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A representação das empresas na era globalizada e os Juizados Especiais

5 de maio de 2005

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Em pleno século XXI, era virtual, onde todos e de todos os lugares, se comunicam em tempo real. Onde o ato de adquirir bens e serviços suplanta a idéia de comércio que remonta aos Fenícios, bem assim a dos costumes em que se basearam as primeiras regulamentações na idade média; não há como prosperar embaraços para as empresas se fazerem representar em Juízo.

A chamada era globalizada não deixa dúvidas de que o ato de adquirir bens e serviços não impõe mais a necessidade da presença física do “comprador” ou “do vendedor”. Na era em que os produtos e serviços são oferecidos à distância; porém, expostos e servidos em sua sala de estar; não há como se manter a exigência de que a empresa se faça representar por prepostos somente com vínculo empregatício, ou seja: funcionários registrados, quando das audiências de conciliação e de instrução e julgamento, perante o Juizado Especial Cível, criado pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

O surgimento dos Juizados Especiais Cíveis foi um considerável avanço na democratização da Justiça, permitindo ao cidadão comum o acesso desburocratizado na procura da tutela jurisdicional de seus direitos, face aos princípios norteadores do processo: oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e a celeridade, como estabelecido no artigo 2º da Lei 9.099/95.

Por outra, esta mesma desburocratização não vem sendo franqueada às empresas, com a exigência de que o preposto tenha vínculo empregatício comprovado no momento da audiência. Já a pessoa física que, por algum impedimento momentâneo, não possa estar presente quando da realização das referidas audiências terá o seu feito extinto (inciso I, art. 51), mesmo que esteja representada por advogado com poderes especiais para transigir, receber e dar quitação.

A exigência de que as empresas se façam representar por preposto com vínculo empregatício, vem dificultando senão obstaculizando o amplo exercício do direito de defesa, já que não provado o vínculo é decretada in continenti a revelia da empresa, em conformidade com o art. 20, mesmo que lá esteja seu advogado e preposto munido de carta de preposição, portanto, devidamente autorizado pela empresa a representá-la naquele ato, assumindo esta todas as responsabilidades pelos atos praticados por este.

Nesse sentido, no VI Encontro de Juízes de Juizados Especiais Cíveis e Turmas Recursais do Estado do Rio de Janeiro, ocorrido em 30 de abril de 2004, foi elaborada a “Consolidação dos Enunciados Jurídicos Cíveis e Administrativos em Vigor”, tendo sido mantido o ENUNCIADO 8.1, que estabelece:

“Representação – Preposto – Cumulação. A presença das partes – pessoas físicas e/ou pessoas jurídicas, representadas por preposto com vínculo empregatício – é obrigatória nas audiências de conciliação e/ou julgamento.”

A obrigatoriedade que assinala o §4º, do art. 9º, da Lei 9.099/95, é de que sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, a representação se dá por preposto credenciado, não se referindo a Lei a vínculo empregatício.

Infelizmente, há um número crescente de decisões aplicando a pena de revelia às empresas, quando estas não se fazem representar em audiências por prepostos que mesmo munidos da carta de preposição não comprovem o vínculo empregatício, contrariando tal Enunciado o princípio constitucional da legalidade, já que a Lei 9.099/95 não faz tal exigência.

Contraria ainda o Enunciado em tela, os princípios da informalidade e da simplicidade, que autorizam que a citação das pessoas jurídicas se efetive na pessoa do “encarregado da recepção” (inciso II, do art. 18). Portanto, se o ato citatório que é de suma importância para o processo, pois completa a relação jurídica processual, pode ocorrer de forma informal, em pessoa que sequer exige-se a comprovação de vínculo com a empresa citada, porque exigir que quando de sua representação em audiência a empresa tenha que se fazer representar somente por prepostos com vínculo empregatício, quando a própria Lei autoriza que esta mesma representação se dê por carta de credenciamento, sem qualquer exigência de vínculo empregatício?

Até mesmo o novo Código Civil autoriza que terceiro que não mantenha vínculo empregatício com a empresa possa ser preposto em negócios, inclusive que envolvam finanças, assumindo a empresa toda responsabilidade pelos atos praticados por este agente. O mesmo ocorre com o preposto credenciado para representar a empresa nas audiências perante os Juizados Especiais, ou seja, a responsabilidade é integralmente da empresa pelos atos que este praticar.

O próprio Código de Processo Civil com a modificação do art. 38, pela Lei 8.952/94, retirou a obrigatoriedade de reconhecimento de firma para a representação processual, tudo para facilitar a defesa em Juízo.

Nesse sentido também a Lei 10.259, de 16/07/2001 (cria o Juizado Especial Federal), não exige que os prepostos, representantes das empresas, tenham vínculo empregatício em seu art. 10: “as partes poderão designar, por escrito, representantes para a causa, advogado ou não”.

Fato que na era globalizada, marcada pela comunicação virtual, a empresa deixou de ter a necessidade de constituir filiais ou mesmo representantes em todos os lugares em que são adquiridos seus produtos ou mesmo serviços, pois a comercialização nos dias de hoje, com internet e todas as formas de vendas, possibilita fácil aquisição desses bens; porém, isto não significa que seja fácil e viável o deslocamento de prepostos para representar a empresa num país de dimensão continental.

A figura do preposto seja ele com vínculo empregatício ou não, a princípio se destinaria a suprir a necessidade de prestar esclarecimentos sobre os fatos alegados na causa. Fato é que na prática destina-se tão somente a representar a empresa nas audiências de conciliação e de instrução e julgamento. Na de conciliação não há qualquer prejuízo ao autor da ação, pois o preposto credenciado ou mesmo o advogado comparecem com poderes para transigir; na de instrução e julgamento, não há prejuízo aos esclarecimentos necessários pelo réu para o livre convencimento do juízo, pois estes são trazidos com a defesa escrita ou oral apresentada pelo advogado.

Considerando-se ainda o fato da possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, entendido este como destinatário final de um serviço ou produto, o risco é todo da empresa, caso credencie preposto não qualificado para a causa, assumindo integral responsabilidade por seus atos.

Ressalta-se que até a tentativa de acordo poderá restar prejudicada em virtude da exigência de comprovação desse vínculo antes mesmo de aberta a audiência de conciliação, o que contraria até mesmo os interesses do autor que fica prejudicado na solução imediata de um problema, seja ele em ações indenizatórias por danos morais e materiais ou mesmo em ações que objetivam a obrigação de fazer e dar.

Como se depreende, na prática, não há qualquer prejuízo para o reclamante consumidor (para quem na realidade se destinam os Juizados Especiais) ou mesmo para a Justiça em seu sentido maior, caso o preposto nomeado não tenha conhecimento dos fatos ou possa tê-los de forma incompleta. Pelo contrário, se prejuízo houver é para a empresa que em tese nomeou preposto nestas circunstâncias, já que não tendo este conhecimento dos fatos alegados, assume a empresa o risco por tal nomeação.

Ao tornar obrigatório o vínculo empregatício, o Enunciado 8.1 está na contra-mão do desenvolvimento; do direito constitucional do amplo exercício do direito de defesa e, entre estes direitos, o de livremente nomear procuradores, representantes, prepostos, sem que com isto se esteja impossibilitando a realização da Justiça, já que em não se tratando de depoimento pessoal do representante legal da empresa, não há que se falar em obstrução da JUSTIÇA, no caso da empresa se fazer representar por preposto nomeado fora de seu quadro funcional.

Pior: a exigência de que o preposto tenha vínculo empregatício, viola os próprios princípios norteadores da criação dos Juizados Especiais, especialmente os princípios da informalidade e da economia.

O Código de Defesa do Consumidor Brasileiro é considerado uns dos mais avançados do mundo e no Brasil onde se costuma dizer que “há leis que pegam e outras não…”, a Lei 8.078/90 pode ser elevada ao topo da lista das “leis que pegaram” e, combinada com a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95), tornou-se, certamente, a mais aplicada pelos Juízes, inclusive no que tange a Justiça Comum.

Portanto, o legítimo direito do consumidor está amplamente protegido com a codificação de suas normas de alcance variado, contendo institutos de reconhecido avanço doutrinário e que vem sendo aplicados pelos Juizes, sendo o seu art. 6o a própria representação desse avanço.

E as empresas? As que têm sua atuação limitada a uma Comarca, possivelmente conseguem se fazer representar por preposto com vínculo. Aquelas que ultrapassam os limites territoriais de sua sede, sem, contudo, ter a necessidade de filiais ou mesmo representação, certamente, vêm sendo obrigadas a fazer “mágicas” para fornecer prepostos com vínculos para as audiências que se realizam diariamente em todo o território nacional, simultaneamente, com convolações de audiências para o mesmo dia, sob pena de correrem risco de ser decretada sua revelia.

Isto implica em dizer que não há facilitação para a defesa das empresas perante os Juizados Especiais, somente obstáculos para sua apresentação, como se o princípio da celeridade fosse tão somente destinado a condenação perimptória, automática da empresa, como se sua culpa fosse uma presunção “iuris tantun”.

A dificuldade que tal obrigatoriedade vem causando às empresas pode até mesmo vir a onerar seus produtos e serviços, partindo-se da premissa – ressalta-se: saudável -, de que tanto o CDC quanto os Juizados Especiais se completam e são Leis que além de avançadas, “pegaram” no país, não tendo como deixar de contemplar a hipótese de que tal exigência – dificuldade para sua defesa em Juízo – seja levada em conta quando da elaboração do custo de um produto ou serviço.

A internet veio causar verdadeira revolução nas comunicações, representando este meio, verdadeira globalização dos mercados, podendo o consumidor adquirir bens e serviços, praticamente, de toda parte do planeta, sem que com isto a empresa tenha que lá estar fisicamente.

A Segunda Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul, já vem adotando o entendimento quanto a ilegitimidade da exigência de que o preposto tenha vínculo empregatício1, nesse sentido se manifestou a douta Juíza Maria José Schmitt Santanna: “o preposto nada mais é do que uma pessoa indicada pela própria empresa para representá-la em juízo e com poderes determinados. Se a empresa escolhe bem ou mal a pessoa que traz ao Judiciário, o ônus recai sobre si mesma”.

A Súmula 13, das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis do Rio Grande do Sul, consolidou este entendimento: “a pessoa jurídica poderá se fazer representar em audiência por preposto com o qual não mantenha vínculo empregatício, desde que tenha efetivos poderes para transigir, vedada a cumulação de funções pelo advogado da parte”.

Mesmo entendimento vem sendo adotado pela Turma Recursal Única do Juizado Especial Cível e Criminal do Estado do Paraná2.

Enfim, não há base legal para que se mantenha o entendimento do Enunciado 8.1, até mesmo pelo simples fato de que todos os precedentes que defendem tal exigência se limitam a exigir a demonstração do vínculo empregatício sem, contudo, esclarecerem quanto às razões de tal exigência e o que prejudicaria ao livre convencimento do magistrado, conseqüentemente, a solução da lide, que o preposto não tenha este vínculo.

A manutenção de enunciados nesse sentido ou mesmo a observação destes pelos Juizes do Juizados Especiais Cíveis, deve ser refutada de plano, sob pena de se estar inviabilizando a defesa das empresas – fornecedores de produtos e serviços – perante os Juizados Especiais Cíveis, ferindo cláusula pétrea da Constituição Federal que é a do amplo direito de defesa, observado o devido processo legal.