham votado sem ter ciência prévia, com clareza e precisão, do objeto da votação, e de suas implicações. Pior, a dispensa do interstício regimental de cinco sessões, também resultante de votação por maioria, demonstra precipitação e imprudência no trato do tema.

Dito isso, a primeira questão que se coloca é se, efetivamente, a criação do Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) constitui – ou não – medida tendente a abolir a forma federativa de Estado, o que é vedado, nos termos do art. 60, §4º, I da Constituição Federal.

Muito embora entendamos que estados e municípios possam instituir órgão dotado de competência para editar normas infralegais sobre o IBS, de observância obrigatória por todos os entes que o integram, bem como uniformizar, de forma vinculante, a interpretação e aplicação da legislação do IBS, é de constitucionalidade duvidosa a atribuição a tal órgão de poder de arrecadação e de distribuição dos recursos.

Isto porque a autonomia inerente à forma federativa do Estado exige que certos atributos mínimos da personalidade dos estados e municípios sejam preservados, dentre os quais, nos parece, arrecadar o tributo, no caso, o principal tributo de tais entes, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) respectivamente, ou o IBS que os venha a substituir. O atributo de arrecadar materializa o direito à imediata e incondicional disponibilidade financeira do tributo, permitindo ao ente cumprir suas obrigações na forma e tempo devidos, fazer investimentos, etc., enfim, gerir o caixa. Depender da distribuição do Conselho Federativo, quando o acesso aos recursos já poderia estar disponível, pode colocar em risco, e até prejudicar, uma reação estatal rápida diante de uma urgência ou, até mesmo, de uma calamidade, por exemplo.

Inúmeros litígios já ocorreram em decorrência de questões de repasses do ICMS para municípios, envolvendo, por exemplo, o cálculo do valor a ser repassado, atrasos, etc., o que evidencia a importância da questão aqui colocada. Deve-se lembrar também que o administrador público no Brasil está – muitas vezes e em algumas ocasiões até diuturnamente – lidando com escolhas trágicas, e a imediata disponibilidade financeira pode ser justamente o diferencial para permitir o adequado exercício de suas funções, com respeito à dignidade dos particulares. E, caso algum estado ou município não implementar minimamente ou suspender algum direito fundamental por descaso ou má gestão, não se pode descartar a possibilidade do Judiciário intervir e determinar a aplicação de recursos financeiros em tal necessidade, recursos esses à disposição do Conselho Federativo antes de sua distribuição, prejudicando estados e municípios responsáveis e atentos à coisa pública.

Em suma, cremos ser da essência da autonomia de estados e municípios o direito de arrecadar. Dessa forma, a fim de evitar a configuração de uma medida tendente a abolir a forma federativa, é fundamental que o Senado examine o tema com cautela, mantendo o atributo de arrecadar com os estados e municípios, com o devido equacionamento dos papéis do Conselho Federativo que, não obstante, pode continuar fiscalizando tais entes públicos, inclusive o ressarcimento de créditos acumulados, e sendo financiado pelos mesmos, na medida de seus gastos em compartilhamento de custos.

Em segundo lugar, preocupa a carga tributária resultante da reforma, da combinação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) federal e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Como disposto na PEC 45, cada ente, estado ou município, fixará alíquota própria por lei específica, que deve ser a mesma para todas operações com bens e serviços, ressalvadas hipóteses na Constituição. Potencialmente, pode haver milhares de alíquotas considerando os mais de cinco mil municípios. Há também na PEC atribuição de competência para os estados e o Distrito Federal instituírem nova contribuição sobre produtos primários e semielaborados em certas situações.

Tais previsões, por si só, a depender das alíquotas de CBS e IBS ao final estabelecidas, podem resultar em grande desarranjo econômico, com as consequências daí advindas, como, por exemplo, alguma inflação, maior informalidade e sonegação. Na atualidade há em alguns estados alíquotas adicionais de ICMS destinadas a fundos de diversas naturezas (em especial o de combate à pobreza), taxas estaduais e municipais, etc., que, se aplicadas com os novos tributos, mesmo em transição, potencializarão o desarranjo.

Por isso, para proporcionar previsibilidade, é fundamental que a alteração constitucional envolva o estabelecimento, desde já e para funcionar como um teto limitador, de um percentual resultante da soma das alíquotas da CBS e da maior possível do IBS, ou um teto para cada tributo. Se ainda não é possível indicar tal teto, a prudência exige aprofundar estudos econômicos até que se identifique tal limite, para só então prosseguir com o debate deste modelo no Congresso.

Por último, mas não menos importante, há o tema das sociedades de profissões regulamentadas, ou seja, aquelas compostas por médicos, engenheiros, economistas, arquitetos, contadores, advogados, psicólogos, etc. Há preocupação de que a carga tributária de tais sociedades venha a aumentar significativamente por conta da implantação da CBS e do IBS, impactando tais sociedades, seus clientes e a concorrência.

A atenção específica e o cuidado com o tema da tributação das sociedades de profissão regulamentada são imprescindíveis, eis que as mesmas proporcionam, em contraste com outras atividades, maior possibilidade de mobilidade econômica e social da população. Isto porque o que prepondera em tais sociedades não é o capital, mas sim o conhecimento e a técnica, ou seja, a habilidade, que, inclusive, enseja responsabilidade pessoal ilimitada. Não se ganha em escala.

Até a presente data, as peculiaridades acima foram observadas pela legislação nacional, por meio da instituição de regimes de tributação diferenciados, como o lucro presumido e o Simples Nacional, bem como o SUP na apuração do ISS. Nas sociedades uniprofissionais (SUP), a base de cálculo do ISS é, em geral, um valor fixo presumidamente considerado como o preço de serviços de cada profissional habilitado a prestá-los, não correspondendo ao preço do serviço efetivo.

Rubens Gomes de Sousa, relator do anteprojeto que deu origem ao Código Tributário Nacional, explicava que o regime SUP objetivava – e busca até hoje – evitar que o ISS sobre serviços constitua um adicional do Imposto de Renda.

A migração, ainda que com período de transição, do regime atual aplicável às sociedades de profissões regulamentadas para a nova sistemática do IBS, tal qual se propõe, e CBS, terá impacto avassalador, seja em razão da majoração da carga em si, seja em função de créditos mínimos passíveis de aproveitamento.

Acerca da majoração da carga tributária, deve-se frisar ser inadequado assumir e afirmar que a sociedade conseguirá repassar o valor da CBS e IBS para clientes, quando estes forem empresas. O que ocorrerá será um achatamento de preços, acirramento da concorrência, e canibalização. Para o Simples Nacional, a opção dada se revelará como obrigação, sob pena de não ser contratada.

Assim, e na linha do já ocorrido com os setores indicados no art. 156-A, §5º, V, “b”, da PEC 45, o Senado deve incluir previsão de regime diferenciado para serviços das sociedades de profissões regulamentadas, sob pena de se prejudicar, severamente, esta parte da sociedade, com as respectivas consequências.

Em conclusão, é desejável que a reforma tributária progrida, mas, para tanto, o Senado deve enfrentar vários desafios, como os aqui expostos.