Agravos e federalismo – A paradigmática Lei nº 12.322/2010 e os Recursos Superiores

30 de setembro de 2010

Aurélio Wander Bastos Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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A tradição estrutural do Direito Processual brasileiro tem uma natureza unitária, diferentemente da expectativa dos liberais republicanos que esperavam uma configuração dos códigos processuais de natureza não propriamente confederada, mas descentralizada, fortalecendo a posição legislativa dos estados membros da Federação. Ocorre, todavia, que a pragmática judiciária do Império teve uma força determinante na construção do Direito Processual brasileiro, contribuindo para que a proposta processual republicana federativa evoluísse para a uma construção jurídica centralizada do Código de Processo Civil, o que, todavia, encontrou forte resistência na formação consuetudinária praxista.
É bem verdade que durante o período de vigência da Constituição de 1891 essa tendência não se consolidou juridi­camente, exceto em algumas unidades federativas isoladas, decidindo os tribunais estaduais, conforme a sua tradição judiciária, obedecendo à práxis judiciária das províncias, segundo as próprias formulações rotineiras. Nesse sentido, se evoluímos para uma construção republicana conceitualmente pura, suscetível de qualquer forma à influência positivista, o nosso federalismo não propriamente evoluiu na forma de uma política administrativa descentralizada, mas politicamente centralizada, resguardando a estrutura judiciária tradicional, permitindo que mais tarde os antigos tribunais provinciais das Relações se transformassem nos tribunais de justiça estaduais.
O federalismo centralista, na verdade herdeiro atávico do Estado Imperial unitário, desta forma, não teve a força administrativa suficiente para evitar que os tribunais de justiça sobrevivessem descentralizadamente no contexto geral da Federação. Ao mesmo tempo, todavia, a partir dos anos que sucederam a Revolução de 1930, mas muito especialmente a partir de 1939, o federalismo descentralista dos tribunais começou a sofrer as primeiras dificuldades institucionais, princi­palmente com o advento das normas processuais preliminares da Revolução de 1930, seguida da promulgação do Código de Processo Civil em 1939, o que não rompeu, todavia, com o atavismo da cultura judiciária dos tribunais estaduais herdada das práticas das Relações, que funcionavam como última instância no império, enfraquecendo inclusive a criação do Superior Tribunal de Justiça, em 1828.
Estas especialíssimas mudanças processuais corroboraram para o desenvolvimento de uma cultura judiciária federativamente vinculada, mas que não foi suficiente para que se aprimorasse uma cultura judiciária, cujos parâmetros de decisão fossem nacionais, na forma dos propósitos de uniformização jurisprudencial federativa. Esta situação permitiu que todos os tribunais se orientassem no processo decisório civil, de acordo com as bases processuais do Código Civil, mas ao mesmo tempo não deixaram de resguardar, o que acabou fortalecendo, ao nível estadual, o processo de conhecimento e aplicação da legislação processual civil na implementação dos diferentes conflitos que afluem e perfazem o cotidiano dos tribunais, reforçando o papel federativo dos tribunais estaduais, inclusive na definição do direito aplicado.
Neste contexto, apesar do Código de 1939, judiciariamente os tribunais estaduais fortificaram a sua posição e, devido às aberturas circunstanciais do Código, permitiram, através do incentivo alternativo dos agravos aos recursos diretos, que o entendimento processual das situações substantivas de segunda instância tomassem um caráter definitivo, tendo em vista a fragilidade do agravo de instrumento como mecanismo próprio para viabilizar a modificação dos acórdãos por decisão dos tribunais superiores. O Código de 1973, publicado em circunstâncias políticas muito semelhantes ao Código de 1939, no qual predominavam políticas autoritárias, aliás, uma prática da edição de códigos no passado, não incentivou as condições necessárias para provocar uma abertura no modelo de 1939, foram alternativas elementares que mais superpunham novos agravos ao agravo de instrumento, e, no sentido geral, apesar dos seus avanços técnicos, não propiciou as condições para uma remodelação processual na estrutura hierárquica do Poder Judiciário. Dessa forma, nestes períodos autoritários, as medidas, mesmo as de natureza processual, não visavam fortalecer a estrutura federativa do Judiciário, mas o centralismo do Poder Executivo, que, controlando a União, na função de poder central, perpassava a autonomia hierárquica dos tribunais estaduais, o que permitiu criar os tribunais federais, em 1967, também com força de segunda instância.
Neste sentido, nos tribunais estaduais, as decisões que inadmitiam os recursos extraordinários inicialmente e os recursos especiais, posteriormente a 1988, adquiriram uma natureza que não apenas consolidava as decisões de segunda instância, mas também fazia com que os acórdãos destes tribunais tomassem dimensão de decisões teleológicas, muitas vezes prejudicando uma razoável apreciação da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça (depois de 1988) e do Supremo Tribunal Federal (mesmo anteriormente à Constituição de 1988). A inadmissibilidade dos recursos extraordinários e especiais, neste sentido, adquiriu uma dimensão interceptativa da apreciação das matérias de Direito em última instância, e, ao mesmo tempo, favoreceu o crescimento extensivo da utilização dos agravos de instrumento para se levar as matérias de Direito ao STJ ou ao STF, o que ficou quase impossível devido à grande interpenetração de agravos sistêmicos no processo de decisão do Tribunal Superior, tornando remotíssima a possibilidade de esses tribunais superiores apreciarem as decisões de segunda instância.
Ocorre, todavia, que o agravo de instrumento, o qual quase sempre permitia que a matéria de Direito fosse levada ao Tribunal Superior por vias colaterais, não corroborava procedimentos que levasse o Tribunal Superior a apreciar a matéria na sua estrutura processual de formatação histórica, fazendo com que a matéria fosse apreciada na forma de segmentos documentais dispersos, o que permitia uma sucessão de agravos intrasistêmicos, vitalizando uma estrutura complementar ao Código. Assim, pela sua natureza, o agravo de instrumento se constitui de um conjunto de peças avulsas que nem sempre permite a apresentação coesa da matéria de Direito decidida em instância inferior, o que não propriamente em princípio ocorre com o recurso especial ou com o recurso extraordinário, quando diretamente apreciados, porque nestas circunstâncias eles são mais expressivos e representativos da história do caso na sua forma processual e substantiva. O agravo de instrumento, neste contexto, mais servia como mecanismo para provocar em decisões positivas a subida do recurso, o que significa uma certa duplicidade na apreciação da matéria e no esgotamento do tempo.
O agravo em separado, remetido aos tribunais superiores a ele, pode não traduzir a exata dimensão da questão em juízo, o que significa que a posição adotada pela Lei nº 12.322, de 9 de setembro de 2010, definindo que, nos casos de o recurso extraordinário ou o especial não serem admitidos, cabe agravo nos próprios autos aos tribunais superiores, ampliando a dimensão perceptiva do conjunto do feito, e tem efeitos que requalificam a hierarquia federativa dos tribunais. Este novo procedimento restringe custos  e inclusive dispêndio de pessoal, mas principalmente reduz o tempo da apreciação judiciária da matéria de direito, cria as condições necessárias para fazer com que a questão casuística em discussão seja levada ao Tribunal Superior na forma da composição integral dos próprios autos e não através de agravo em separado, acompanhado de documentos segmentados e dispersos que nem sempre traduzem a verdade jurídica, permitindo que ela venha a ser discutida na forma de instrumentos intrasistêmicos que nem sempre geram decisões persuasivas.
Esta posição adotada pela nova Lei tem, da mesma forma, grande alcance constitucional à medida que ela preserva o contraditório, permitindo que o agravado ofereça a sua resposta no contexto dos argumentos do agravante, respeitando-se o Código de Processo e a Lei nº 11.672 / 2008, sem que esta movimentação desarticule a linearidade do regimento dos tribunais. A Lei não questiona assim a soberania da decisão de segunda instância dos tribunais, mas vincula a apreciação do acórdão e a inadmissibilidade dos recursos pelos próprios tribunais aos agravos das partes como pressuposto da apreciação superior. Na verdade, é um significativo corte nos recortes da burocracia processual, que, agilizando a movimentação do processo, fortalece o papel judiciário da segunda instância. O encaminhamento, por conseguinte, dos autos do recurso ao tribunal não apenas elimina um agente de congestionamento judiciário, que são os agravos de instrumento que procuram contornar a inadmissibilidade do recurso, como também instaura o princípio da hierarquia federativa, evitando diversidades na interpretação jurisprudencial entre os tribunais estaduais, e, ao mesmo tempo, viabilizando uma efetiva uniformização jurisprudencial combinada com efeitos constitucionais vinculantes.
Finalmente, a transformação do agravo de instrumento interposto contra decisão que não admite recurso extraordinário especial em agravo nos próprios autos pode contribuir para a agilização do processo decisório, evitando a morosidade sistêmica não propriamente criando novos mecanismos processuais, como tem acontecido na prática judiciária brasileira, mas inovadoramente fazendo com que a juntada do agravo nos próprios autos do recurso especial ou do recurso extraordinário evite a duplicidade de decisões e fortaleça o recurso especial ou extraordinário como os instrumentos processuais fundamentais à consolidação federativa, aliás, tese que incentivamos o aprofundamento desde a publicação de nosso livro intitulado “Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário”.