Anotações sobre Sistema de Justiça, efetividade da Jurisdição Civil, Defensoria Pública e o tempo do processo judicial

5 de novembro de 2020

Matheus Góes Santos Defensor Público do Estado da Bahia

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O atual Sistema de Justiça, sabe-se, enfrenta gargalos gigantescos: litigância multitudinária, tratamento procedimental inadequado do litígio, sobreposição de atuações institucionais. O resultado é a entrega morosa do serviço reclamado e o sentimento de frustração do cidadão, cuja confiança nas Instituições, embora seriamente abalada, felizmente teima em subsistir.

Acesso à Justiça e acesso ao Judiciário não se confundem.

O conceito de justiça atravessou diversas civilizações e concepções filosóficas, não sendo aqui o locus adequado a esta relevante discussão, que foge aos limites epistemológicos deste texto.

Sistema de Justiça, na Constituição da República (CRFB), compõe-se do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Advocacia e da Defensoria Pública. São Instituições que devem, em estágio ótimo, atuar em rede para consecução das tarefas impostas pelo constituinte.

É comum, pragmática e conceitualmente, os profissionais do Direito fazerem tábula rasa da diferenciação entre acesso ao Sistema de Justiça e acesso ao Poder Judiciário, embora os contornos de cada um estejam explicitamente delineados na CRFB.

Defensoria Pública como instrumento de acesso à justiça decorre da normatividade  constitucional e legal (CRFB, art. 134; Lei Complementar nº 80/1994; Constituição do Estado da Bahia/ CE-BA; LC-BA nº 26/2006). O Defensor, sem dúvidas, deve ser chamado a assumir o papel de agente transformador e envidar esforços para o alcance da resolução do conflito por meios extrajudiciais (LC 80/1994, art. 4º, I), evitando o ajuizamento.

Cumpre ao membro da Defensoria Pública operar para realização do texto constitucional (CRFB, art. 134), promovendo alteração da realidade, a viabilizar o pleno exercício dos direitos fundamentais do cidadão. Afinal, “O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas” (Bobbio, 2004). Deve-se sublimar a atividade defensorial, dotando-a de eficácia resolutiva, a fim de solucionar problemas práticos, de pessoas de carne e osso; não quimeras, forjadas artificialmente.

Mais recentemente, houve reforço na política de implementação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), reiterando no Poder Judiciário a cultura de resolução negociada do conflito. Cabe exame e implementação efetiva das práticas constantes do Manual de Mediação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acerca do fórum de múltiplas portas (multidoor courthouse).

Com tal proceder, alcança-se mais rapidamente a pacificação do conflito (acesso à justiça), permitindo, por outra via, que o Judiciário centre esforços na condução dos processos instaurados naquela instância (acesso ao Poder Judiciário). Após monitoramento e avaliação, tanto da atividade defensorial no âmbito da mediação/conciliação, quanto do Cejusc, vale pensar em implementações de modelos outros, paralelos, que dispensem a paquidérmica estrutura estatal, devolvendo aos cidadãos, jurisdicionados, o poder de resolver os rumos do conflito. Seria mais uma porta a se abrir, visando a buscar a conciliação antes do ajuizamento. A orientação da Defensoria Pública, obviamente, permanece quanto ao respectivo público alvo.

O sistema de múltiplas portas não confere protagonismo exclusivo a uma instituição; está a reclamar atuação compartilhada e colaborativa, para solução dos conflitos, da forma mais adequada ao caso concreto. A adequação exige uma capilaridade, na maneira de conseguir tocar os que estão envolvidos no conflito, a conhecer e desvendar aquela específica realidade. A realidade de cada pessoa. Resolução Apropriada de Disputas (RAD), pois.

Nenhum profissional do Direito pode – de forma apaixonada, como em “Cupido e Psique” – almejar a tutela de vidas alheias. Deve atuar, por diversos meios, para conferir informação e orientação qualificadas, a fim de devolver o poder de deliberação ao cidadão (LC 80/1994, artigos 1º, 4º, I, II, III); retê-lo seria, no mínimo, exercício narcisista. “Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos” (Freud, 1927~1931). Papel relevante da atuação defensorial que, nesta esteira, merece registro: difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico (inciso III).

Consabido, a conciliação e a mediação, e.g., são informadas pela autonomia da vontade (Código de Processo Civil/ CPC, art. 166). “É desejável, em suma, que, nas coisas que não digam respeito primariamente aos outros, a individualidade se possa afirmar” (S. Mill). Evitando-se a heterocomposição, devolve-se o poder de conduzir as respectivas vidas aos personagens do conflito.

É perceptível, em audiências judiciais e extrajudiciais, a dificuldade de transmitir essa mensagem aos litigantes: são estes que possuem o poder de resolver as próprias vidas. Os profissionais do direito estão ali para melhor conduzir a sessão e promover adequada orientação e educação em direitos. O inadequado tratamento do litígio e o amarrado rito, com instituição de etapas processuais desconformes, criam mais angústias e atentam contra a tempestividade da jurisdição. E tal circunstância repercute enormemente no comportamento dos personagens do conflito antes e durante a instauração da instância judicial.

Resolução apropriada de conflitos é também aquela dotada de celeridade. Em tempos de crítica e revisão de atuação das instituições nacionais, pouco se tem construído sobre a redução do tempo de tramitação do processo judicial.

Conquanto tenha ganhado existência novo diploma processual, a sentença judiciária, neste milênio, ao menos no Brasil, não produz, em regra, efeitos imediatamente (CPC, art. 1.012). Ou seja, mesmo após postulação por intermédio de profissional habilitado, precedida de consulta percuciente e coleta de documentos, controle judicial da admissibilidade, audiência, defesa processual, contraditório, nova audiência, produção de provas, novas manifestações processuais das partes, o pronunciamento judicial precisa de confirmação de outro órgão judicial superior.

Cuida-se de denegação de justiça legislativamente incentivada.

“(…) qualquer reforma séria da Justiça Civil no Brasil tem de levar em consideração essa circunstância. Nosso sistema alimenta profunda desvalorização do juízo de primeiro grau ao não lhe deferir nenhuma função decisória” (Marinoni, 2016).

A incoerência do sistema salta aos olhos: “o processo civil brasileiro atribui maior peso em termos de efetividade e tempestividade a decisões provisórias do que a decisões definitivas – nada obstante o juízo que alicerça as primeiras seja evidentemente menos seguro que o juízo que embasa as segundas. (…) . Nesse

particular, o legislador inadimpliu com o seu dever de desenhar um processo capaz de viabilizar tutela jurisdicional tempestiva (art. 5.º, LXXVIII, CRFB)”.  (Marinoni, 2017).

Tampouco existe discussão vivaz em níveis reformadores a se repensar o sistema de “quatro instâncias” da jurisdição civil. O postulante, patrocinado pela

Defensoria Pública, vê-se na condição de ter de esperar a manifestação do juiz de Direito, do órgão colegiado do Tribunal de Justiça, do presidente deste, do ministro ou órgão colegiado do Superior Tribunal de Justiça e, em várias oportunidades, do ministro ou órgão colegiado do Supremo Tribunal Federal.

Esta via crucis é normalmente percorrida quando o postulante litiga contra imensos conglomerados econômicos, para quem mais vale postergar o litígio do que resolvê-lo prematuramente, ante a inexistência de providências ou até de instrumentos dissuasórios de comportamentos processuais indesejados. Autêntico abuso do direito de defesa, reiterando argumentos afastados em todas as instâncias, muitas vezes em frontal colidência com precedentes vinculantes (CPC, art. 927).

Em suma: o grande prejudicado é o cidadão, jurisdicionado em geral, e em particular, o postulante, patrocinado pela Defensoria Pública, que vê a justiça sendo entregue muito tardiamente. “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.” (Ruy Barbosa, 1920).

Essa sistemática, como posta, é um tremendo desestímulo à composição extrajudicial do conflito, pois os gastos já foram previstos e incorporados pelos agentes econômicos. Sopesou e deliberou usufruir vantajosamente de um moroso rito, a postergar o fato econômico possivelmente gravoso (condenação em quantia), mantendo-se na titularidade de bem da vida, por longo tempo.

Neste País, uma causa que tramita em juizado especial – a qual por definição é de menor complexidade (Lei nº 9.099/1995, art. 3º) – é capaz de, em tese, instaurar a instância da mais alta Corte (Súmula 640, STF).

Diante da sociedade de massa, o sistema, definitivamente, é disfuncional.

Pode não parecer, mas o Brasil é uma federação (CRFB, art. 60, §4º). É chegada a hora de os estados-membros avocarem para si algum protagonismo no reconhecimento de problemas e soluções locais, a servir como laboratórios da democracia (Sarmento, 2012; SCOTUS), inovando em matéria de procedimento, com cautela e prudência (CRFB, art. 24, XI, e §2º), simplificando-o. A vida na cidade grande é diversa daquela em cidade do interior, que difere, por sua vez, da vida das mulheres e dos homens do campo.

Simplificar é a tônica, v.g., oralidade potenciada, concentração de atos (defesa, produção probatória e julgamento em audiência una), prazos reduzidos. Convenhamos: a oralidade beira a inexistência na realidade forense. As “palavras compridas e difíceis da gente da cidade” eram “inúteis e talvez perigosas” (Graciliano Ramos, Vidas Secas).

O cidadão não entende, com razão, o porquê de tanta frequentação em audiência sem pronta resolução da questão posta. A sede por justiça deve ser a mesma; os procedimentos para alcançá-la, não, ante o caráter instrumental deles. (…)

Nosso Sistema de Justiça está inserto numa complexa realidade, o que incrementa as missões de ordinário existentes. Neste País, “O problema mais gritante é o da distribuição de renda. (…) Passando para o terreno comparativo, dados do Banco Mundial mostram como o Brasil é um dos países socialmente mais desiguais de todo o mundo” (Fausto, 2006). Esse quadro inevitavelmente impacta no tipo de solução e tratamento que será ofertado ao litígio.

O desafio é enorme, haja vista ser a Bahia um Estado extremamente desigual, com dimensões nacionais e problemas de semelhante porte. Sem fetichismos, vale reconhecer que o norte já foi entregue – a CRFB (e a CE-BA) – a qual, não sendo perfeita, foi, ainda assim, capaz de semear uma cultura constitucional apta a inspirar o respeito às instituições e à melhor tradição brasileira. Deve-se, vale insistir, laborar com vistas ao reconhecimento de problemas e soluções locais.