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Licença para matar

3 de novembro de 2022

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Com o resultado da eleição legislativa e a próxima configuração do Congresso Nacional, será necessário especial cuidado com alguns projetos em andamento, notadamente o Projeto de Lei nº 733/2022. Por meio desse PL, do atual Ministro da Justiça, Anderson Torres, pretende-se alterar o Código Penal e o Código de Processo Penal para “garantir maior amparo jurídico aos integrantes dos órgãos de segurança pública”. As alterações propostas abrangem os institutos das causas excludentes de ilicitude, acrescentando entre eles previsão expressa da figura do excesso exculpante; da legítima defesa em específico; do regime de cumprimento de pena; das circunstâncias agravantes; do local de recolhimento da prisão cautelar, e da prisão em flagrante.

Houve de fato uma tentativa anterior de criação da excludente de ilicitude por meio do projeto conhecido como Pacote Anticrime, proposto em 2019, pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública, e hoje senador eleito, Sergio Moro. O texto original do projeto previa: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Mais alarmante, inseria no parágrafo único do art. 25 do Código Penal um inciso dispondo considerar-se em situação de legítima defesa “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”.

Ambas as alterações acabaram rejeitadas pelo Congresso Nacional, não fazendo parte da Lei nº 13.964/2019, na qual resultou o Pacote Anticrime. Apesar desse revés, o Executivo segue defendendo a criação de excludente de ilicitude para agentes de segurança pública e também das Forças Armadas em serviço.

Trata-se o PL nº 733/2022 de mais uma tentativa de conferir “amparo jurídico” para agentes de segurança pública, alardeando um hipotético cenário no qual forças policiais se encontrariam impedidas de fazer uso da força no exercício de suas funções. Ocorre que esse cenário não encontra respaldo na realidade atualmente vivenciada pela sociedade brasileira. É notório que o Brasil possui uma das polícias mais letais do mundo. Segundo o World Population Review, em 2019, foram 5.804 mortes, atrás apenas das Filipinas em números absolutos. Isso equivale a 276,2 mortes por 10 milhões de habitantes, a oitava pior posição do indigno ranking.

São recorrentes as operações policiais em comunidades com população vulnerável que resultam em dezenas de mortes, como a incursão na Vila Cruzeiro, que vitimou 25 pessoas. Cenas de abordagens violentas com resultados trágicos também são rotineiras nos noticiários. Por exemplo, a morte de Genivaldo Santos, por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda, após ação da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe. Portanto, há em verdade a necessidade de mais controle da ação dos agentes de segurança pública, que em geral vitimizam pretos e pobres, pessoas das camadas mais vulneráveis. Ao contrário do que pretende o PL nº 733/2022, é preciso buscar a redução da violência policial.

O fortalecimento do Estado de Direito passa pelo fortalecimento dos cidadãos e de suas garantias face ao arbítrio daqueles em posição de poder. Na clássica lição de Norberto Bobbio, “é com o nascimento do Estado de Direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de Direito, o indivíduo tem, em face do Estado, direitos públicos. O Estado de Direito é o Estado dos cidadãos”.

A proposta ora analisada deriva de filosofia inversa, que pretende o fortalecimento do Estado em detrimento dos mecanismos de controle sobre as atividades de seus agentes, privilegiando assim o “ponto de vista do príncipe” ao dos cidadãos. É a partir dessa filosofia, declarada logo no art. 1º do PL nº 733/2022, que o restante da proposta deve ser examinado: a criação de concessões para os agentes públicos praticarem abusos sem incorrer nas penas da legislação criminal.

Raúl Zaffaroni e Nilo Batista alertam para a sobrevivência de um Estado de polícia dentro de todo Estado de Direito, que, ao seu turno, deve criar barreiras para contê-lo: “Não há nenhum Estado de Direito puro; o Estado de Direito não passa de uma barreira para represar o Estado de polícia que invariavelmente sobrevive em seu interior. Por isso, a função de contenção e redução do Direito Penal é um componente dialético indispensável à sua subsistência e progresso”.

Prosseguindo, destacam a existência de um sistema penal paralelo e subterrâneo, exercido pelas agências policiais, com elas próprias cometendo atos ilícitos na condução de suas funções, mormente quando ausentes mecanismos de controle: 

Não é possível, porém, omitir que todas as agências executivas exercem um poder punitivo paralelo, independentemente das linhas institucionais programadas e que, conforme o próprio discurso do programa de criminalização primária, seria definido como ilegal e delituoso. Este conjunto de delitos cometidos por operadores das próprias agências do sistema penal é mais ou menos amplo na razão direta da violência das agências executivas e na razão inversa do controle que sofram por parte de outras agências. Ele é conhecido pelo nome genérico de sistema penal subterrâneo.

Não se pode admitir, portanto, alterações legislativas em matéria penal que permitam a expansão do poder punitivo paralelo, criando espaços para o arbítrio e a violência pelas agências responsáveis pelo exercício da função policial.

O projeto propõe alterar o art. 23 do Código Penal para incluir dois parágrafos prevendo expressamente a defesa da inviolabilidade do domicílio como “exercício regular de direito” e a figura do excesso exculpante em casos de “escusável medo, surpresa ou perturbação de ânimo”. A primeira inserção destoa do restante da proposta por não se relacionar com atividade de segurança pública. Possui, entretanto, estreita relação com a ideologia de certos governadores eleitos, de que certas situações justificariam a concessão de carta branca para matar.

Em um primeiro plano, nota-se a desnecessidade da proposta, bem como o equívoco técnico na previsão relativa à defesa da inviolabilidade do domicílio. De fato, atos moderados e necessários para repelir agressão atual ou iminente ao direito à inviolabilidade do domicílio enquadram-se com perfeição no instituto da legítima defesa, sendo desnecessária a criação de mais um dispositivo legal. Proposta parecida já constava do Pacote Anticrime, sendo ao final rejeitada pelo Congresso Nacional. Na realidade, o excesso exculpante já é reconhecido pela doutrina e jurisprudência como causa supralegal de exclusão de culpabilidade.

Se por um lado o teor dos dispositivos propostos pelo PL nº 733/2022 revela a sua desnecessidade, por não criar nada de novo à primeira vista, por outro o contexto já existente de violência dos órgãos de segurança, no qual nasce o projeto, revela a existência de sérios riscos em caso de acolhimento. Não é demais lembrar que o art. 1º da proposta declara ser seu objetivo “garantir maior amparo jurídico” aos integrantes dos órgãos de segurança pública.

Assim, as inclusões no art. 23 do Código Penal podem dar margem a interpretações extravagantes, sendo quiçá encaradas, em casos extremos, como cláusula penal autorizando execuções extrajudiciais, em casos de invasão de propriedade ou operações policiais, em prejuízo da exigida moderação no uso dos meios necessários.

Não se pode deixar de considerar o grave problema brasileiro da letalidade policial, tampouco as convicções de determinados agentes públicos, inclusive de governos estaduais, de que tais excessos são inerentes à atividade policial e por isso mesmo deveriam ser amparados por retaguarda jurídica. Essa questão torna-se ainda mais grave diante da constatação – repita-se – de que essa letalidade é via de regra descarregada em cima de comunidades vulneráveis, compostas majoritariamente por pretos e pobres.

Seria o objetivo dos novos dispositivos a concessão de carta branca para matar, nas situações ali dispostas, disfarçada de mera previsão expressa de institutos já amplamente aplicados e estabelecidos?

Entende-se que as propostas quanto ao art. 23 do Código Penal são desnecessárias e, tendo em vista o contexto político em que foram formuladas, abrindo margem para interpretações que enfraquecem o Estado de Direito, não são oportunas e não merecem endosso, podendo favorecer ações letais absolutamente desnecessárias, seja em defesa da propriedade, seja no exercício das atividades de segurança pública.