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Breve análise das hipóteses de cobertura fora da rede assistencial, à luz da jurisprudência do STJ

28 de setembro de 2023

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Na esteira das dificuldades econômicas experimentadas por empresas operadoras de planos de saúde, bem como da pouca eficácia do órgão governamental de controle para resolver os impasses existentes entre consumidores e empresas, o Poder Judiciário tem sido constantemente chamado a dirimir controvérsias sobre as hipóteses excepcionais de cobertura de planos de saúde a tratamentos, de atendimento aos usuários fora da rede assistencial e de reembolso pelo serviço médico-hospitalar não prestado.

Inicialmente, precisamos diferenciar os contratos de plano de assistência à saúde e de seguro-saúde. Ambos constituem instrumento de proteção e promoção do direito fundamental à saúde, visando a cobertura de tratamentos e de atendimentos médicos, hospitalares e laboratoriais por profissionais, rede de hospitais e laboratórios próprios, contratados, credenciados ou referenciados. 

O contrato de seguro de assistência à saúde (seguro-saúde) se diferencia do plano de saúde por permitir ao usuário a liberdade de escolha do médico e demais serviços oferecidos no contrato, assegurando-se o reembolso pela seguradora ao segurado ou diretamente ao prestador do serviço em relação às despesas médico-hospitalares feitas em benefício do usuário ou de seus dependentes, respeitados os termos e os limites da apólice.

Atualmente, todavia, após paulatina convergência de ambos os serviços privados de assistência à saúde, encontra-se unificado o regime jurídico dos contratos de plano de saúde e de seguro-saúde, reunidos sob o gênero “Plano Privado de Assistência à Saúde”, o que se concretizou com a edição da Medida Provisória no 2.177-44/2001, a qual modificou caput e incisos do art. 1o da Lei Federal no 9.656/1998, que regula os planos e os seguros de assistência à saúde no Brasil.

Entretanto, se ínsito aos contratos de seguro-saúde o pagamento em dinheiro de indenização securitária por reembolso ao consumidor que se utiliza de serviço médico-hospitalar para além de rede eventualmente ofertada, a mesma característica não é constatada fundamentalmente nos contratos de plano de saúde, nos quais se coloca à disposição dos consumidores uma rede assistencial, pelo que se devem examinar as hipóteses de cobertura e de reembolso dos serviços de saúde para além da referida rede (credenciada, contratada ou referenciada).

Delineadas as semelhanças e diferenças entre plano de saúde e seguro-saúde, a questão posta em análise reside em saber quais são as hipóteses excepcionais que autorizam a cobertura de atendimento fora da rede assistencial e de reembolso a consumidores de planos de saúde à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Nesse contexto, em casos de urgência e emergência, a Lei dos Planos e Seguros Privados de Assistência à Saúde prevê no inciso VI, do art. 12, que há direito de reembolso ao beneficiário de assistência à saúde sobre as despesas que efetuar quando não for possível a utilização de serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, restituição essa que deve ser realizada no prazo máximo de 30 dias após a apresentação da documentação adequada, respeitados os limites das obrigações contratuais e os preços de serviços médicos e hospitalares praticados para o respectivo produto.

Em relação às hipóteses em que ausente situação de urgência ou emergência, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) editou a Resolução Normativa no 259/2011, cujos artigos 4o e 5o estabelecem o dever de as operadoras de planos de saúde garantirem atendimento fora da rede credenciada nas hipóteses de “ausência ou inexistência de prestador, credenciado ou não, no município pertencente à área geográfica de abrangência e à área de atuação do produto”, cabendo às operadores de planos de saúde: 

(i) na ausência ou inexistência de prestador credenciado que ofereça o serviço ou procedimento demandado no município, garantir o atendimento por prestador não credenciado naquela mesma localidade, reembolsando diretamente o prestador ou, caso inviável acordo entre operadora e prestador, providenciar ao beneficiário transporte (ida e volta) a qualquer município que possua profissional credenciado para atendimento; 

(ii) na ausência ou inexistência de qualquer prestador, credenciado ou não, que ofereça o serviço ou procedimento demandado no município ou em municípios limítrofes, garantir o transporte (ida e volta) do beneficiário até um prestador credenciado para atendimento.

Se descumpridas tais garantias de atendimento e de transporte e, por consequência, indevidamente negada a cobertura a que faz jus o consumidor, caberá reembolso integral ao beneficiário que efetivamente custear o atendimento fora da rede assistencial no prazo máximo de 30 dias a contar da solicitação, inclusas despesas com transporte (art. 9o, caput). 

Por outro lado, se prevista em contrato a livre escolha de prestador pelo beneficiário (plano de “livre escolha”), optando o mesmo por tal possibilidade, será então devido o reembolso no mesmo prazo máximo de 30 dias, limitado o seu valor aos lindes contratualmente estipulados (parágrafo único do art. 9o, da Resolução supracitada).

Da leitura que se faz da Resolução Normativa ANS no 259/2011, colhe-se a predileção do atendimento no município pertencente à área geográfica de abrangência, constituindo dever primeiro da operadora providenciar/indicar prestador para realizar o atendimento no mesmo município, e apenas diante de indisponibilidade de tal profissional é que se deve realizar em município(s) limítrofe(s) o atendimento ao beneficiário, cabendo à operadora custear atendimento e transporte de ida e de retorno, sob pena de indevida negativa de cobertura.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado proveniente de sua Quarta Turma, compreendeu descumprida a obrigação da operadora de plano de saúde quando apenas disponibilizado hospital credenciado em município limítrofe, por entender que a Resolução Normativa ANS no 259/2011 garante atendimento preferencial no mesmo município, ainda que efetuado por profissional não credenciado. 

Assim, concluiu a referida Turma que “seja em razão da primazia do atendimento no município pertencente à área geográfica de abrangência, ainda que por prestador não integrante da rede credenciada, seja em virtude da não indicação, pela operadora, de prestador junto ao qual tenha firmado acordo, bem como diante da impossibilidade de a parte autora se locomover a município limítrofe, afigura-se devido o reembolso integral das despesas realizadas, no prazo de 30 dias, contado da data da solicitação de reembolso, conforme previsão expressa do art. 9° da RN no 259/11 da ANS”.

Também é considerada indevida a negativa de cobertura, acarretando o reembolso integral ao beneficiário que arcar com despesas médico-hospitalares fora da rede credenciada, o não cumprimento de prestação assumida no contrato e o descumprimento de ordem judicial que determina a cobertura do tratamento, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Não executados os serviços, em descumprimento de obrigações legais, infralegais ou contratuais, pratica a operadora do plano de saúde ato ilícito, de maneira que, se demonstrado dano material proveniente de tal conduta (despesas médico-hospitalares indevidamente custeadas pelo beneficiário), verifica-se a responsabilidade civil objetiva da operadora pelo preenchimento de seus requisitos caracterizadores, quais sejam, conduta ilícita, nexo de causalidade e dano, devendo ser fixada indenização na exata dimensão do prejuízo suportado (art. 944, Código Civil). 

De outro giro, não caracterizada responsabilidade por ato ilícito da operadora do plano de saúde, o reembolso com natureza de contraprestação, e não de indenização por inexecução obrigacional, deve ser efetuado nos limites delineados no contrato, considerados custos médios das tabelas de serviços, respeitando-se, assim, o equilíbrio econômico-financeiro da avença e o acesso à saúde de forma equilibrada.

Em suma, a fim de delimitar a responsabilidade civil por inexecução obrigacional, deve ser feita análise da natureza da violação perpetrada pela operadora de plano de saúde: legal, infralegal ou contratual. Aplicar-se-á, assim, o reembolso integral de caráter indenizatório, quando violada lei ou ato infralegal, ou o reembolso limitado aos ditames contratuais, que possui caráter de contraprestação, quando descumprido o instrumento contratual pactuado.

Bem por isso é que a busca e o atendimento por profissional à escolha do consumidor fora da rede credenciada, como, por exemplo, opção por hospital privado de referência ou médico especialista de alto custo, ainda que em sede emergencial, ensejará o reembolso pela operadora do plano de saúde tão somente a valores previstos contratualmente.

Encerrem-se as presentes notas com o alerta de que a evolução da ciência médica traz consideráveis desafios aos órgãos julgadores na avaliação da (ir)regularidade de recusas de coberturas a tratamentos e a atendimentos, com reflexos no reembolso e em sua eventual limitação aos termos pactuados.

Assim, o julgador deve atuar de forma equilibrada, zelando pela função social dos contratos de assistência à saúde, sem olvidar da segurança jurídica ínsita na observância dos limites contratualmente estabelecidos. Ao órgão julgador cabe rechaçar, desse modo, abusos por parte de operadoras em ilícitas negativas de cobertura, evitando, por outro lado, que a opção do consumidor pelo melhor tratamento, não importe em oneração desproporcional à operadora e ruptura do equilíbrio financeiro projetado para a adequada, acessível e equânime prestação desses serviços essenciais aos consumidores. Afinal, “a virtude está em saber encontrar o meio-termo entre dois extremos”. 

Notas______________________

1 A definição legal de plano de saúde está no art. 1o, inciso I, da Lei Federal no 9.656/1998, que prescreve como “prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor”.

2 “O contrato de seguro de assistência à saúde (seguro-saúde) foi instituído pela Lei Federal no 10.185/2001 que, em seu art. 1o, caput, autorizou as sociedades seguradoras a operar o seguro que se enquadra na definição de plano de saúde desde que estejam constituídas como seguradoras especializadas nesse seguro, devendo seu estatuto social vedar a atuação em quaisquer outros ramos ou modalidades. E, em seu art. 2o, prevê que, para efeito da Lei no 9.656/1998 e da Lei no 9.961/2000, enquadra-se o seguro saúde como plano privado de assistência à saúde e a sociedade seguradora especializada em saúde como operadora de plano de assistência à saúde” (Lei dos Planos de Saúde. 5a edição. São Paulo: Juspodivm, 2023, p. 86).

3 “Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: […] VI – reembolso, em todos os tipos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de trinta dias após a entrega da documentação adequada”.

4 “Art. 4o Na hipótese de ausência ou inexistência de prestador credenciado, que ofereça o serviço ou procedimento demandado, no município pertencente à área geográfica de abrangência e à área de atuação do produto, a operadora deverá garantir o atendimento em prestador não credenciado no mesmo município. 

§ 1o O pagamento do serviço ou procedimento será realizado diretamente pela operadora ao prestador não credenciado, mediante acordo entre as partes.

§ 2o Na impossibilidade de acordo entre a operadora e o prestador não credenciado, a operadora deverá garantir o transporte do beneficiário até o prestador credenciado para o atendimento, independentemente de sua localização, assim como seu retorno à localidade de origem, respeitados os prazos fixados no art. 3o. 

§ 3o O disposto no caput e nos §§ 1o e 2o se aplica ao serviço de urgência e emergência, sem necessidade de autorização prévia. 

Art. 5o Na hipótese de ausência ou inexistência de prestador, credenciado ou não, que ofereça o serviço ou procedimento demandado, no mesmo município e nos municípios limítrofes a este, desde que pertencentes à área geográfica de abrangência e à área de atuação do produto, a operadora deverá garantir o transporte do beneficiário até o prestador credenciado para o atendimento, assim como seu retorno à localidade de origem, respeitados os prazos fixados pelo art. 3o. 

Parágrafo único. A operadora ficará desobrigada do transporte a que se refere o caput caso exista prestador credenciado no mesmo município ou nos municípios limítrofes”.

5 Processo em Segredo de Justiça, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Relator para acórdão Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 16/2/2023.

6 REsp no 2.043.003/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 23/3/2023.

7 As operadoras de plano e de seguro de assistência à saúde se encontram submetidas ao Código de Defesa do Consumidor por expressa previsão do art. 1o da Lei no 9.656/1998, rememorando-se a inaplicabilidade do CDC apenas aos contratos de plano de saúde administrados por entidades de autogestão, nos termos da Súmula 608, STJ (Em idêntico sentido: PEREIRA, Daniel de Macedo Alves. “Planos de Saúde e tutela judicial de direitos”. 3a edição. São Paulo, Juspodivm, 2023).

8 Agravo Interno no RE no 1.933.552/ES, Quarta Turma, Relator Ministro Marco Buzzi, DJe 25/5/2022.

9 STJ, AgInt no AREsp 1.179.047/GO, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 1/7/2019.

10 ARISTÓTELES. “Ética a nicômaco”. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1985.