A relevância da prescrição quinquenal para a propositura de Ação Civil Pública

5 de fevereiro de 2005

Advogado e autor do livro Mandado de segurança contra atos jurisdicionais

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Uma imposição lógico-jurídica em prol da segurança jurídica e da democracaia

Tema que não tem sido enfrentado com freqüência, como recentemente reconheceu a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial de nº 406545/SP, a indicação adequada do prazo prescricional para o ajuizamento de ações civis públicas constitui assunto de extrema importância, tendo-se em vista, no plano jurídico-dogmático, os relevantes fundamentos que justificam o instituto da prescrição e, no plano prático, os nocivos efeitos que a sua incompreensão pode ensejar.

Isso porque, como é cediço, a Lei 7.347/85 é silente no que pertine à prescrição. Em face dessa lacuna, a hermenêutica sugere algumas soluções, que merecem ser examinadas, a ensejar uma solução adequada ao tema.

Derivada da locução latina praescriptio (que encerra o significado de ‘escrever antes ou no começo’), a prescrição, como se sabe, é instituto de ordem pública que corresponde à extinção de uma pretensão em virtude da inércia de seu titular durante determinado lapso de tempo, fixado pela norma, e na ausência de causas impeditivas, suspensivas e interruptivas de seu curso. Tem por fundamento a segurança jurídica, erigida a princípio e valor constitucional pela vigente Constituição da República, que consagra a inviolabilidade à segurança no caput do seu art. 5º (compreendendo, como espécie, indubitavelmente, a segurança nas relações jurídicas) e assevera em seu preâmbulo que a instituição de um Estado Democrático destina-se também a assegurá-la.

Tal como a preclusão, a coisa julgada, a decadência, o respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito etc., a prescrição igualmente visa atender a uma exigência comum de estabilidade das relações jurídicas, porquanto a idéia de sua perpetuidade contraria o anseio coletivo pela paz social e frustra o próprio escopo do Direito, que é o de promovê-la.

O instituto tem previsão em leis variadas, sendo seu regime jurídico disciplinado atualmente pela Lei nº 10.406/2002 (novo Código Civil), em seus artigos 189 e segs. O novel diploma, registre-se, teve a oportunidade de desfazer algumas impropriedades constantes do Código revogado, que identificava como de prescrição hipóteses que se afiguravam, na verdade, como de decadência. Aliás, oportuno que se aduza, atendendo-se à circunstância de que a prescrição é instituto de direito material, passou-se a usar o termo “pretensão” (art. 189), figura jurídica própria do campo do direito material, indicando-se que a prescrição se inicia no momento em que há violação ao direito, isto é, no instante em que nasce a pretensão para o seu titular.

Em virtude da relevância dos fundamentos que a justificam, a prescrição constitui a regra em nosso ordenamento, sendo a imprescritibilidade a exceção. Atentas a essa assertiva, doutrina e jurisprudência têm admitido a imprescritibilidade apenas em hipóteses excepcionalíssimas, atinentes às pretensões que visam tutelar os direitos da personalidade, as que se prendem ao estado das pessoas, dentre outras nessa direção.

No âmbito da Administração Pública, há norma específica relativa à prescrição, restando, portanto, inoponíveis à Fazenda Pública os prazos prescricionais previstos no Código Civil, face à regra da especialidade (lex specialis derrogat generali). Cumpre registrar, porém, que, no tocante às ações reais contra a Administração, o prazo prescricional tem sido considerado pelos Tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, como sendo o comum de 10 anos, sob o fundamento de que não se pode estabelecer um prazo menor de usucapião em favor dos entes públicos, posto que tal medida importaria na criação de um novo meio de adquirir não admitido por lei (Cf. STF, RF 91/401, 99/338; RT 116/792; AJ 52/155).

A prescrição atinente aos interesses da Administração Pública é disciplinada pelo antigo Decreto ditatorial (com força de lei) nº 20.910, de 6.1.1932, cujo art. 1º dispõe que “As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem”. O aludido diploma foi complementado pelo Decreto-lei nº 4.597, de 19.8.1942, que procurou estender a sua aplicação às dívidas passivas das autarquias e, ainda, às entidades de direito privado vinculadas ao Estado, componentes da Administração Indireta. No tocante a estas últimas, no entanto, o dispositivo não foi recepcionado pela vigente Constituição, já que o texto constitucional impõe a essas entidades, quando exerçam atividades econômicas, o mesmo tratamento conferido às empresas privadas.

Destarte, a prescrição qüinqüenal constitui a regra, a ser aplicada nas hipóteses de direitos pessoais de administrados contra a Administração Pública, compreendendo-se nesta expressão todas as Fazendas, as autarquias e as fundações públicas submetidas a regime jurídico de Direito público.

Nada obstante, a vigência desse comando normativo, que consagra a prescrição qüinqüenal administrativa, outros diplomas legais, igualmente ligados ao interesse público, prevêem prazos prescricionais de 5 anos, de que são exemplos a Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), em seu art. 23; a Lei 9.636/98, no inciso II do seu artigo 47; o art. 54 da Lei 9.784/99, reguladora do processo administrativo na esfera federal; a Lei 9.873/99, em seu art. 1º etc.

Neste contexto, sobreleva de importância, para o que se pretende demonstrar neste breve ensaio, a norma contida no art. 21 da Lei 4.717/65, que impõe a prescrição qüinqüenal para a propositura de ação popular. A relevância desse comando decorre justamente da inegável identidade dos bens que tanto a ação popular, como assim também a ação civil pública visam tutelar: patrimônio público, moralidade administrativa, meio ambiente. Aliás, a própria Lei nº 7.347/85 trata de acentuar a similitude existente entre os interesses tuteláveis por esses dois instrumentos de controle da Administração Pública, preceituando este diploma que as ações de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao patrimônio público e a outros interesses coletivos ou difusos serão por ele regidas, “sem prejuízo da ação popular” (art. 1º, caput).

Dessa forma, não é possível destacar a ação civil pública do amplo campo de incidência da ação popular, nem tampouco imaginar uma escala hierárquica que confira graus de importância distintos a essas ações, porquanto suas funções na ordem jurídica e assim também as razões que motivaram o legislador a construir tais instrumentos, ambos essenciais para a realização plena do Estado Democrático de Direito, confundem-se na proteção dos interesses difusos e coletivos em seus diversos aspectos. Não é por outra razão que em alguns casos será possível até mesmo a utilização da ação popular e da ação civil pública para postular a tutela da mesma espécie de bens jurídicos.

Conclui-se, portanto, que nada está a impedir (e, ao contrário, tudo recomenda) que à ação civil pública seja aplicado o prazo prescricional de 5 anos, por analogia à previsão constante do art. 21 da Lei 4.717/65, que disciplina a ação popular.

Cumpre registrar que neste sentido já se manifestou a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em recurso especial relatado pelo eminente Ministro LUIZ FUX, a unanimidade assentou que “a ação civil pública não veicula bem jurídico mais relevante para a coletividade do que a ação popular. Aliás, a bem da verdade, hodiernamente ambas as ações fazem parte de um microssistema de tutela dos direitos difusos onde se encartam a moralidade administrativa sob seus vários ângulos e facetas. Assim, à míngua de previsão do prazo prescricional para a propositura da Ação Civil Pública, inafastável a incidência da analogia legis, recomendando o prazo qüinqüenal para a prescrição das  Ações Civis Públicas, tal como ocorre com a prescritibilidade da Ação Popular, porquanto ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio”. (RESP 406545 / SP, data da decisão: 21/11/2002. DJ 09/12/2002 p. 292).

Quando a Administração Pública figurar na relação jurídica deduzida na ação civil pública, a solução é ainda mais simples, devendo ser aplicada à hipótese a regra específica do art. 1º do Decreto nº 20.910/32, a ela oponível, muito embora a resultante da aplicação da referida norma seja a mesma no caso de ser aplicado analogicamente o comando contido no art. 21 da Lei 4.717/65 também quando a Administração figurar como parte na via da Ação Civil Pública, isto é, a solução sempre redundaria, invariavelmente, na prescrição qüinqüenal.

Esse tem sido o entendimento esposado pela nossa melhor doutrina publicista, merecendo registro o escólio de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, que, em sua afamada obra, assevera: “Ficamos com a posição dos que, como Hely Lopes Meirelles, entendem que, no silêncio da lei, a prescrição administrativa ocorre em cinco anos, nos termos do Decreto n. 20.910/32. Quando se trata de direito oponível à Administração, não se aplicam os prazos do direito comum, mas esse prazo específico aplicável à Fazenda Pública; apenas em se tratando de direitos de natureza real é que prevalecem os prazos previstos no Código Civil, conforme entendimento da jurisprudência” (Direito Administrativo. São Paulo : Atlas, 2001, p. 597-598).

Registre-se, por oportuno, que a prescrição incide também sobre os atos administrativos inválidos, pois, conforme já anotou JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, o interesse público que decorre do princípio da estabilidade das relações jurídicas é tão relevante quanto a necessidade de restabelecimento da legalidade dos atos administrativos, de forma que deve o ato permanecer seja qual for o vício de que esteja inquinado (Manual de Direito Administrativo, Rio de Janeiro : Lumen Juris, 10ª edição, 2003, p. 134). A posição jurisprudencial é tranqüila quanto ao ponto: STF – RE 107.503/MG, Rel. Min. Otávio Galloti. STJ – MS 7.226/DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini. TRF 2ª Região – Apelação Cível 290351, Relator Juiz Antônio Cruz Netto.

Na esteira de tais considerações, merece destaque recentíssima decisão, prolatada pelo Juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Teresópolis/RJ, em sede de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público estadual em face do Município de Teresópolis e das empresas permissionárias do serviço de transporte de passageiros por ônibus naquela municipalidade, em que restou assentado que a alegação de prescrição qüinqüenal deveria ser acolhida.

Naquela oportunidade, o ilustre magistrado fundamentou sua decisão apoiando-se no fato de que o pedido apresentado pelo Ministério Público continha o requerimento para que fosse declarada a nulidade de todos os instrumentos delegatórios outorgados às empresas de transporte coletivo, de origem remota, sem observância do procedimento licitatório previsto na Constituição Federal de 1988. Concluiu, então, que a pretensão autoral havia sido atingida pela prescrição qüinqüenal, tendo em vista a previsão do art. 1º do Decreto 20.910/32.

Nesta pauta, merece registro, ainda, o fato de que o Ministério Público estadual, assim como sucedeu na aludida ação civil pública proposta em face do Município de Teresópolis, tem ajuizado, recentemente, mais de uma centena de ações civis públicas, em diversas Comarcas do Estado do Rio de Janeiro, incluindo a Capital, em que igualmente pretende que sejam declarados nulos instrumentos de delegação do serviço de transporte coletivo por ônibus, cujas origens (na maioria dos casos, remotíssimas) ultrapassam o qüinqüênio imediatamente anterior à propositura dessas demandas.

Observa-se, nestes casos (apenas para ilustrar o tema), um aparente embate de interesses: de um lado, o Ministério Público estadual procura, no exercício das prerrogativas que lhe confere a ordem constitucional, questionar a validade das permissões outorgadas às empresas prestadoras do serviço público de transporte coletivo de passageiros por ônibus, valendo-se, para tanto, de sua legitimação para a propositura da ação civil pública; de outro, está o interesse das aludidas empresas de transporte, cujos instrumentos delegatórios a que pretende o Ministério Público desconstituir são, em regra, de origem muito antiga, já convalidados, portanto, pelo decurso do tempo, em prol da estabilidade das relações jurídicas.

Em hipóteses como essa, o interesse preponderante se inclina, inegavelmente, para a segurança jurídica, até porque, ao promover estabilidade e um mínimo de certeza na regência da vida social, o instituto da prescrição visa atender ao interesse público, objeto da tutela da atuação do Ministério Público, não se podendo afirmar, por essa razão, existir verdadeiramente um conflito de interesses, porquanto tanto o Parquet como a prescrição visam tutelar o interesse coletivo, o bem comum.

Ante tais considerações, é possível concluir que, no tocante à ação civil pública, não há outra solução possível diversa da que estabelece a prescrição qüinqüenal para o seu ajuizamento.

Por óbvio que não se aplicam à hipótese as normas do Código Civil, porquanto tal conduta importaria em violar o princípio lex specialis derrogat generali, posto que, como visto, há normas especiais quando se está a tratar dos interesses da Administração Pública (art. 1º do Decreto nº 20.910/32) ou, ainda, para tutelar direitos transindividuais (de que é exemplo o art. 21 da Lei 4.717/65). Aliás, como acentua CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, sendo tão profundamente distintas as razões que informam o Direito Civil das que inspiram o Direito Público, “nem mesmo em tema de prescrição caberia buscar inspiração em tal fonte”, mas, ao contrário, impõe-se indagar qual o tratamento atribuído ao tema prescricional ou decadencial em regras genéricas de Direito Público (Curso de Direito administrativo. 13a. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 210).

Tampouco se poderia qualificar como imprescritíveis as ações civis públicas, porquanto a imprescritibilidade destoa da regra geral, devendo ser aplicada restritivamente, apenas em situações excepcionalíssimas, muitas delas ligadas à proteção dos direitos inerentes à personalidade da pessoa humana. Isto porque, de maneira geral, a imprescritibilidade atenta contra o princípio constitucional da segurança jurídica, a medida em que autoriza a nociva perpetuidade das relações jurídicas constituídas e já consolidadas pelos efeitos do tempo, frustrando, assim, uma das funções precípuas do Direito, que é a de atribuir certeza às relações sociais e impedir, dessa forma, eventual atuação arbitrária por parte do Estado e dos particulares.

Como se pode constatar, o assunto está a merecer a devida atenção do Judiciário, eis que, como já aduzimos, a prescrição é instituto informado por princípios que se vinculam ao interesse público e à segurança jurídica. Em assim sendo, quando suscitado pela parte a quem aproveita, o seu afastamento ou a sua aplicação inadequada, por essas razões, vulnera garantias constitucionais e gera instabilidade social, acarretando temerário desprestígio das instituições democráticas.