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Cidadania e separação de Poderes: de Montesquieu à atualidade

3 de janeiro de 2019

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Falar de cidadania em face da separação de Poderes implica necessariamente tratar, antes, ainda que superficialmente, dos conceitos de Poder estatal independente, de funções executiva, legislativa, jurisdicional e de controle, para melhor situar o problema, quer do ponto de vista da Ciência Política, quer do ângulo mais estritamente jurídico.

Porque cidadania de verdade só se concebe com democracia e possibilidade de participação não apenas na escolha dos governantes como no acompanhamento das políticas públicas e no acesso aos bens e serviços fornecidos pelo Estado.

O que se passa é que, para alguns, a visão do problema do resolve-se na questão da tripartição dos Poderes estatais, nos termos em que colocada na obra de Montesquieu, adotada pelo Direito Constitucional vigente na maioria dos países.

Entretanto, não é bem assim, como facilmente se pode constatar.

Primeiro, porque não foi Montesquieu o primeiro a enfrentar a questão. Ela foi tratada originariamente por alguns filósofos, na Idade Antiga, sendo conhecida a contribuição de Aristóteles na matéria.

Na Idade Moderna, o tema começou a tomar as feições com que passou a ser conhecido em nossa época.

Locke, por exemplo, falava em quatro funções e dois órgãos de Poder do Estado: a função legislativa para o parlamento e a executiva para o rei; este acumulava uma função chamada por ele de federativa — questões de segurança, guerra, paz, ligas e alianças — e outra, que seria o poder de fazer o bem público sem se subordinar a regras.

Com Montesquieu, como todos sabem, veio a tese hoje clássica da conhecida tripartição de Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, além da muito falada mas pouco percebida questão crucial dos checks and balances, isto é, os chamados freios e contrapesos.

Surgiram, então, diversas variáveis, conforme, na prática, as diferentes estruturas constitucionais da divisão de Poder: na França, pátria de Montesquieu, construiu-se uma rigidez maior na tripartição dos Poderes (basta que se pense na jurisdição administrativa ao lado da – perdão pelo pleonasmo – jurisdição judicial). Mas na Inglaterra, e em vários países parlamentaristas, prevaleceu uma menor diferenciação entre o Legislativo e o Executivo. Em outros países, como o Brasil sob a Constituição de 1891, quatro Poderes (o Moderador, além da tríade tradicional) ou a Venezuela, sob a Carta bolivariana de 1999, cinco (os Poderes Cidadão e Eleitoral, ademais dos três conhecidos), e assim por diante.

As diferentes possibilidades de estruturação dos Poderes acarretam, igualmente, diversas maneiras de se controlarem uns aos outros, ou seja, distintos modos de operação dos freios e contrapesos.

Nesse contexto, importa aferir a presença concreta de muitos elementos.

A existência ou não, num dado Estado, da jurisdição constitucional, inclusive quanto a sua forma e modo de operação: judicial review, conforme o modelo americano? Ou constitutional review, nos termos do padrão europeu?

Outra: os desafios do federalismo (desde o surgimento dos EUA), o que abrange a maneira como se manifesta, sua maior ou menor intensidade, as tradições histórico-culturais e jurídicas com que se apresenta, as nuanças do federalismo regional (como na Espanha e Itália) e, mais recentemente, do Estado comunitário (Europa).

Ainda: como é o sistema de participação? As eleições? O sistema representativo? Voto universal, divisão do eleitorado, sistema majoritário e proporcional, duração dos mandatos, organização dos partidos políticos e um imenso etc.

Não menos importante: o povo tem como acompanhar o exercício do Poder? Há mecanismos independentes e eficientes de controle? E a hoje imensamente premente pergunta: qui custodiet ipsos custodes?

Dessa sorte, partindo da práxis do Poder de um determinado Estado e de uma série de elementos referentes a sua divisão, o controle – e a consequente participação da cidadania – se manifestarão com tais ou quais características.

Não é só na prática que os modelos variam.

No plano puramente teórico, foram surgindo, desde Montesquieu e quase sempre a partir de sua trilogia estrutural básica, propostas doutrinárias altamente diferenciadas, a exemplo da de Kant, que tenta superar a contraposição entre a coexistência dos três Poderes, separados e independentes, e a unidade soberana, apresentando a idéia de um soberano geral, coincidente com a representação total do povo, e mais três poderes: o Soberano Poder, que residiria no Legislativo; o Executivo, na pessoa que governa conforme a lei; e o Judiciário, atribuindo a cada um o seu conforme a lei, na pessoa do juiz.

Ou o pensamento de Benjamin Constant, que entende haver um Poder Real ou Neutro (o monarca), o Executivo (os ministros do primeiro); o Judiciário (os tribunais); o Representativo da Tradição (assembléias hereditárias); e o Representativo da Opinião (assembléia consultiva).

Karl Loewenstein – quiçá o crítico mais importante da teoria clássica – sugere uma reclassificação política dos papéis estatais de governo, controle e responsabilidade política, nas funções de decidir, executar e controlar.

A idéia de controle surge também em muitos outros autores importantes, como Maurice Duverger, que fala nos Poderes estatais de Decisão, Execução, Consulta e Controle, embora confira ao último importância secundária em relação aos anteriores.

Kelsen e Karl Schmitt, ferrenhos adversários em matéria da titularidade do controle de constitucionalidade, e muitos outros constitucionalistas e administrativistas contemporâneos, produziram trabalhos em maior ou menor grau divergentes da diretriz tripartite de Montesquieu – aliás, nem tão clara como superficialmente parece – como os próprios autores franceses reconhecem. Nesse sentido, Marcel de la Bigne de Villeneuve, já nos princípios do século XX chegou a falar no fim do princípio da separação de poderes.

No duro – e isso não deixa de ser uma retomada de modo mais elaborado do que já dissera Aristóteles – há o reconhecimento de que não se trata propriamente de Poderes, mas de funções do Estado, que Montesquieu dividiu de modo orgânico ou institucional, a partir daqueles que as exercem.

Mas mesmo usando esse sistema é preciso admitir que o Executivo também legisla (quando emite decretos, por exemplo) e julga (basta que se imaginem as múltiplas instâncias administrativas e conselhos); o Legislativo igualmente administra (seus próprios órgãos, e se imiscui, por vezes, na execução de políticas públicas, por instrumentos variados) e julga (na Constituição brasileira há situações muito específicas, como o impeachment); e o Judiciário da mesma forma administra (além de seus próprios bens e serviços, ao decidir ações estruturais cada vez mais investe na seara executiva, o que inclusive tem se tornado um problema) e legisla (quando assume postura ativa, quando estabelece precedentes praeter legem, etc.).

Dessa sorte, uma visão hodierna da cidadania em face dos Poderes do Estado – que se apoia no binômio participação e controle – tem de levar em conta essa realidade complexa.

A visão contemporânea predominante, a partir de Loewenstein, e que se extrai do trabalho de autores variados como Reinhold Zippelius, Klaus Stern, Santi Romano, J. J. Gomes Canotilho, Eros Grau, Fábio Konder Comparato, Rogério Guilherme Ehrhardt Soares, entre muitos outros, inclusive americanos e ingleses, caminha para reconhecer alguns padrões importantes nessa matéria:

Primeiro: divisões não-estanques entre os Poderes do Estado, o que traz à primeira plana a questão da inter-relação entre eles, isto é, do funcionamento dos freios e contrapesos.

Segundo: a existência de complexidades peculiares de cada sistema positivo, o que desautoriza a noção corrente de que há sempre uma tripartição à moda de Montesquieu, até porque ela reflete uma dada visão ligada a uma dada realidade concreta inserida num determinado contexto espácio-temporal que não tem nem pode ter validade eterna nem muito menos universal.

Terceiro: o fato de que a legitimidade é um elemento a ser considerado em todas essas noções, questão que não se apresentava, com essa nitidez, na teoria clássica.

Quarto: a necessária presença de estruturas de controle, interna e externamente, no sistema de Poderes do Estado. Transparência e compliance são as palavras do dia, e elas têm a ver, cada vez mais, com a questão da legitimidade, e, por conseguinte, com o tema maior da cidadania.

Com essas considerações, concluímos que é preciso afastar, da abordagem da temática, a noção de que a teoria da tripartição dos Poderes — ou melhor — a noção de que uma visão simplista dessa teoria é suficiente para fornecer a base segundo a qual se pode construir uma análise da cidadania em face do Estado hoje em dia, porque é preciso ampliar e qualifica sua participação – além das eleições em si, a difícil alternância no Poder, sua representatividade e legitimidade – e o controle da Administração Pública (leia-se do Poder Executivo, mas não apenas) na atualidade e, mais especificamente, no Direito Positivo.

Há toda uma série de outros aspectos, metajuspositivos e até metajurídicos que é necessário levar em conta, além do fato de que, nessa seara, nada é tão singelo como pode parecer.

Para encerrar, sugerimos uma meditação sobre trecho de Loewenstein, para o qual é preciso

… ter bem claro que o princípio da necessária separação das funções estatais segundo seus diversos elementos substanciais e sua distribuição entre diferentes detentores, não é nem essencial para o exercício do poder político, nem se apresenta como uma verdade evidente e válida para todo tempo. O descobrimento ou invenção da teoria da separação de funções foi determinado pelo tempo e pelas circunstâncias como um protesto ideológico do liberalismo político contra o absolutismo monolítico da monarquia nos séculos XVII e XVIII.

O que na realidade significa a assim chamada “separação de poderes”, não é, nada mais nada menos, que o reconhecimento de que, por um lado, o Estado tem que cumprir determinadas funções — o problema técnico da divisão do trabalho — e que, por outro, os destinatários do poder sejam beneficiados se estas funções forem realizadas por diferentes órgãos: a liberdade é o telos ideológico  da teoria da separação de poderes. (…) O que, comumente, ainda que erroneamente, se costuma denominar como a separação dos poderes estatais é na verdade a distribuição de determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado. O conceito de “poderes”, apesar de estar profundamente enraizado, deve ser entendido neste contexto de uma maneira meramente figurativa.

(Loewenstein, Teoría de la Constitución, Barcelona, Ariel, 1986, trad. Alfredo Gallego Anabitarte, pp. 55/6).

Em tempos de desilusão com as instituições e a própria democracia é preciso que a Ciência Política e o Direito Constitucional reafirmem que a solução para os problemas desta nunca estarão fora dela, mas sim em seu aperfeiçoamento, aprofundamento e ampliação.

E que nada é fácil nem pode ser alcançado sem a formação de consensos mínimos.

Finalmente: a teoria tradicional da separação de Poderes não tinha de lidar com o imenso problema da insegurança jurídica, que hoje se apresenta, com suas cores mais terríveis, a um Legislativo paralisado pelas obstruções de bancadas – muito mais que de partidos – o qual, por isso, deixa sem resposta uma série de demandas sociais que findam desaguando num Judiciário que, de um lado, não foi preparado para atende-las, e, de outro, é obrigado a fazê-lo independentemente da lei ou, pior ainda, apesar dela.

Cumprir a Constituição e a lei tem se tornado um ato inusitado. Aonde isso vai nos levar? É a pergunta que eu deixo para meditação.

Referências bibliográficas____________________

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