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Abuso ou garantia?

8 de dezembro de 2022

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No dia 20 de outubro de 2022, a 10 dias do segundo turno das eleições presidenciais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pela unanimidade de seus membros, aprovou a Resolução no 23.714, promovendo importantes modificações em resolução anterior – a Resolução no 23.610, de 18 de dezembro de 2019 – especialmente quanto à propaganda eleitoral e o combate à desinformação e ao discurso de ódio.

Logo em seu primeiro artigo, a nova Resolução diz a que veio: “Esta Resolução dispõe sobre o enfrentamento à desinformação e à integridade do processo eleitoral”. Como é de se esperar em um regime democrático, a iniciativa da Presidência do TSE ganhou espaço no debate público, suscitando aplausos de uns e críticas de outros.

Entre as novidades promovidas pela Corte Eleitoral, destacam-se as alterações quanto à forma e o tempo de retirada de conteúdo desinformativo e às restrições de impulsionamento de conteúdo na Internet.

Prevê a Resolução, por exemplo, que uma vez proferida uma decisão colegiada pelo plenário do Tribunal Superior Eleitoral, determinando a retirada de conteúdo desinformativo – que promova discurso de ódio ou notícia fraudulenta – a Presidência do Tribunal, sem que haja necessidade de uma nova ação, poderá determinar a extensão daquela decisão colegiada, a fim de que conteúdos idênticos àqueles ali questionados e replicados em outros canais sejam também retirados.

A Resolução também inova quando estabelece a vedação à divulgação e ao compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados, assim considerados por decisão fundamentada, que atinjam a integridade do processo eleitoral. Como sanção a tal conduta, prevê a imediata remoção do conteúdo pelas plataformas, sob pena de multa por hora de descumprimento, que começará a contar no término do prazo de duas horas do recebimento da notificação pela plataforma respectiva. Este prazo será ainda mais exíguo – de uma hora – caso a divulgação ou compartilhamento se dê na antevéspera ou nos três dias seguintes ao pleito eleitoral.

Além da remoção do conteúdo e aplicação de multa, o novo expediente anuncia a possibilidade de suspensão temporária de perfis, contas e canais mantidos em mídias sociais, nos casos de produção sistemática de desinformação, caracterizada pela insistente publicação de informação falsa ou descontextualizada sobre o processo eleitoral.

Por fim, na tentativa de coibir abusos de poder político e/ou econômico decorrentes de significativo aumento de monetização de blogs e sites interativos, para fins de propaganda eleitoral, visando preservar uma desejada isonomia entre os participantes do pleito eleitoral, o Tribunal vedou, nas 48 horas que antecedem e até 24 horas após as eleições, a veiculação paga, inclusive por monetização, direta ou indireta, de propaganda eleitoral na Internet, em quaisquer meios eletrônicos dos candidatos e candidatas, do partido, federação ou coligação.

O descumprimento a tal vedação, uma vez reconhecido por decisão fundamentada, poderá gerar desde a remoção do conteúdo considerado ilícito da Internet – sob pena de multa por hora de descumprimento, a contar do término da primeira hora após a notificação da plataforma – até a desaprovação das contas do candidato ou candidata, partido, federação ou coligação, sob o argumento de que tal conduta configura realização de gasto ilícito de recursos eleitorais, sujeita, ainda, à apuração do tipo penal já previsto na Lei das Eleições (Lei no 9.504/1997, art. 39, §5o, inciso IV).

As inovações da Resolução, aprovadas a 10 dias do segundo turno do pleito eleitoral, além de críticas, provocou reações da Procuradoria-Geral da República e de alguns parlamentares. O procurador-geral da República questionou a constitucionalidade da Resolução, por meio de ação direta de constitucionalidade (ADC) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), sob o argumento de que o TSE teria criado novas vedações e sanções distintas das previstas em lei, ampliando o poder de polícia de sua presidência, em prejuízo da colegialidade, do juízo natural e do duplo grau de jurisdição e, ainda, afastando o Ministério Público da iniciativa de ações ou medidas voltadas à proteção da normalidade e legitimidade das eleições.

A ação, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, teve a liminar indeferida em decisão submetida à aprovação do plenário, que a confirmou pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal – vencidos o Ministro Nunes Marques e, parcialmente, o Ministro André Mendonça.

Prevaleceu, portanto, a Decisão do relator, que declarou constitucional o ato do TSE, considerando que o mesmo não atingia o fluxo das mídias tradicionais de comunicação e tampouco resultaria em proibição de todo e qualquer discurso, mas, apenas aquele que, “por sua falsidade patente, descontrole e circulação massiva, atinge gravemente o processo eleitoral”.

O julgamento do mérito da referida ADC ainda não ocorreu, porém, mesmo que confirmada a decisão liminar e reconhecida a constitucionalidade da Resolução, o debate público, certamente, não se encerrará por aí. No Parlamento, a iniciativa do TSE também provocou reações, já havendo no Senado tanto adeptos à votação de um projeto de decreto legislativo para barrar a Resolução (PDL 371/2022, do Senador Lasier Martins), quanto defensores da postura combativa do TSE, considerando-a adequada e necessária ao combate da desinformação e de fake news que possam afetar o resultado das eleições.

Aliás, adequação e necessidade são palavras-chave nesse debate e, sobretudo, no exercício do controle de constitucionalidade, ainda por vir, pelos ministros do STF. Afinal, é inquestionável a coexistência de interesses igualmente relevantes, decorrentes de direitos fundamentais protegidos pela Constituição Federal, que precisarão ser ponderados com toda a prudência pela Suprema Corte.

Neste exercício de ponderação, algumas indagações são inevitáveis: a solução encontrada pelo Presidente do TSE, Ministro Alexandre de Moraes, e aprovada pela unanimidade de seus membros era apta à consecução do fim pretendido, qual seja, evitar desinformação e falsos conteúdos capazes de prejudicar o processo eleitoral? Haveria outra solução que atendesse tal finalidade de maneira menos gravosa, com menor afetação de direitos e interesses da coletividade? O benefício alcançado pela proteção de determinado interesse é maior do que eventual prejuízo causado pela restrição ou sacrifício dos outros interesses envolvidos?

Como bem sintetizado pelo professor Daniel Sarmento, em sua obra “A ponderação de interesses na Constituição”, “para conformar-se ao princípio da proporcionalidade, uma norma jurídica deverá, a um só tempo, ser apta para os fins a que se destina, ser menos gravosa possível para que se logrem tais fins e causar benefícios superiores às desvantagens que proporciona”.

A aferição de tais requisitos, por óbvio, deve ser feita levando-se em conta o caso concreto e o contexto em que o mesmo se insere, a partir da constatação da coexistência de direitos fundamentais e princípios constitucionais igualmente relevantes, o que é inegável na hipótese.

A iniciativa do TSE estaria usurpando competência do Poder Legislativo, assim colocando em risco o princípio da separação de Poderes, constitucionalmente protegido? O princípio da legalidade também estaria em risco? Violaria a Resolução o relevante princípio do juízo natural, como argumenta a Procuradoria-Geral da República? A solução encontrada constituiria vedada censura e indesejável ameaça ao direito fundamental à livre manifestação do pensamento, indispensável à manutenção do regime democrático, também constitucionalmente garantido?

Ou, por outro lado, estaria o TSE, nos limites do poder de polícia que lhe é legalmente conferido e amparado pela Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, restringindo o direito fundamental à liberdade de expressão, na tentativa de impedir a proliferação de conteúdo falso e discursos de ódio, prejudiciais ao regular funcionamento do processo eleitoral e, via de consequência, à própria democracia?

E o que dizer das garantias do contraditório e da ampla defesa, corolários do relevantíssimo direito fundamental ao devido processo legal, diante da previsão de que a Presidência do Tribunal, sem a necessidade de novas ações, poderá remover conteúdos considerados idênticos aqueles já removidos por decisão fundamentada de seu colegiado? A rápida proliferação de notícias falsas e os irreparáveis prejuízos daí decorrentes justificam ou não a relativização de tais princípios?

Logo se vê que a questão não é de fácil solução e exigirá prudência da Suprema Corte na ponderação dos interesses envolvidos, sem perder de vista o contexto atual, em que é inegável a velocidade e a abrangência das mídias virtuais e das redes sociais, cujos excessos são de muito mais difícil localização e responsabilização do que aqueles por vezes cometidos pelas mídias tradicionais.

O avanço da tecnologia, conquanto venha trazendo inegáveis benefícios para a sociedade, sobretudo no que diz respeito à ampliação da participação nos debates públicos, coloca-nos diante de situações que, por seu ineditismo, exige soluções que não encontram perfeita adequação às normas já existentes. Se, de uma forma geral, os avanços das legislações sempre foram mais lentos do que aqueles experimentados pela sociedade, no campo das tecnologias esse “atraso” é ainda mais evidente.

Assim, para responder à indagação título dessas breves considerações, a ponderação de interesses, críticas à parte – e não são poucas! – parece ser o método mais adequado, sobretudo se adotado como norte, o princípio da dignidade humana.

Nota__________________

1 Editora Lumen Juris, 1a Edição, p. 90.