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Ativismo Judicial – Implementação forçada de políticas públicas pelo Poder Judiciário

20 de outubro de 2017

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A abordagem do ativismo judicial é de extrema controvérsia hoje em dia, particularmente no cenário que o mundo jurídico brasileiro está vivenciando. Procurei estabelecer aqui algumas ponderações, iniciando pela comparação das diversas abordagens em relação ao ativismo judicial para poder introduzir o tema e, em seguida, mostrar o cenário brasileiro e o que está nos trazendo de benefícios e contrapontos em relação a esta orientação do ativismo.

O nosso modelo constitucional é um modelo aberto, abrangente. A “judicialização da vida” é uma expressão que tem sido usada com certa frequência, posto que, hoje, qualquer controvérsia deságua no Judiciário. Trouxe aqui uma ponderação sobre uma das várias definições criadas pelo jurista português José Gomes Canotilho, que diz o seguinte: “O Estado de Direito é uma forma de organização política estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo Direito”. Temos, ainda, o dispositivo constitucional da Inafastabilidade da Jurisdição (Art. 5o, XXXV, da CF), e isso também nos traz a contingência e a obrigação de nos pronunciarmos sempre que provocados. Temos, ademais, muitas demandas sociais, por lacunas do Executivo e do Legislativo, e do objetivo de concretização da igualdade material. Selecionei, então, algumas ponderações do que seria o ativismo judicial na forma como ele é concebido e exercido, hoje, na esfera jurídica brasileira.

A escolha de um modo proativo de interpretar e aplicar a Constituição poderia se caracterizar em uma conduta que desborda a atuação judicial ordinária, chamada de expansividade, que o Supremo tem utilizado com certa frequência. Tal atuação é ligada ao comportamento dos juízes quando da aplicação da Constituição Federal em situações não contempladas, isso com respeito a uma cultura pós-positivista em que se pretende que o Direito e a política fiquem ­próximos da ética.

Na redemocratização, o Brasil vinha de um período de autoritarismo de 20 anos de muita restrição das liberdades individuais e democráticas. Desaguamos, então, na Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, que pretendeu uma constitucionalização absolutamente abrangente, com regramento principiológico e analítico. Os princípios substituíram as regras digitalizadas da legislação. As regras abertas, principiológicas, na verdade, nos trazem a faculdade de aplicar o Direito de uma forma mais abrangente, mas trazem também uma liberdade de atuação que nem sempre é utilizada com a ponderação e o equilíbrio devidos. Há uma citação de Robert Alexy que afirma: “Não há de se falar na anulação dos princípios da autonomia e separação dos Poderes (Art. 2o da CF) em detrimento da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário de lesão ou ameaça de direito (Artigo 5o XXXV da CF) ou vice-versa, mas o que deve haver é a precedência de um deles, sem que o ditado pelo outro fique absolutamente inutilizado. Método de precedência.” Portanto, quando existem conflitos entre normas e princípios, aplicam-se as normas, se a norma for expressa, e, entre princípios, tem de haver o critério da ponderação e da precedência.

No Brasil, exatamente por essa sede de liberdade que veio depois de uma ditadura militar muito rigorosa, amargada durante 20 anos, o constituinte decidiu adotar um modelo de controle da constitucionalidade híbrido. Temos, hoje, um modelo americano, que é um modelo incidental ou difuso; e temos o modelo concentrado, que é europeu, por meio da pena da ação direta. Com isso, deu-se uma abertura muito abrangente para o exercício do controle da constitucionalidade. Além disso, temos uma propositura bastante ampla do Art. 103 da CF, que permitiu que órgãos de classe possam exercer o controle da constitucionalidade: a Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Ação Direta de Constitucionalidade e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Portanto, deu-se uma acentuação do ativismo decorrente do sistema difuso.

A Constituição também deu margem para que houvesse uma adoção de regras principiológicas, conceitos indeterminados, na legislação infraconstitucional. Lênio Streck, membro aposentado do Ministério Público do Rio Grande do Sul, usou uma expressão bastante interessante, até mesmo singela, em que ele cita o “Panprincipiologismo” que seria: “Julgamentos muito subjetivos apontando apenas a opinião do julgador, que se fundamenta em princípios genéricos e podem, inclusive, se afastar da legalidade.”

A legislação infraconstitucional também adotou expressões indeterminadas, ou conceitos jurídicos indeterminados. Temos expressões como “dignidade da pessoa”, “privacidade”, “livre manifestação do pensamento”, “prudente arbítrio do juiz”, “função social do contrato e da propriedade”, “equilíbrio da base contratual” e “boa-fé objetiva”, que nos permitem fazer o que quisermos e julgarmos da forma que bem entendermos. Essas são normas infraconstitucionais, particularmente do Código de Processo Civil e do Código de Defesa do Consumidor, mas a Constituição Federal, em seu preâmbulo, já usa expressões como estas: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”

Os objetivos fundamentais do Artigo 3o da Constituição Federal falam em construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O Supremo Tribunal Federal está enfrentando e, ao meu sentir com muita pertinência, a questão do entorpecente. Temos uma divergência sobre o porte de uma determinada quantidade, havendo alguns ministros que querem a liberação total. É uma discussão de ativismo, porque está se rediscutindo aquilo que o legislador não consegue fazer por conta da dificuldade de composição das nossas assembleias de legislação.

As objeções que se fazem ao ativismo, que são particularmente acadêmicas, são: a) ausência de legitimidade democrática – porque quem não teve a quantidade de votos necessária para legislar ou para gerir a coisa pública não poderia ali interferir; b) juízes não eleitos – o que demanda uma atuação técnica, ou o juiz está atrelado à imparcialidade; c) risco de politização da Justiça; d) busca e exercício da política vinculado à observação dos direitos fundamentais, pois nós, quando exercemos uma postura ativista, praticamente estamos dizendo ao político como ele deve atuar, posto que ele deve observar os direitos fundamentais na sua atuação política (justiça, segurança e bem-estar social); e) ultrapassa a capacidade institucional do Judiciário – esta é outra expressão que o nosso Supremo Tribunal Federal tem usado com certa frequência e é muito interessante, porque há questões de tecnicidade absoluta que são entregues ao Judiciário para decidir. Inclusive, ouvi agora esta expressão de um dos ministros [que se apresentaram no congresso], em relação à questão do amianto, que é uma decisão recentíssima. Como vamos decidir se o amianto pode ou não pode ser utilizado? A minha formação é jurídica e isso é uma deliberação técnica que deveria ser encaminhada por um órgão técnico com maior depuração; f) temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade; g) ausência de conhecimento para avaliar impactos e consequências sobre o segmento econômico ou prestação de serviço público – às vezes damos uma decisão para resolver um caso, e isso é muito comum no juízo de primeiro grau, quando ele exerce o controle difuso da constitucionalidade, e criamos um problema para mil outros; h) ausência de responsabilização política sobre escolhas desastradas – o político, quando faz uma escolha desastrada, paga o preço do voto, da não reeleição, enquanto o magistrado não tem essa responsabilização; i) magistrados com fortes traços ideológicos e atração pelo protagonismo e reconhecimento popular – questão extremamente atual e recorrente, com tendência a se proliferar porque é sedutor não ter limite para decidir; j) ausência de limites de legalidade estrita; e k) ausência de critérios de cobrança pelos resultados produzidos.

Quando abordamos alguns casos concretos da chamada microjustiça, temos que a concretização de direitos, pela judicialização, tem se dado de forma individual, em casos específicos, sendo atendidos apenas aqueles que têm acesso ao judiciário que, não necessariamente, compõem o estrato social mais carente daquela política. Existe, portanto, o risco de se criar desigualdade, o que os doutrinadores estão chamando de “macroINnjustiça”, ou seja, quando se aplica a microjustiça, cria-se a “macroinjustiça” nas decisões casuísticas e individuais. O ­julgador pode estar resolvendo um problema específico, mas criando vários outros.

Temos um dado retirado de uma tese de mestrado1  na qual foi identificado que, em 2011, de acordo com dados do Ministério da Saúde, os estados brasileiros gastaram cerca de R$ 190 milhões com decisões judiciais que beneficiaram somente 632 pessoas em casos da Saúde. Ou seja, cada tratamento de saúde custou cerca de R$ 300 mil. Não há plano de gestão que resista a isso. O contingenciamento de uma despesa para a gestão pública não irá resistir a uma decisão judicial.

Consequências
Estamos falando, portanto, do exercício do ativismo judicial abrangente. Temos 17 mil juízes atuando no Brasil e cada um deles pode exercer o controle da constitucionalidade individualmente, de maneira difusa, naquilo que ele entender pertinente. Há pouco tempo, estava fazendo a abertura de um encontro de juízes dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e surgiu uma questão relativa à possibilidade de o juiz “achar” que a lista do SUS [Sistema Único de Saúde] não é suficiente e defender que um remédio deveria fazer parte desse rol. Pois eu digo que existem dezenas de pessoas capacitadas nas agências de saúde deliberando sobre quais são os medicamentos que devem figurar na lista do SUS. O juiz não pode “achar”. Eu digo que isso é ativismo, mas o magistrado pode responder que não, pois o caso concreto exigia. Enfim, este exemplo é apenas para promover uma reflexão.

Quais são as consequências desse ativismo abrangente e ilimitado? Temos as seguintes implicações: a) orientações desencontradas; b) perplexidade da população, pois cada juiz decide de um jeito; c) desconfiança progressiva em relação ao Poder Judiciário; d) inviabilidade prática de cumprimento das decisões; e) impactos desastrosos nas políticas e previsões orçamentárias; f) atendimento objetivo do caso concreto versus descontrole/desmonte da programação gerencial de determinado segmento (gestão e governança); g) vulnerabilidade do princípio da separação e autonomia dos poderes da República (sistema de freios e contrapesos – checks and balances).

Ou seja, trago aqui uma ponderação do Wolfgang Köhling [2000] em que ele diz o seguinte: “O Judiciário possui um efeito negativo sobre o desenvolvimento socioeconômico”. Ele considera que o Judiciário é fraco quando não atende às questões de velocidade e previsibilidade, que é a segurança jurídica. As consequências foram demonstradas cientificamente por Köhling: rendas per capita mais baixas; taxas de pobreza mais altas; menores níveis de atividade econômica privada; maiores taxas de criminalidade; e mais revoltas industriais. Portanto, um Judiciário mais forte pode elevar a renda per capita em quase 2%.

Algumas ponderações dos economistas Edmar Bacha, Persio Arida e André Lara Resende em relação aos efeitos da insegurança jurídica ocasionada pelo ativismo judicial concluem que a incerteza das decisões judiciais, pela falta de previsibilidade do que será decidido, conduz a essas perplexidades em relação à economia e aos investimentos estrangeiros. O ativismo é essencial, inafastável, e tem que ser exercido de acordo com as necessidades daquilo que ponderamos, sobre as proteções contramajoritárias do suprimento de lacunas legislativas ou de atuação do Executivo. Porém, a meu sentir, e o que traz uma perplexidade e um desconforto bastante grande, é que o ativismo, que é fruto da disposição constitucional do controle difuso e concentrado, pode ser exercido de forma desordenada por cada um dos 17 mil juízes. Hoje, nós vivenciamos, por exemplo, a possibilidade de um juiz mandar paralisar a usina de Angra dos Reis porque não há um plano de evacuação que ele considere eficiente.

Nossa ponderação é exatamente para direcionar a conclusão das vantagens da limitação do ativismo, ou seja, um sistema concentrado, exercido pelos tribunais superiores, porque são estes que têm todas as ferramentas para exercer isso de forma controlada, prudente e transparente. Então, teríamos os seguintes itens: a) limitação numérica dos colégios deliberativos; b) decisões sempre colegiadas; c) atuação sob controle permanente dos órgãos de comunicação social; d) publicidade abrangente e virtual do processo decisório; e) avaliação crítica imediata dos impactos das decisões; f) segurança jurídica – previsibilidade das decisões judiciais; g) os tribunais superiores conseguirem exercer uma concentração histórica e encadeada das circunstâncias (elementos) com abrangência das deliberações; h) estabilidade; i) eficiência; e j) consequente geração de confiança no Poder Judiciário.

Nesse aspecto, há também a regra básica de gestão, válida, aliás, para todos os segmentos e searas que demandam gerenciamento: quando queremos segurança, diminuímos a delegação de autoridade e concentramos o processo decisório e deliberativo; quando queremos velocidade, descentralizamos e desconcentramos, delegando mais. O grande desafio é exatamente o equilíbrio desse binômio, que se aplica perfeitamente à questão judicial.

Principais teorias do processo decisório
Passamos, então, às principais teorias do processo decisório. O Utilitarismo tem como teses centrais a “promoção da felicidade” ou do “bem-estar”. Deste conceito decorre o “Welfarism”, que resulta no critério proposto pelo Utilitarismo para justificarmos a correção moral de uma ação: minha conduta está correta se, dentre outras condutas possíveis, ela promove, no mínimo, tão bem quanto as outras, o bem-estar da utilidade geral, entendido como a soma das utilidades individuais.

Há duas escolas que, a meu sentir, são as que melhor se adequam a essa liberdade de decisão que temos que enfrentar por força de um dispositivo constitucional: Consequencialismo e Pragmatismo Jurídico. Os filósofos Richard Posner e Ronald Dworkin fazem um debate bastante aprofundado e detalhado, a partir do qual conseguem enxergar algumas diferenças conceituais entre ambas. Confesso que não vi, objetivamente, diferenças tão significativas a ponto de poder ou de necessitar trazê-las para essa conversa. A meu sentir, tanto o Consequencialismo quanto o Pragmatismo Jurídico atendem àquilo que se pretende.

Como consequências sistêmicas, temos as seguintes: se os juízes começarem a decidir única e exclusivamente com base na melhor solução prática possível para o caso em exame, o efeito sistêmico da generalização dessas decisões sobre os atores públicos e privados será nocivo, pois aumentará a insegurança jurídica. Ou seja, o juiz deve procurar a melhor solução prática para o caso, desde que isso não implique prejuízo de forma excepcional, ou instabilidade proporcionada pelo direito.

O pragmatismo jurídico não se preocupa apenas com as consequências imediatas da decisão para as partes envolvidas (case-specific consequences), mas também com os efeitos da decisão sobre o sistema jurídico e até mesmo sobre a economia, o sistema político etc. (systemic consequences). Ou seja, trata-se de pensar abrangentemente aquilo que, na administração, falamos que é “enxergar a árvore e a floresta”.

Trago a questão da saúde como um ponto recorrente, aquela que, a meu sentir, mais traz preocupação porque a saúde é um bem ilimitado. Ingo Wolfgang Sarlet e Daniel Sarmento tratam da questão dessa questão com o conceito do “mínimo existencial x reserva do possível”. O mínimo existencial tem difícil definição e, para alguns, somente pode ser estabelecido no caso concreto; para outros, está diretamente relacionado à educação fundamental, à saúde básica, à assistência aos necessitados e ao acesso à justiça. A reserva do possível é um conceito ligado às disponibilidades prática e jurídica do objeto da prestação. Temos, então, a Dimensão Tríplice (de Ingo W. Sarlet), que, de maneira resumida, inclui: disponibilidade fática dos recursos; disponibilidade jurídica – receitas competências ­tributárias, orçamentárias, legislativas, administrativas; e proporcionalidade da prestação.

Para encerrar, gostaria de abordar uma proposta legislativa, o Projeto de Lei no 8.058/2014 (Deputado Paulo Teixeira/PT-SP), que parte do princípio da ­positivação dos critérios e do controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário, tendo como princípios (Art. 2o): proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo existencial, justiça ­social, atendimento ao bem comum, universalidade das políticas públicas e equilíbrio orçamentário.

Suas características (Art. 2o, Parágrafo Único) são: diálogo institucional entre os poderes; comunicação entre o poder público e a sociedade; flexibilidade do procedimento adaptável ao caso concreto; informação, debate e controle social; soluções consensuais com o poder público; comandos judiciais com vistas a soluções exequíveis; acompanhamento do cumprimento das decisões por pessoas físicas ou jurídicas, órgãos ou instituições que atuem sob a supervisão do juiz; participação do Ministério Público (Art. 6o); prestação de informações pormenorizadas pela administração (Art. 6o, I A IV); antecipação de tutela (Art. 7o); previsão da oitiva de “assessores técnicos especializados”, tanto pelo administrador (Art. 8o, § 1o) como pelo juiz (Art. 8o, § 2o); mediação e conciliação (Arts. 11 a 13); reunião de processos individuais, inclusive em grau de recurso (Arts. 23 e 25); e limitação da ­tutela nas ações individuais (Art. 28).

Nós, brasileiros, somos positivistas, e isso é uma herança da Itália, que é positivista por essência. Tudo deve estar escrito, positivado, digitalizado. Chegamos ao ponto de, no Brasil, haver placas escritas “não pise na grama”, como se fosse necessário. A vertente positivista do Brasil está no dístico da Bandeira Nacional: “Ordem e Progresso”. Então, mais uma vez, vamos tentar positivar a ponderação do exercício do ativismo. Este projeto de lei, que foi iniciado pelos professores Ada Pellegrini Grinover, Paulo Henrique Lucon e Kazuo Watanabe, está tramitando, e esta é uma reflexão que trago para que possamos pensar e ponderar sobre o momento que estamos vivenciando.

Muito obrigado!