Edição 280
A superação do estado de inconstitucionalidade do sistema penitenciário brasileiro
5 de dezembro de 2023
Mario Fabrizio Polinelli Advogado e Integrante da Comissão de Direito Penal do IAB / Advogada e Integrante da Comissão de Direito Penal do IAB
Nastassja Chalub Advogada e Integrante da Comissão de Direito Penal do IAB / Advogado e Integrante da Comissão de Direito Penal do IAB
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a violação massiva de direitos fundamentos nas penitenciárias brasileiras, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, cujo desfecho resultou no prazo de seis meses para a elaboração de um plano de intervenção com a finalidade de resolver a situação do sistema prisional brasileiro, levando em consideração a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena imposta.
Coube à inicial da ADPF 347, apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), reunir as graves violações a preceitos constitucionais vivenciadas diariamente no sistema penitenciário brasileiro.
Embora as constatações fossem perceptíveis a olho nu, restaram consolidadas a superlotação do sistema penitenciário, os altos índices de tortura e sanções ilegítimas, assim como questões inerentes ao cárcere feminino e da população LGTBQI+.
Por fim, a inicial e seus documentos apontam para o contingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional e excesso de rigidez/burocracia da União para liberar os recursos aos demais entes federativos responsáveis pela questão penitenciária.
O caso paradigma da técnica decisória de declaração de estado de coisa inconstitucional é da Corte colombiana, quando, em 1997, a classe dos professores teve seus direitos previdenciários violados.
A partir de então, consolidaram-se requisitos para o reconhecimento da inconstitucionalidade: (i) vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas; (ii) prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos; (iii) a superação das violações de direitos deve pressupor a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos, incluindo mudanças estruturais que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou formulação de novas; (iv) a potencialidade de congestionamento da Justiça se todos os que tiverem seus direitos violados acionarem o Poder Judiciário.
Na hipótese em análise na ADPF 347, é bem evidente o encaixe da situação fática com os requisitos necessários.
Após um longo debate, o colegiado, em 2015, deferiu as medidas para implementação das audiências de custódia e descontingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional.
Nas decisões tomadas ao longo do trâmite da ADPF 347, está mais do que reconhecida a contribuição de todos os Poderes para o estado de coisa inconstitucional do sistema prisional, ou seja, a completa ineficiência do Poder Público como um todo quando se trata da custódia de pessoas por parte do Estado brasileiro.
Na atuação do Poder Executivo, pouco, ou quase nada, se vê a respeito de políticas públicas voltadas para a prevenção do crime, estudos econômicos e repercussões do crime. Grande parte do Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária de 2020-2023 se dedica às diretrizes e medidas logo após o crime e investigação eficiente nos inquéritos, assim como às diretrizes em relação ao processamento e julgamento.
Há um evidente descolamento entre a realidade e os Planos Nacionais de Política Criminal e Penitenciária dos últimos anos. Mais que isso, há uma dificuldade séria por parte da administração pública em promover políticas públicas criminais que efetivamente tragam resultados e não insistam nos mesmos mecanismos reconhecidamente falhos.
A questão, ao que tudo indica, não é falta de verba, e sim a má utilização dela. Apesar disso, muitos estados fizeram questão de chamar atenção para a cláusula da reserva do possível nos autos da ADPF 347.
Embora o Legislativo não tenha voltado para si grandes holofotes na ADPF 347, não se pode ignorar seu papel como contribuinte ao estado de coisa inconstitucional do sistema prisional. O site da Câmara dos Deputados indica que, nos últimos 40 anos, foram instauradas quatro comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o sistema carcerário. Todavia, de lá para cá a maior parte do empenho legislativo se deu em projetos de lei que enrijeceram a legislação penal.
A atuação legislativa está praticamente inserida em um ciclo vicioso: o clamor popular enseja a produção de novas leis para enrijecer o sistema penal, a população carcerária aumenta sem que a população efetivamente se sinta segura, razão pela qual o assunto se torna antipático e, portanto, ignoram-se as condições da custódia de presos, apenas legislando mais sobre novos tipos penais e agravamento dos já existentes.
A responsabilidade do Poder Judiciário, por fim, decorre de decisões judiciais para a inserção de pessoas no sistema penitenciário. Está aí a grande contrariedade vivenciada pelo Judiciário. Enquanto parte se preocupa com projetos que efetivamente podem auxiliar no tratamento mais eficiente do fenômeno criminal, tantos outros se embebedam na fonte encarceradora.
Considerando que grande parte das investigações, prisões e desenvolvimento dos processos em que atores do sistema penal se encontram passam pelo juízo criminal, Semer (2020) desenvolveu sua tese de doutorado sobre o papel dos juízes no grande encarceramento, com enfoque no crime de tráfico de drogas, um dos delitos que mais prendem em nosso País.
A partir da pesquisa de Semer (2020) – um estudo detalhado sobre 800 sentenças de primeiro grau que apreciavam o delito de tráfico de drogas, em oito estados distintos, entre 2013 e 2015 – apurou-se que os envolvidos nos processos eram agentes de segurança pública, policiais e réus de minguadas condições colhidos no meio da rua ou dentro de residências humildes. Praticamente dois terços dos réus eram hipossuficientes.
A consolidação das acusações também indicou baixo índice de investigações, além de grande parte se concentrar em núcleos do tipo que são condutas preparatórias do comércio ilícito. Apenas 21,88% envolvem, além do tráfico, a associação para o tráfico e os crimes do Estatuto do Desarmamento.
A despeito de todas as essas informações, a forma como o tráfico é sentenciado pelos magistrados ainda é bem diferente, afinal, parte dos sentenciantes consideram o tráfico um crime com níveis epidêmicos, destruidor de lares, fator de degradação social e desencadeador de outros crimes.
Com o estudo de Semer é possível ter uma noção mais precisa e detalhada da grande contribuição do Judiciário no encarceramento, além de ficar evidente a necessidade de conscientização dos magistrados do País de suas responsabilidades como parte no desenvolvimento de políticas públicas criminais.
Não basta que parte do Judiciário volte sua atuação e esforços para a redução da cultura do encarceramento e elaboração de um plano de superação do estado de coisa inconstitucional do sistema prisional, enquanto grande parte dos Tribunais de Justiça seguem encarcerando por meio de decretos condenatórios recheados de distorções da realidade e da legislação.
Na verdade, a política penitenciária consiste em um dos elementos da política pública criminal, que está sob os holofotes em razão da ADPF 347, envolvendo todos os Poderes e níveis do governo.
Estamos diante da possibilidade de um turning point na implementação de políticas públicas no Brasil, não como políticas de governo e, sim, de Estado. Afinal, no âmbito das políticas criminais, é essencial que sejam pautadas em critérios de continuidade e permanência, distantes das concorrências eleitorais, porém entrelaçadas a políticas econômicas, sociais, de produção e capacitação.
Resta saber qual será o grau de comprometimento do Poder Público no enfrentamento das questões
aqui apontadas.
Notas________________________
1 “STF reconhece violação massiva de direitos no sistema carcerário brasileiro”, disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515220&ori=1 . Acesso em 24/10/23.
2 Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2020-2023”. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/composicao/cnpcp/plano_nacional/plano-nacional-de-politica-criminal-e-penitenciaria-2020-2023.pdf. Acesso em: 29/06/23.
3 SEMER, Marcelo. “Sentenciando o tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento”. 2ª edição. São Paulo: Tirant Blanch, 2020.
4 Idem. P. 177.