Edição 244
Aspectos jurídicos da reparação da escravidão
4 de dezembro de 2020
Camila Bon Advogada, Presidente da Comissão de Igualdade Racial do IAB
Humberto Adami Presidente da Comissão de Igualdade Racial do IAB
Foi aprovado por aclamação pelo plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), na sessão ordinária virtual de 9 de setembro de 2020, o parecer intitulado ‘Aspectos jurídicos da Reparação da Escravidão’, elaborado pela Comissão de Igualdade Racial do IAB. A sessão, presidida pela presidente nacional do Instituto, Rita Cortez, contou com a sustentação oral de grandes juristas e militantes do movimento negro.
A proposta do parecer sobreveio da necessidade de se elaborar um documento jurídico que abordasse a definição de “Reparação da Escravidão”, apresentando todos os elementos que compõem e legitimam esse instrumento complexo de luta, que visa a reconstruir o modo de funcionamento da democracia brasileira para garantir a igualdade étnica-racial no exercício da cidadania, tendo como base o respeito à dignidade humana e o reconhecimento dos traumas da escravidão negra.
A fundamentação do parecer se inicia com a análise jurídica sobre “O que é a Reparação da Escravidão?”, reconhecendo se tratar de um movimento de reconstrução da identidade nacional brasileira. Nesse processo, se pretende desconstruir o mito da democracia racial ao evidenciar práticas discriminatórias que permeiam todas as interações relacionais do Estado Democrático de Direito vigente. Práticas que, como se sabe, constituem o legado da escravidão negra, que durou mais de 350 anos.
Ao reconhecer que o grande legado da escravidão é o racismo estrutural e institucional que atua como obstáculo à igualdade constitucional dos sujeitos pertencentes ao pacto da nação, o parecer evidencia que a Reparação da Escravidão está inserida no contexto de Justiça de Transição, uma vez que demanda mecanismos judiciais e extrajudiciais para alcançar a readequação democrática das instituições, assim como a constituição da identidade nacional através de um novo relato da história – com a inclusão das memórias que foram omitidas.
Em seguida, o parecer apresenta “Quais são os fundamentos da Reparação da Escravidão?” e identifica quatro paradigmas contidos na dimensão da Justiça de Transição como forma de lidar com a violência perpetrada no passado e de que ainda é alvo a população negra, com vistas a formar uma comunidade política pacificada, na qual todos tenham igualdade de direito no exercício da cidadania. Assim, os fundamentos que orientam a Reparação da Escravidão são o direito à memória e à verdade, o direito à reparação moral e material das vítimas, a responsabilização formal dos agentes perpetradores das violações aos direitos humanos e a reforma das instituições visando a readequação democrática.
O parecer caminha para abordar “Quais são as fontes da Reparação da Escravidão?”, trazendo sua origem nos movimentos abolicionistas e o destaque dado ao tema pelo movimento pan-africanista, do qual fez parte o importante militante negro Abdias do Nascimento. Como principais fontes da reparação, o parecer apontou a Declaração de Durban e seu Plano de Ação, elaborados na 3ª Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância, de 2001, marco a partir do qual o tráfico de escravos e a escravidão foram reconhecidos pela comunidade internacional como crimes contra a humanidade. Identifica como fonte também o extenso Plano de Ação produzido pela Comunidade do Caribe (Caricom) em 2014, bem como a iniciativa de proposta de reparação material por parte do Movimento pelas Reparações dos Afrodescendentes (MPR), na pessoa de Fernando Conceição.
O documento elaborado pela Comissão de Igualdade Racial do IAB expõe ainda “Quais são as diferenças entre ação afirmativa e Reparação da Escravidão?”, demonstrando que as políticas de ação afirmativa são uma das modalidades de reparação da escravidão. Enquanto as ações afirmativas são medidas temporárias que pretendem equilibrar a fruição de direitos fundamentais por parte de grupos “vulnerabilizados” em razão das desvantagens históricas que não conferem as mesmas oportunidades se comparados a outros grupos sociais, a Reparação da Escravidão procura atingir as estruturas de base do Estado Democrático de Direito por meio da transformação da consciência coletiva, com o reconhecimento do papel fundamental da população negra na construção da identidade nacional.
O parecer segue, então, para a análise sobre “Quais os modelos de propostas de reparação existentes?”, trazendo a experiência da Justiça Restaurativa vivenciada na África do Sul. É apresentado que dentro do paradigma de Justiça Restaurativa incluem-se faces da Justiça Retributiva, no tocante às punições dos responsáveis pela prática de violências, mas que o objetivo primordial é a transformação das sociedades com a restauração dos elos cindidos após violações generalizadas de direitos humanos. Frisa-se a necessidade de recontar a história, com base na memória e na verdade dos fatos, para a superação de tudo aquilo que ainda oprime a população negra, criando de fato um sentimento de igual pertencimento à nação e o exercício igualitário da cidadania.
O próximo tópico abordado pelo parecer jurídico é “A Reparação da Escravidão no mundo”, no qual são citadas diversas medidas reparatórias adotadas internacionalmente, como, por exemplo, o caso da Namíbia, que busca judicialmente reparação contra a Alemanha pelo genocídio dos povos africanos herero e nama. Há, ainda, o caso da Suíça, que no final de 2019 formou o Comitê Suíço de Reparação da Escravatura (Scores), para estudar a sua influência no tráfico de escravos e reparar os países afetados pela escravidão.
Por fim, o parecer analisa “Quais as iniciativas e medidas reparatórias da escravidão no Brasil?”, fazendo uma retomada histórica da legislação e das políticas públicas que permitiram a criação de espaços institucionais para o enfrentamento às desigualdades raciais. Dentre as medidas apresentadas estão a Lei da Pequena África, o Decreto nº 4.887/2003, que regulamentou o direito constitucional previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 para demarcação e titulação das terras quilombolas, as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que incluíram a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, a criação, em 2014, da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, dentre outras.
No encerramento, o parecer ‘Aspectos Jurídicos da Reparação da Escravidão’ adota propostas de reparação material e simbólica como forma de combate ao racismo estrutural e institucional que segue ceifando vidas, oportunidades e direitos da população negra. O trabalho constitui importante estratégia da luta política, pois cria um arcabouço teórico que dispõe objetivamente acerca dos elementos necessários à superação do legado da escravidão, com vistas à construção de uma nova identidade nacional de respeito e memória dos africanos escravizados e seus descendentes, de forma a alcançar o exercício pleno da cidadania por essa população.