A teoria da dinâmica pendular das cortes e o poder do STF na liberdade de expressão

2 de agosto de 2023

Compartilhe:

O Direito Constitucional brasileiro está em uma fase de profundas transformações, notadamente no que se refere à liberdade de expressão. Dentro desse panorama, o Supremo Tribunal Federal (STF), como a alta instância da Justiça do País, enfrenta desafios sem precedentes, respondendo a eles de maneiras que podem parecer inusitadas à primeira vista. No entanto, as respostas dos ministros adquirem maior clareza quando examinadas sob a ótica de uma teoria recente do processo constitucional italiano, conhecida como “riaccentramento” (reconcentração) de poder ou “dinâmica pendular” da corte constitucional.

Para o professor emérito da Universidade de Pisa, Roberto Romboli, seguidor das lições de seu saudoso mentor Alessandro Pizzorusso, afirmar que a Corte Constitucional da Itália “se concentra” não expressa somente a óbvia escolha do poder constituinte nacional pelo modelo de controle concentrado de constitucionalidade, em contraste com o modelo difuso. De fato, para tais expoentes da dita Escola Pisana, a noção de “concentração” oferece um entendimento mais descritivo do papel do juiz constitucional no contexto da oscilação pendular entre sua “alma política” e sua “alma jurisdicional”. 

Em tempos de turbulência, o tribunal-curador pode acumular mais poder (concentração), assim como em momentos de consenso pode dispersá-lo (difusão) para outras instituições, a fim de se autopreservar da exposição excessiva, tudo dependendo do contexto. Um exemplo de difusão é a Sentença no 8/ 1996 (sentenza Zagrebelsky), que atribui aos juízes ordinários a responsabilidade de dar uma interpretação conforme à Constituição para evitar que a dúvida de inconstitucionalidade seja submetida à própria Corte Constitucional. Já um exemplo de concentração é a pronúncia de inconstitucionalidade por perspectiva (ordinanza no 207/2018), na qual a Corte anuncia uma inconstitucionalidade, mas não a declara a menos que transcorra o prazo de um ano sem intervenção legislativa. Nesse caso, a omissão legislativa legitima o juiz constitucional a adotar uma solução normativa provisória como um “colegislador”, tal como ocorreu no caso Cappato (sentenza no 242/2019).

Ao se inspirar nesse ensinamento estrangeiro, é possível que a maneira como o STF tem respondido aos desafios da liberdade de expressão na era digital e da polarização política possam ser analisadas por uma ótica de fases de evolução.

Identificam-se três fases ou ondas distintas na jurisprudência do STF quanto à liberdade de expressão. A primeira ocorre após a Constituição de 1988, quando o Supremo adota o conceito de “free marketplace of ideas” (livre mercado de ideias), inspirado na doutrina da Primeira Emenda dos Estados Unidos, favorecendo uma abordagem tolerante em relação à liberdade de expressão. Essa abordagem é fundamentada no princípio da igualdade de oportunidades no debate público, buscando superar a ideologia constitucional do regime militar recentemente encerrado (1964-1985). Nesse sentido, a livre circulação de ideias no Brasil é considerada um elemento característico das sociedades abertas, cuja natureza é compatível com o dissenso para a construção de espaços de liberdade em conformidade com o sentido democrático que anima as instituições da República.

Contudo, adentramos em uma segunda onda na qual a liberdade de expressão, inicialmente concebida como amplamente irrestrita, passa a ser interpretada sob um prisma mais equilibrado, em busca da salvaguarda de outros direitos fundamentais consagrados na ordem constitucional contemporânea. Em 2003, no caso Ellwanger (Habeas Corpus 82.424 RS), o STF impôs limites à liberdade de expressão em casos de racismo e antissemitismo, proibindo a publicação e difusão de livros discriminatórios. Em 2019, no contexto dos processos ADO (ação de direta de inconstitucionalidade por omissão) no 26/2019 e MI (mandado de injunção) no 4.733/2019, o STF declarou a inconstitucionalidade da omissão legislativa em relação aos crimes de homofobia e transfobia, também ampliando o alcance da lei penal de combate ao racismo (Lei no 7.716/1989).

Na terceira e mais recente fase dessa evolução, que se inicia em 2021, a liberdade de expressão é limitada com o foco voltado agora para a proteção direta da democracia brasileira. Essa mudança veio como resposta à escalada populista encabeçada pelo então deputado Daniel Silveira, culminando numa nova linha jurisprudencial do STF que demonstra menor “tolerância” a discursos falsos e impregnados de ódio direcionados às instituições.

Em 16 de fevereiro de 2021, Silveira, através de seus canais nas redes sociais, fez alusões à dissolução do STF, incentivou a violência contra seus magistrados e alimentou a concepção de um golpe de Estado. Como resposta a essas ameaças, o Ministro do STF Alexandre de Moraes determinou a prisão em flagrante (Inquérito 4.781-DF) em 16/2/2021, e essa decisão foi referendada pelo Plenário do STF em 17/6/2021. A atuação unida da Corte representou uma posição firme contra os ataques sofridos pelo próprio STF, bem como contra os responsáveis por financiar, incitar e perpetrar ações antidemocráticas ilegais.

Naquela época, sem uma legislação específica para reprimir ações democráticas, o STF adotou uma postura de maior concentração de poder atribuindo à legislação então em vigor uma interpretação direcionada, justamente, à tutela das instituições republicanas. Nesse contexto, o Tribunal aplicou a Lei de Segurança Nacional, resquício da era militar (Lei no 7.170/1983), para entender como penalmente típicos comportamentos agressivos ao Estado Democrático, defendendo a si próprio enquanto instituição (o STF), seus ministros e outros órgãos ou autoridades alvo de ataques subversivos. Essa posição adotada pelo Supremo inspirou, posteriormente, a criação da Lei no 14.197/2021 pelo Poder Legislativo, que estabelece normas específicas para crimes contra o Estado Democrático de Direito, substituindo a antiga legislação da época militar.

De fato, a árdua tarefa de contrapor-se manifestações antidemocráticos levou o STF ao exercício do seu poder constitucional ampliado em duas frentes estratégicas. A primeira, mediante a instauração, de ofício, de investigação (art. 43 do Regimento Interno do STF) que desencadeou na prisão e subsequente condenação de Daniel Silveira, exercendo, assim, sua competência dita “penal originária”. A segunda, a Corte Suprema, com base em sua competência de “poder constitucional” propriamente dita, endossou a legitimidade das mencionadas ações investigativas contra autoridades e indivíduos que atentavam contra a ordem institucional (vide julgamento da ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental) no 572, realizada em sessão plenária em 18/6/2020).

Além disso, o STF investiu na ampliação e no fortalecimento de sua estratégia de comunicação pública, buscando estabelecer um canal direto e confiável de interação com a sociedade. A intenção era disseminar informações precisas e autênticas acerca do Tribunal e de seus membros. Para isso, valeram-se de diversas plataformas digitais, como Twitter, YouTube e Instagram, além do canal TV Justiça e do próprio site oficial do STF, entre outros provedores de conteúdo. Aludido esforço traduziu-se em uma iniciativa consciente para combater a desinformação e promover a transparência institucional.

Nesta terceira fase de intensificação do poder relativo à liberdade de expressão, ao refinar sua estratégia de comunicação e aplicar rigorosamente a legislação em vigor, principalmente para coibir manifestações subversivas amplificadas por plataformas digitais, o STF demonstrou uma orientação mais pronunciada para um controle de constitucionalidade descritivamente mais vigoroso.

Esse cenário suscita questões cruciais: estamos testemunhando uma força e concentração do STF como resposta a ataques sociopolíticos ao seu próprio colegiado, uma experiência única no contexto brasileiro. Mas será que essa resposta, necessária para preservar a estabilidade democrática, não nos convida a refletir sobre os novos limites e responsabilidades da liberdade de expressão na era digital? Além disso, essa emergente concentração de poder estaria desencadeando um desequilíbrio ou reconfigurando a dinâmica de poder diante dos desafios do contexto atual? Esse desafio, tão complexo quanto intrigante, convoca a uma reflexão profunda e urgente por parte de todos aqueles que se preocupam com o futuro de nossa democracia.

Nota________________________________

1  AC 2.695 MC/RS, relator Ministro Celso de Mello; ADPF 187, relator Ministro Celso de Mello, j. 15/6/2011, P, DJE de 29/5/2014. Vide ADI 4.274, relator Ministro Ayres Britto, j. 23/11/2011, P, DJE de 2/5/2012.