Defensoria Pública ressignificada

10 de maio de 2020

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A direção do processo de evolução institucional antes e após a pandemia

Mais do que as outras instituições do sistema de justiça, a Defensoria Pública, sua caçula, vive um processo de ressignificação desde a sua criação em 1988 que se intensificará no cenário pandêmico.

Pensada inicialmente como voltada à atuação supletiva aos advogados para pessoas sem condições financeiras para custeá-los, veio se desenvolvendo no tempo como poderoso instrumento de efetivo acesso à Justiça – algo bem mais amplo do que o mero acesso ao Poder Judiciário, seu objetivo inicial – por meio de formas criativas e inovadoras de garantir direitos.

O amadurecimento institucional tem ocorrido justamente na direção de novas práticas com foco estratégico na atuação extrajudicial – aí incluída a incidência junto aos Poderes Legislativo e Executivo.

A Instituição que atuava exclusivamente em processos judiciais individuais, passou a ajuizar ações coletivas – instruídas com elementos de convicção coletados internamente – e por serem também estas inefetivas como resposta a várias situações complexas, percebeu a necessidade de atuações inovadoras ainda mais sofisticadas e dinamicamente concebidas. Dos acordos extrajudiciais individuais, passou a causar impactos concretos na elaboração e execução de políticas públicas.

O que sempre veio e vem antes na Defensoria Pública é a demanda do “sujeito da injustiça social”: suas reais e concretas necessidades.

As atribuições constitucionais e legislativas sempre foram posteriores à consolidação de uma prática voltada de forma potente para a efetividade dos direitos dos destinatários dos serviços, fundada na peculiar razão de que aqui há atendimento direto à população – o “olho no olho” solidariza, exige, cobra, e preenche com criatividade os vácuos legislativos.

Durante seus anos de existência, a Defensoria Pública se firmou como a “Instituição da Confiança” do povo brasileiro, reiteradas vezes mais bem avaliada pela sociedade dentre os integrantes do sistema de Justiça – para 92% da população, em pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em 2017, aprovação que se confirmou em pesquisa da Fundação Getúlio Vargas de 2019 .

Foi assim e por seu público, que o desenho constitucional inicial, de cláusulas abertas e contornos indefinidos, se transformou na forte descrição trazida pela Emenda Constitucional 80/2014 em inédita Seção exclusiva:

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

Quando da aprovação da Emenda 80/2014 – em árduo processo legislativo capitaneado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) – a Defensoria Pública era a responsável pelo atendimento de 82% da população brasileira segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo que 72% das Comarcas não contavam com a sua presença. Já em 2015, o percentual de potenciais usuários saltou para 88%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD/IBGE).

Com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) divulgada em outubro de 2018 pelo IBGE, 23,9% das famílias brasileiras recebiam até R$ 1.908 (dois salários-mínimos) e mais outros 23,8% viviam com ainda menos do que isso por mês.

A PNAD de 2019 aponta que quase 104 milhões de brasileiros vivem com apenas R$ 413 mensais, considerando-se a totalidade de suas fontes de renda. Mais: em todo País, 10,4 milhões de pessoas (5% da população) sobrevivem com R$ 51 mensais em média.

Os impactantes números baseiam apenas a atuação da Defensoria fundada no critério da hipossuficiência financeira (renda mensal de até três salários-mínimos), que não é exclusivo nem o mais importante, já que prepondera a existência de situação de vulnerabilidade.

Mas o cenário se agrava com a pandemia. Relatório publicado em 14/4/2020 pelo Banco Mundial prevê que ela levará o mundo a recessão ainda mais impactante do que a Grande Depressão de 1929. Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontam para o que denominam de “Grande Paralisação”, com projeção de encolhimento dramático do crescimento global. O Banco Mundial projeta uma queda brusca de mais de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro – que, em cenários comparativos, pode superar os 7%. o FMI prevê que “a queda do Brasil será, inclusive, maior que a do restante da América Latina e Caribe, e a retomada do País também será em ritmo mais baixo na comparação regional”.

Se no cenário de empobrecimento e vulnerabilização anterior, a Defensoria Pública vinha prestando mais de 15 milhões de atendimentos por ano, no atual e futuro (de crise global), os números se intensificarão e as respostas institucionalizadas já não serão suficientes ou eficazes – porque o mundo já não é mais o mesmo.

Se foi sempre a peculiar situação de pobreza e vulnerabilidade enfrentada pela imensa maioria da população brasileira que exigiu o desenvolvimento da Defensoria Pública por rumos surpreendentes, com ainda mais força agora, em decorrência da pandemia mundial causada pelo novo coronavírus. Os novos tempos demandarão ágeis novos contornos para responder eficazmente aos seus labirintos. Não há “espelhamento” possível (ah, Borges…).

Nesse novo contexto, a Defensoria Pública tem-se mantido como indispensável à prevenção de violações de direitos aos usuários dos seus serviços, na maior parte das vezes sem acessar o Poder Judiciário: por meio de recomendações, sugestões e até de articulação de novas leis estaduais­ – como a aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), que impede a  suspensão de fornecimento de serviços básicos como água e luz.

Houve o fortalecimento nacional das equipes que atuam na área da garantia ao direito à saúde, para fazer frente ao imenso e inaugural público vítima do novo vírus ou impactado transversalmente pela ainda maior lotação dos hospitais, e o ingresso de demandas coletivas para adoção de providências emergenciais – como manutenção das medidas de distanciamento social, desbloqueio de leitos, etc. – bem como das que atuam em defesa das mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas em situação de rua.

Novas teses fundantes de atuações processuais institucionais diferenciadas, como o custos vulnerabilis, tomarão corpo porque cada vez mais se fará necessário ouvir a Defensoria Pública acerca das necessidades e direitos de seu público-alvo, mesmo quando há advogados constituídos – em uma atuação colaborativa que robustece a defesa em todos os graus.

Por fim, o papel associativo ganhará ainda mais corpo e deverá haver a intensificação da sua atuação legislativa – que já vem sendo realizada com grande sucesso ao operar como efetiva garantidora de direitos quando articula a criação, alteração ou revogação de leis federais, estaduais ou municipais que impactam na vida dos assistidos.

Este é o início de uma nova revolução no perfil Institucional da Defensoria Pública, talvez o mais claro e delimitado no tempo e sobretudo, quem sabe o mais relevante.

A forma de reinvenção institucional a ser desenvolvida pela Defensoria nesse período de crise, como visto, tem a potência de definir não só o grau de violação aos direitos dos usuários dos serviços – conforme possa ser mais ou menos eficiente – mas, quem sabe, seu próprio futuro como expressão e instrumento do regime democrático, a quem incumbe a defesa dos Direitos Humanos (art. 134 da Constituição Federal).

NOTAS____________________________________

1 Idem.

2 Que também a apontou como a Instituição considerada mais relevante pela sociedade na proteção de crianças e adolescentes (38,2%). Disponível em https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=35307

3 Em https://anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=42768

4 Em https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=35274

5 Em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/grande-paralisacao-levara-economia-global-a-pior-recessao-desde-29-diz-fmi.shtml

6 Em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-04/defensoria-alerta-para-colapso-no-sistema-de-saude-do-rio.

7 Tese desenvolvida pelo colega amazonense Maurílio Casas Maia que defende a atuação da Defensoria Pública, Estado Defensor, como protetora dos interesses das pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade e seu instrumento de voz, mesmo quando há advogados constituídos, em decorrência de suas funções constitucionais e legais. Ela vem sendo reconhecida pelos Tribunais estaduais e federais e, recentemente, pelos Tribunais Superiores (STF e STJ).

8 Enunciados produzidos em Colóquio realizado no Amazonas entre a Defensoria Pública estadual e a Advocacia local em dez/ 2019. Em:  https://www.conjur.com.br/2020-jan-05/leia-enunciados-aprovados-custos-vulnerabilis-am