Ativismo judicial e pandemia de covid-19

14 de dezembro de 2021

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Durante o período da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, o Poder Judiciário adotou necessárias medidas para a Administração Pública quanto à proteção da saúde – como, e.g., a necessidade da recondução a fundamentos técnicos na discricionariedade administrativa das decisões dos agentes estatais[1] – e a preservação da autonomia federativa – como, a título exemplificativo, a autonomia para implementação de medidas locais e regionais de exercício do poder de polícia relativo ao isolamento social[2].

Embora para críticos as decisões da Corte Constitucional teriam sido exercício da técnica de decisão de ativismo judicial, nota-se um papel do Supremo Tribunal Federal na preservação das próprias competências e procedimentos legais, pois, embora desconhecida, a Lei Federal nº 13.979/2020, que se encontra em vigor e decretou as medidas para enfrentamento da pandemia, determina que a atuação da Administração Pública deve ser baseada em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverá ser limitada no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública[3], respeitando as competências federativas[4].

Como cediço, o Estado Democrático de Direito se erige sobre a dialética entre constitucionalismo – enquanto técnica de limitação do poder como forma de garantia dos direitos básicos do cidadão – e democracia – enquanto soberania popular e vontade da maioria – e, portanto, sob uma tensão imanente entre os direitos fundamentais e o governo democrático, que resvala para a Administração Pública.

Cabe à Constituição e à jurisdição constitucional garantir as condições necessárias ao processo democrático, mediante a garantia das condições procedimentais e da reserva do espaço próprio do pluralismo político, assegurando um ambiente para o adequado funcionamento da deliberação política, inclusive, com a garantia das liberdades fundamentais essenciais ao exercício democrático.[5]

A Constituição não pode e nem deve ter a pretensão de suprimir a deliberação legislativa majoritária, mas deve proteger as condições procedimentais que permitam o desenvolvimento do processo político deliberativo, de modo que o exercício da jurisdição constitucional não importe apenas na proteção dos direitos fundamentais contra a manifestação da vontade da maioria, mas igualmente, o processo de concretização das normas constitucionais envolve o reconhecimento de legítimo espaço da conformação legislativa e da discricionariedade administrativa.[6]

No âmbito da pandemia é a difícil, mas possível e necessária, conciliação entre proteção do direito humano-fundamental-social à saúde, impondo as medidas necessárias de saúde pública enquanto persistir o estado de pandemia de natureza global, mas igualmente preservação dos demais bens e valores constitucionais – como a liberdade econômica – na medida em que possível, nas concessões recíprocas e necessárias que incluem um juízo de ponderação entre os interesses envolvidos.

Neste viés, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em sede de decisão monocrática, concedeu liminar requerida em ação civil pública do Ministério Público Federal determinando o retorno em duas semanas das atividades presenciais suspensas nas instituições federais Cefet/RJ, CPII, IFRJ, INES, UFRJ, UFRRJ e UniRio. Em que pesem questões de índole processual que merecem ser discutidas na referida ação, no que tange à administração pública das instituições de ensino superior, o tema demanda uma reflexão da decisão da jurisdição constitucional, ainda que em via difusa.

Se cabe ao Poder Judiciário a correção da discricionariedade, isto ocorre apenas no que tange à sua conformidade com o Direito, a racionalidade do discurso que a legitima, o atendimento ao código dos valores dominantes e a proporcionalidade na correlação lógica entre motivos, meios e fins[7], porém, jamais no que tange à substituição da escolha da Administração.

As escolhas administrativas envolvem questões de considerável complexidade que demandam conhecimento específico, nas quais o emprego da técnica permite tornar o ato administrativo instrumento racional e manejável, garantindo a clareza e previsibilidade do fenômeno administrativo[8], algo que o Poder Judiciário não está preparado para realizar.

Falta à jurisdição constitucional o conhecimento dos juízos técnicos formulados no processo de tomada de decisão administrativa, na medida em que o mérito administrativo envolve a complexidade de inúmeros interesses públicos, para o qual o Poder Judiciário não necessariamente possui capacidade institucional. Por esta razão, há clara violação ao princípio da separação dos poderes, ao se ignorar que a especialização funcional se densifica na competência técnico-operacional dos órgãos especializados da Administração Pública, em razão da especialização funcional[9], para avaliação dos fatores exógenos a partir dos atores, métodos e subsídios envolvidos na ação estatal que permitem a visão global sobre o tema.

Um retorno em duas semanas ou qualquer prazo não definido pela própria universidade ignora sua capacidade institucional de avaliar questões que ultrapassam o processo judicial e se referem à própria Administração Pública, como as licitações e dispensas para os itens de segurança à saúde, a gestão dos bens públicos e a viabilidade dentro do orçamento de sua preparação imediata e a própria questão de vulnerabilidade do destinatário do serviço público, que envolvem medidas planejadas pela gestão como funcionamento dos restaurantes universitários, subsídios ao transporte e alojamento para os estudantes carentes, dentre outros.

Quando o Poder Judiciário promove a adjudicação de prestações relativas à fruição dos direitos fundamentais, ignorando a racionalização dos fatores limitados na satisfação das múltiplas demandas, desencadeia distorções no sistema globalmente considerado que inviabilizam a eficiência da atuação estatal. O mérito administrativo é ponto de distribuição entre macrojustiça e a microjustiça, de forma que a atuação do Poder Judiciário sem considerar uma atitude de reserva no que tange ao impacto institucional e à própria organização da Administração Pública, no que se refere à gestão dos interesses, resulta em violação clara à separação dos poderes.

Em tal exemplo, se observa a necessidade de uma jurisdição constitucional capaz de permitir a necessária intervenção na concretização dos bens e valores constitucionais, mas preservando a especialização funcional do Estado Republicano, no qual há instituições com atribuições próprias e, portanto, capacidade institucional para a tomada de decisão em sua esfera de competência. Isto foi garantido pela Lei Federal nº 13.655/2018, que, ao trazer disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público, determinou que no controle judicial devem ser consideradas as consequências práticas da decisão[10], de modo que a motivação deve mostrar a necessidade e a adequação da medida imposta, inclusive em face das possíveis alternativas[11].

Torna-se necessário, no equilíbrio entre os Poderes que deve haver em um Estado de Direito, que o exercício da jurisdição constitucional observe standards de atuação no que tange ao controle da atuação da Administração Pública, de forma que o papel de guardião da Constituição e o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional não importem em substituição do mérito administrativo a título de concretização dos direitos fundamentais, com decisões que ignorem o dever legal de motivação imposto ao Poder Judiciário pela Lei Federal nº 13.655/2018, impondo um ônus consequencialista necessário ao amadurecimento do papel que as cortes constitucionais devem ter na preservação, também, do princípio democrático e da discricionariedade administrativa como sua irradiação na Administração Pública.

Notas_________________________

[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 6.421, 6.422, 6.424, 6.425, 6.427, 6.248 e 6.431

[2] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 6.341.

[3] BRASIL, Lei Federal nº 13.979/2020. Art. 3º §1º.

[4] BRASIL, Lei Federal nº 13.979 de 6 de fevereiro de 2020. Art. 3º §8º.

[5] HARBELE, Peter. “El Tribunal Constitucional Federal como modelo de uma jurisdicción constitucional autônoma”, in: HARBELE, Peter. “Estudios sobre la jurisdicional constitucional”. México: Porrúa, 2005. p. 166

[6] VITAL, Moreira. “Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional”, in: “Legitimidade e legitimação da justiça constitucional”. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 179.

[7] CUNHA, Rubem Dário Peregrino. “A juridicização da discricionariedade administrativa”. Salvador: Vercia, 2005. p. 168-172.

[8] SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. “Em busca do acto administrativo perdido”. Ob. cit. p. 461-462.

[9] GOUVÊA. Marcos Maselli de. “O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas de implementação dos direitos prestacionais”. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.22-23.

[10] BRASIL, Lei Federal nº 13.655/2018. Art. 20

[11] BRASIL, Lei Federal nº 13.655/ 2018. Art. 20 §único.