Sobre a imparcialidade do juiz

10 de dezembro de 2019

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Considero a carreira da magistratura, para quem a exerce com vocação e desprendimento, uma das mais belas que se pode ter.

É que, como dizia Carnelutti, o juiz deve ser mais do que um simples homem; deve aproximar-se de Deus, tal a dimensão de sua responsabilidade. Não era por outro motivo, explicava o notável mestre italiano, que as antigas civilizações fundiam, numa só pessoa, as figuras do sacerdote e do julgador. A toga dos magistrados é uma herança daqueles tempos e simboliza a sacrossanta missão de que está incumbido.

Julgar o semelhante é uma tarefa tão árdua que o próprio Senhor Jesus já advertia: “Não julgueis”. Mas o homem, por outro lado, é tão egoísta que, como alertava Cícero, “se fosse preciso escolher entre três coisas: cometer injustiças e não sofrê-las; cometê-las e sofrê-las; ou evitar ambas, ele preferiria cometê-las impunemente”. Por isso, para evitar que o forte esmagasse o mais fraco, para evitar que o poderoso levasse vantagem em tudo e para que prevalecesse a verdade, criaram-se os tribunais, atribuindo-se aos seus membros a exclusividade de dizer o direito, ou seja, de afirmar, diante de um conflito, quem estava com a razão, tornar efetiva a decisão e contribuir, de tal maneira, para a desejada paz social.

Nesta labuta o magistrado enfrentará pressões, às vezes dos poderosos, às vezes da opinião pública. O seu maior desafio, contudo, será vencer as suas paixões, a fim de que elas não maculem o seu veredicto e, este, seja visto como a verdadeira expressão da justiça. O magistrado deve agir de modo transparente; deve primar por sua independência; deve revelar integridade pessoal e profissional; precisa atuar com diligência e dedicação; deve conduzir-se de acordo com a dignidade, honra e decoro próprios de suas funções; necessita buscar conhecimento e capacitação contínuos; e, acima de tudo, deve primar pela imparcialidade. O Código de Ética da Magistratura, por sinal, em seus artigos 5o, 6o, 8o e 10o assim o impõe.

A imparcialidade é o que distingue o juiz e é o que pacifica vencido e vencedor da demanda. Ela deve estar presente em qualquer processo, mas, em especial, avulta nos processos penais, quando o réu possui contra si toda a estrutura do estado, para provar a sua culpa e, de outro lado, apenas, heroicamente, o seu advogado ou o defensor público. Já se vê, daí, a disparidade de armas entre acusação e defesa, motivo, certamente, da máxima de que “res sacra réus”.

Em uma de suas mais belas páginas o grande Rui Barbosa, o patrono da advocacia brasileira, em aula de direito constitucional, com enfoque nas legislações romanas e hebraicas, a respeito do julgamento de Cristo, deixou gravado, em letras de fogo, uma lição eterna, que deveria ser seguida por todos aqueles que vestem ou que pretendam vestir a toga inconsútil da magistratura. Disse ele: “Por seis julgamentos passou Jesus e, em nenhum, teve um juiz (…). Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos”, que condenou diga-se, o maior dos inocentes. Não há, em verdade, coisa pior do que o juiz tomar partido, ainda que seja contra o pior dos criminosos, haja vista que é a obediência à ética profissional, ao devido processo legal, ao tratamento igualitário entre as partes, dentre outros requisitos incontornáveis, que garante a santidade das decisões e a certeza de que, num estado democrático de direito, todos terão um julgamento justo.