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Contornos da atuação da ANP

23 de outubro de 2012

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No estudo do Direito do Petróleo, é importante considerar algumas nuances da atuação da Agência Nacional do Petróleo – ANP, na atividade reguladora do mercado de midstream (refino e transporte) e downstream (revenda e distribuição), com foco na sua interação com o licenciamento ambiental, e a necessidade de que os atos regulatórios observem o Princípio da Legalidade.

Em outras palavras, é importante delinear qual o limite ocupado pelo poder regulador no licenciamento ambiental e qual o limite desta discricionariedade.

O fenômeno relativamente recente da criação da ANP, com funções normativas, fundamenta-se numa aparente delegação de poder operada pela Constituição Federal de 1988, através da atividade regulatória, a qual vem associada a uma modernização do aparelhamento estatal, com extinção de restrições ao capital estrangeiro, flexibilização de monopólios estatais e desestatização, com prestígio para as privatizações e concessões. Pode-se dizer que a desestatização por intermédio da regulação teve início com a edição da EC 08/95, que alterou o art. 21, XI da Constituição, e possibilitou alterações no setor de telecomunicações, um dos setores mais estratégicos da economia, seguido pela instituição do marco regulatório do petróleo por intermédio da EC 09/95, que alterou o art. 177 da Constituição da República. No entanto, deve-se destacar que, a delegação de poderes prevista na Carta Magna ainda é interpretada de maneira rígida pela doutrina administrativa a ponto de ainda ser irrestritamente aplicada a afirmação de que o exercício de função de um Poder por outro fere o princípio da separação de poderes.

O princípio da legalidade, expressamente previsto no art. 37 da Constituição Federal, preconiza que a administração pública é uma atividade que se desenvolve debaixo da lei, na forma da lei, nos limites da lei e para atingir fins assinalados pela lei. Entende-se por lei tanto uma específica modalidade de ato normativo quanto o sistema jurídico como um todo, compreendendo a Constituição Federal.

Esse princípio é deveras relevante no caso de atos praticados no curso ou na decisão proferida em um procedimento administrativo por autoridade investida de competência discricionária, o qual deve ser praticado dentro de certos limites legais e constitucionais. O princípio da legalidade embasa o Estado Democrático de Direito e direciona a atuação da Administração Pública, que deve respeitar também o devido processo legal. No âmbito do licenciamento ambiental, esse princípio é salutar para que seja assegurada a segurança jurídica dos administrados. Nos dizeres de Fulvia Helena Gioia Paoli, a segurança jurídica ocorre quando há uma confiabilidade dos cidadãos de que os postulados básicos do ordenamento serão cumpridos, de certeza, revelada pelo conhecimento prévio das normas jurídicas, dos meios pelos quais são produzidas e dos recursos que garantam seu cumprimento e da não-arbitrariedade, assegurada pela proteção dos direitos, eventualmente violados, por meio de órgão independente e preexistente, cuja atuação se faça por regras estabelecidas a priori.

A pergunta a ser respondida é: Quais os limites de atuação da ANP, uma vez que a extrapolação da autonomia da atuação da Agência Reguladora pode fragilizar a segurança jurídica dos administrados no licenciamento ambiental?

As agências reguladoras encontram-se assentadas em três pilares fundamentais – a função reguladora, a independência e o princípio da participação. Com relação à função reguladora da ANP, diante da expressa previsão trazida pelos arts. 177, §2o, III e 238 da CRFB, e pela consequente Lei no 9.478/97, esta consiste num misto das três funções clássicas do Estado, administrativa, legislativa e judicial, mas com especial destaque no papel de agentes legiferantes e judicantes.

Boa parte da doutrina aceita o argumento que o processo de deslegalização iniciado no Estado Brasileiro com a edição da EC 08/95 e 09/95 é justificativa plausível para a atuação normativa do agente regulador.  Segundo esse entendimento, o legislador, ao aprovar a lei de criação de cada agência reguladora, mesmo sem sequer penetrar na matéria a ser tratada, abre um espaço normativo para que esses agentes possam normatizar para o setor regulado com autonomia e discricionariedade técnica, e por intermédio de atos próprios que não serão de responsabilidade do Poder Legislativo, ainda que sobre elas possa e deva continuar a ser exercido um controle político sobre eventuais exorbitâncias que venham a ocorrem em razão da frontal oposição do ato normativo editado com relação à lei instituidora da agência reguladora. Esta função normativa pode ser genérica (no caso da edição de portarias e resoluções) ou específica (no caso de autorizações para um agente operar no mercado como distribuidora de combustíveis).

Assim, a ANP, no exercício de seu poder-dever deve observar os limites e prerrogativas do exercício da atividade regulada, dentro dos critérios que atendam aos interesses públicos primários do Abastecimento Nacional de Combustíveis.

Por exemplo, na indicação dos limites da atuação do empreendedor quanto à capacidade de processamento de Unidades de Refino, o poder regulatório atribuído à ANP não pode depender de ato praticado por outro órgão, como a concessão de licença ambiental, como pressuposto de validade da autorização regulatória para operação. Admitir-se o contrário, seria vincular, ou subjugar, a atuação regulatória ao poder de polícia ambiental para indicar-lhe os limites de ação válida, o que não parece adequado segundo os contornos constitucionais e legais da função regulatória independente, notadamente caracterizada pela sua autonomia e especialização.

No caso citado, a função regulatória difere do poder de polícia em razão da finalidade do ato administrativo, na medida em que, enquanto o primeiro constitui a permissão operacional e os limites da capacidade produtiva de um empreendimento com vistas à garantia do abastecimento nacional de combustíveis, tudo isso pautado pelos estudos técnicos de oferta e demanda do mercado de combustíveis, o segundo estabelece e fiscaliza as condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser obedecidas pelo empreendedor, para localizar, instalar, ampliar e operar empreendimentos ou atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente polui­doras ou aquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental.

Observa-se que, através da licença ambiental alcançada com o procedimento de licenciamento ambiental, o órgão ambiental competente estabelecerá as condições, restrições, exigências e medidas de controle ambiental, as quais deverão ser obedecidas pelo interessado nas diversas fases de implantação e funcionamento do empreendimento de midstream e downstream. O estabelecimento desses limites dá-se através do exercício do poder de polícia administrativa do Estado, mediante a atuação do órgão ambiental competente, nos termos definidos pela Lei Complementar no 140/2011.

Por outro lado, partindo-se do pressuposto da independência de atuação das agências regulatórias temos que, em princípio, a ANP não poderia editar atos normativos descolados da sua especialidade técnica ou que preveja que o ato final adjudicante do direito postulado dependa da manifestação de outro órgão ou Poder Público, como pressuposto de sua validade.

Mantendo-se o exemplo relativo à autorização regulatória para operação de unidade de refino, temos que o art. 14, IV, da Resolução ANP no 16/2010 definiu a regra segundo a qual o refinador de petróleo autorizado se encontra obrigado a enviar à ANP, até o vencimento da Licença Ambiental de Operação vigente, a cópia autenticada do protocolo de pedido de renovação de Licença de Operação – LO ou cópia autenticada da própria LO renovada.

Segundo a limitação trazida pelo artigo 8o da Lei 9.478/97, o qual define que a ANP terá como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, desde que em bases econômicas sustentáveis, a interpretação do art. 14, IV, da Resolução ANP no 16/2010 conforme a escolha do constituinte derivado que, ao editar a EC 09/95 previu a autonomia do agente regulador na redação do art. 177 §2o, III, da CRFB, afasta a possibilidade de se vincular a validade da Autorização de Operação expedida pela ANP ao refinador de petróleo à apresentação do ato autorizativo concedido pelo órgão ambiental compentente, por frontal violação ao pilar basilar do modelo regulatório adotado pelo Estado Brasileiro.

Ainda que se alegue que a manutenção da qualidade ambiental seja inerente à atividade regulatória a partir da aplicação do art. 8o, IX, da Lei 9.478/97 que define caber à ANP fazer cumprir as boas práticas de conservação e uso racional do petróleo, gás natural, seus derivados e biocombustíveis e de preservação do meio ambiente, tal previsão não implica, naturalmente, o exercício de poder de polícia ambiental por parte da ANP, ou ainda, na previsão de um controle secundário da atividade fiscalizatória dos órgãos ambientais pela agência reguladora, mas representa, de fato, a possibilidade de atuação da ANP na função de fomento e planejamento voltada à eficiência energética, nos moldes previstos no art. 174 da CF/88, enquanto agente estatal normativo e regulador da atividade econômica específica.

Isto porque, no que se relaciona com o exercício do poder-dever de fiscalização ambiental, tanto o art. 6o da Lei no 6.938/91, como os artigos 3o e 5o, caput, da Lei Complementar no 140/2011, já definiram que a responsabilidade de execução das políticas e diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente e para o controle e fiscalização de atividades capazes de provocar alteração na qualidade ambiental foi atribuída aos órgãos ambientais da esfera federal, estadual e municipal, e das quais não houve qualquer delegação às agências regulatórias.

E qual a interpretação factível para o fato da Res. ANP 16/2010, em seu art. 14, IV, ter previsto a necessidade de apresentação de Licença Ambiental de Operação, ou documento comprobatório de que a renovação da mesma foi requerida?

Como já frisamos, a ANP tem como finalidade a promoção da regulação, contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, com ênfase na garantia do abastecimento nacional de combustíveis. Diante desse prisma limitador legal, a apresentação de Licença Ambiental de Operação no âmbito de atuação da ANP tem como fundamento único a mensuração de eventual risco de interdição da operação da Unidade de Refino, decorrente da inexistência de ato do órgão ambiental competente ou situação jurídica que permita a autorização da operação, poderá vir a ameaçar o abastecimento de combustível.

Note que falamos em ato autorizativo ou situação jurídica, pois, não necessariamente, será a Licença Ambiental de Operação, cuja apresentação à Agência Reguladora é prevista no art. 14, IV, da Resolução ANP no 16/2010, que garantirá a operação de um empreendimento. Nos termos da legislação ambiental em vigor, esta poderá ser garantida pela licença ambiental expedida, como também pela assinatura de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta celebrado com órgão ambiental e/ou Ministério Público, ou pela existência de licenças de operação precárias para fins de teste de confiabilidade e dos sistemas de controle ambiental, conforme previsto em algumas legislações estaduais, como é o caso do Estado de São Paulo.

Nessa mesma seara, ainda que exista eventual silêncio do órgão ambiental sobre emissão de licença, este não poderá ser interpretado pela ANP como negativa por parte do órgão ambiental, visto que em momento algum a legislação ambiental disciplina o silêncio ou a demora do órgão ambiental, na análise de um processo de licenciamento de empreendimento submetido à conformação com as restrições de ordem ambiental, como negativa ao pedido de licença formulado. Pelo contrário, o parágrafo quarto do artigo 14, da Lei Complementar no 140/2011, prevê que a renovação das licenças ambientais deve ser requerida com antecedência mínima de cento e vinte dias da expiração do prazo de validade, fixado na licença, ficando este automaticamente prorrogado até a manifestação definitiva do órgão ambiental competente.

Nesse cenário, é forçoso concluir que a vinculação da validade da Autorização de Operação expedida pela ANP ao refinador de petróleo à apresentação do ato autorizativo concedido pelo órgão ambiental competente, merece ser afastada pontualmente, por frontal violação ao pilar basilar do modelo regulatório adotado pelo Estado Brasileiro e aos ditames da legislação ambiental. Nada impede, contudo, que as informações extraídas do processo de licenciamento ambiental, cujo ato final é licença regularmente expedida, sejam considerados pela ANP como fatores de risco a serem levados em consideração no atingimento de seu fim institucional e com observância da garantia do abastecimento nacional de combustíveis.