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Combate à violência contra a Mulher avança no Brasil

31 de março de 2012

Da Redação, por Giselle Souza

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O combate à violência contra a mulher avança ainda mais no Brasil. A última demonstração disso ocorreu em fevereiro último. Nesse mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Ministério Público pode apresentar denúncias contra os agressores independentemente do consentimento da vítima. Antes da determinação, bastava ela retirar a queixa para que o processo fosse arquivado.

A decisão foi por 10 votos. Os ministros da mais alta corte firmaram, na ocasião, o entendimento de que os suspeitos de cometer lesões corporais leves serão processados com base na Lei Maria da Penha, em ações penais públicas. Isso quer dizer que os processos de agressões contra a mulher não poderão mais ser julgados por juizados especiais.

A decisão decorre da apreciação de dois processos relativos à aplicação da Lei Maria da Penha. Na primeira ação, a União pedia o reconhecimento da constitucionalidade da norma, no que diz respeito à diferenciação das mulheres em relação aos homens. Por unanimidade, o STF manteve a legislação aplicável estritamente em defesa da mulher.

A segunda ação fora proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Para o órgão, condicionar a ação judicial à representação por parte da vítima fere o “princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o dever do Estado de coibir e prevenir a violência no âmbito das relações familiares”.

No julgamento, prevaleceu o voto do ministro Marco Aurélio. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, comemorou a decisão. De acordo com ele, as queixas contra os agressores são retiradas em 90% dos casos. Geralmente as mulheres desistem da ação quando são chamadas para comparecer à Justiça para a chamada “audiência de confirmação”, na qual expressam a vontade em processar o agressor – no caso o próprio marido, companheiro ou ex.

Para o PGR, “a interpretação que condiciona à representação o início da ação penal relativa a crime de lesões corporais leves praticado no ambiente doméstico, embora não incida em discriminação direta, acaba por gerar, para as mulheres vítimas desse tipo de violência, efeitos desproporcionalmente nocivos”.

De acordo com ele, o Estado deve agir na proteção de bens jurídicos de índole constitucional.

Julgamento

O julgamento foi acalorado. Primeira a proferir o voto após o voto do relator, a ministra Rosa Weber afirmou que exigir da mulher agredida uma representação para a abertura da ação atenta contra a própria dignidade da pessoa humana. “Tal condicionamento implicaria privar a vítima de proteção satisfatória à sua saúde e segurança”, afirmou.

Opinião semelhante teve o ministro Dias Toffoli. Ele ressaltou que o Estado é “partícipe” da promoção da dignidade da pessoa humana – independentemente de sexo, raça e opções, conforme prevê a Constituição Federal. “O Estado deve assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, afirmou.

O ministro Joaquim Barbosa também afirmou que a Constituição Federal estabelece meios para garantir os direitos de quem se encontra em situação de vulnerabilidade. Na avaliação dele, quando o legislador, em benefício desses grupos, edita uma lei que acaba se revelando ineficiente, é dever do STF rever as políticas no sentido da proteção.

Já o ministro Ricardo Lewandowski destacou, do avanço para o combate à violência doméstica, a possibilidade de o Ministério Público promover a ação penal independentemente de a vítima prestar queixa. “Penso que estamos diante de um fenômeno psicológico e jurídico, que os juristas denominam de vício da vontade, e que é conhecido e estudado desde os antigos romanos. As mulheres – como está demonstrado estatisticamente – não representam criminalmente contra o companheiro ou marido em razão da permanente coação moral e física que sofrem e que inibe a sua livre manifestação da vontade”, disse.

Também favorável à tese defendida pela PGR, o ministro Luiz Fux defendeu não ser razoável exigir-se da mulher que apresente queixa contra o companheiro num momento de total fragilidade emocional, em razão da violência que sofreu. “Exigir a necessidade da representação, no meu modo de ver, revela-se um obstáculo à efetivação desse direito fundamental, porquanto a proteção resta incompleta e deficiente, mercê de revelar subjacentemente uma violência simbólica e uma afronta a essa cláusula pétrea”, disse.

Na avaliação do ministro Ayres Britto, a decisão é importante para a concretização da Justiça. De acordo com ele, em um contexto patriarcal e machista, a mulher agredida tende a condescender com o agressor. “A proposta do relator, no sentido de afastar a obrigatoriedade da representação da agredida como condição de propositura da ação penal pública, me parece rimar com a Constituição”, disse.

Para a ministra Cármen Lúcia, a decisão evidencia a mudança de mentalidade pela qual passa a sociedade no que se refere aos direitos das mulheres. Na opinião dela, é dever do Estado adentrar ao recinto das “quatro paredes”, quando na relação conjugal que se desenrola ali houver violência.

“A interpretação que agora se oferece para conformar a norma à Constituição me parece basear-se exatamente na proteção maior à mulher e na possibilidade, portanto, de se dar cobro à efetividade da obrigação do Estado de coibir qualquer violência doméstica. E isso que hoje se fala, com certo eufemismo e com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, não é bem assim. Na verdade, as mulheres não são vulneráveis, mas sim maltratadas, são mulheres sofridas”, defendeu.

O ministro Celso de Mello esclareceu que o STF decidiu de acordo com o que estabelece a Constituição. “Sob esse aspecto, o ministro-relator deixou claramente estabelecido o significado da exclusão dos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher do âmbito normativo da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais, com todas as consequências, não apenas no plano processual, mas também no plano material”, comentou.

Outro a votar com a maioria foi o ministro Gilmar Mendes, mesmo confessando ter dificuldade em saber se a melhor forma de proteger a mulher é a ação penal pública condicionada à representação da agredida ou a ação incondicionada. Ele explicou que em muitos casos a ação penal incondicionada poderá ser um elemento de tensão e desagregação familiar. “Como estamos aqui fixando uma interpretação que, eventualmente, declarando a norma constitucional, poderemos rever, diante, inclusive, de fatos, vou acompanhar o relator”, concluiu.

Divergência

O presidente do STF, ministro Cezar Peluso, foi o único a divergir. Ao votar, ele alertou para os riscos que a decisão poderá causar na sociedade. De acordo com ele, não é apenas a doutrina jurídica que se encontra dividida quanto ao alcance da Lei Maria da Penha. E disse que, se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei, houve motivos justificados para isso.

“Não posso supor que o legislador tenha sido leviano ao estabelecer o caráter condicionado da ação penal. Ele deve ter levado em consideração, com certeza, elementos trazidos por pessoas da área da sociologia e das relações humanas, inclusive por meio de audiências públicas, que apresentaram dados capazes de justificar essa concepção da ação penal”, defendeu.

Peluso também questionou a interpretação majoritária de que os casos de violência doméstica não devem mais ser submetidos aos juizados especiais. “Sabemos que a celeridade é um dos ingredientes importantes no combate à violência, isto é, quanto mais rápida for a decisão da causa, maior será sua eficácia. Além disso, a oralidade ínsita aos Juizados Especiais é outro fator importantíssimo porque essa violência se manifesta no seio da entidade familiar”, disse.