Cidadãos acima de qualquer suspeita

31 de agosto de 2007

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Sempre será difícil escrever no fragor dos acontecimentos, mas este é o dilema do jornalismo responsável: a falta, omissão ou demora no redigir das notícias ou comentários indicam covardia ou envelhecimento.

Do noticiário de hoje, se extrai ao menos uma certeza: membros de Poder envolvidos com o crime organizado devem ser exemplarmente punidos, especialmente aqueles submetidos ao Estado-justiça, por ser o único ainda capaz de se opor à complacência do Estado-poder.

Após a seqüência ininterrupta de escândalos – que, felizmente, desde algum tempo, têm sido ao menos objeto de notícia e alguma apuração – verifica-se que o cerne do fenômeno continua sem ser molestado. São detidos e, logo depois, soltos, graças aos advogados excelentes e às fraturas da lei, os agentes periféricos da magistratura, da polícia, da advocacia, dos congressistas, da delinqüência organizada, as simples lavadeiras do dinheiro sujo, e assim vai. Mas, onde estão os chefes ou o chefe de todos os chefes? Quer dizer então que o crime organizado são as estruturas do bingo, do jogo do bicho, do contrabando, mas nada tem a ver com as estruturas do poder de Estado, do tráfico de entorpecentes, do cassino financeiro? É mesmo? Será talvez porque os bicheiros e traficantes de morros e subúrbios estão isolados em seus respectivos redutos e, por sorte, acabam por patrocinar chacinas, apenas entre suas gangs e jovens devedores ou informantes ou que o contrabando é “seu” Lao e o dinheiro sujo é lavado pelo “Barcelona”? Se assim for, podemos dormir tranqüilos. O Estado não só vigia como pune, mas, principalmente, aos negros, às putas, aos pobres, mesmo que o produto do crime se mostre reles e desde que estes agentes apodreçam nas prisões, pelo furto de um shampoo ou de algumas cebolas, enquanto aqueles acabam libertos, logo depois, coisas, aliás, admitidas como edificantes exemplos.

E a mídia? Ela tem correspondido sua função de informar e criticar? Criticar é tarefa fácil se, a partir do noticiário disponível – pois, se este não se reveste de fundamento científico e não se apresenta razoavelmente comprovado –, é suficiente para denegrir o indiciado, fazer estardalhaço e nada concluir, sempre sob o manto da “liberdade de imprensa”.

Contudo, não há como negar que investigações jornalísticas que acabaram na renúncia de Nixon ou, ante a repercussão, no impeachement de Collor, revestiram-se de ampla margem de segurança e certeza. Não assim, aquelas do “Toninho do PT”, ou de “Celso Daniel”, que sequer se sabe onde foram parar.

Releva mencionar, pela gravidade, que o noticiário sobre crime organizado ou providências legislativas votadas em outros países recebe acompanhamento pífio. Ninguém sabe o que aconteceu com a máfia italiana depois das mortes de Falcone e de Borselino, e as prisões de Totó Riina e Provenzano. Também não se noticiou sobre as providências para seu combate integrado; entretanto, já se sabe que a era Berlusconi perseguiu, com sua maioria legislativa, aos juízes (membros do Ministério Público) do pool antimáfia, arrancado-lhes o poder das detenções e a amplitude das investigações – sempre por pressão dos deputados e senadores, aliados aos grandes escritórios de advocacia, instrumentos evidentes dos criminosos de colarinho branco. Dessa forma, e sempre, na história da Humanidade, aquele que é rei tem, pelo menos, um olho e, desde que possa viajar ou importar livros, revistas e jornais, se souber ler em outra língua, se tiver acesso à internet ou às televisões estrangeiras, acaba por impor vantagem sobre a patuléia.

Impõe-se concluir que esta espécie de “perseguição”, espalhafatosa e quase sempre ineficiente, interessa à criminalidade organizada e a seus asseclas menos gabaritados e mais expostos, já que os “cabeças” continuarão sem ser identificados, a navegar em iates, desfrutando uma riqueza impossível de ser atingida pelo trabalho, rindo-se do Fisco, do Congresso, da Polícia, da Magistratura e acolitados pelo Estado.

Ao cabo, será que os anos de ditadura não puseram e mantêm outras classes sociais ou funções acima do bem e do mal? A perseguição integrada deve estar atenta a todos os graus e ramos da atividade de um Estado moribundo, sejam eles civis, militares e eclesiásticos. Nesta tragédia, há de indagar sobre a participação de sociedades e igrejas – ao se recordar a presença do Banco Ambrosiano, da Maçonaria e da Opus Dei, nas conjuras da máfia italiana dos anos 70/80.

O combate ao crime organizado, no mundo, sempre será trabalho para profissionais e não obra de amadores, ainda que bem-intencionados.