Duro golpe na burocracia judiciária

5 de outubro de 2004

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A ousadia do Ministro Edson Vidigal, que está chegando aos seis meses na presidência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) possibilitou a quebra de parte da burocracia administrativa da Corte. A mudança do horário de funcionamento, o novo sistema de distribuição dos processos, o serviço “Fale com o presidente” e a criação da ouvidoria foram projetos implantados na luta contra o inimigo comum do Judiciário: a morosidade. “Há uma burocracia muito conservadora e mentes que pensam devagar”, ressalta. Vidigal demonstra preocupação com os inúmeros recursos previstos em lei e, principalmente, com os privilégios da União em ter tratamento diferenciado no trâmite processual, como prazo em dobro para recorrer de decisões, e afirma: “Isso é um  abuso”. “O Presidente (Luiz Inácio Lula da Silva) poderia determinar ao Ministro da Justiça que encaminhasse ao Congresso uma lei acabando com isso”.

JC – Que balanço o senhor faz dos seis primeiros meses de gestão à frente do Superior Tribunal de Justiça (STJ)?

Edson Vidigal – O balanço é positivo. Penso que poderia ter feito mais. Mas não podemos perder de vista que o presidencialismo no Judiciário é híbrido; é, também, parlamentarista. Reporto-me a um Conselho de Administração, à Corte Especial e, ao final, ao Pleno, que é a reunião da totalidade dos ministros. Há uma burocracia muito conservadora e mentes que pensam devagar. Então, eu tenho que sair na frente, ousando, buscando fazer coisas ad-referendum (o presidente da República tem a medida provisória, eu tenho o ad referendum). Nesses poucos meses, instituímos novo horário no Tribunal, que está aberto ao público, das 7h às 19h, sem interrupção. Com isso, não vou precisar construir outro prédio para abrigar os servidores de novos concursos que terão que ser feitos. Instituímos três horários para a distribuição dos processos, o que agradou bastante aos advogados, criando um fluxo mais lógico para a chegada dos processos aos gabinetes dos ministros; criamos a Ouvidoria-Geral, por meio da qual qualquer pessoa do povo diz o que pensa, sugere, critica, e nos valemos dessas sugestões e críticas para melhorar nosso desempenho. Criamos o serviço “Fale com o Presidente”, que foi uma maneira de reduzir os quilowatts das antenas da “rádio corredor” (a fuxicada, o disse-me-disse), abrindo-se canal direto entre o servidor e a administração e, a exemplo do serviço “Cartas ao Presidente” (coluna que circula no site nos fins de semana), eu mesmo abro os e-mails e os respondo.

Quais são os próximos projetos a serem implementados?

Estamos avançando na tecnologia, disponibilizando os acórdãos na Internet, e isso já é um ensaio para o futuro “Diário da Justiça online”, que vai agilizar os procedimentos, porque os prazos para recurso passarão a ter veiculação na Internet (quase em tempo real), e não mais na publicação na imprensa oficial, o que demora, às vezes, mais de um mês. A par disso, estudamos ainda disponibilizar na Internet a transmissão das sessões ao vivo. Queremos também que os computadores de todos os tribunais falem a mesma linguagem; é difícil, custa muito dinheiro, mas é preciso começar. No lema “agilidade e transparência”, estamos aproximando o STJ da sociedade, que agora começa a compreender melhor as dificuldades do Poder Judiciário e para que servem os juízes e os tribunais. Temos feito muitas coisas, implantado muitas novidades no quesito recursos humanos, enfim, estamos juntos, administração e servidores, preparando-nos para a modernidade e, assim, enfrentarmos o nosso inimigo comum que se chama morosidade judicial. Queremos instalar a Escola Nacional da Magistratura assim que for promulgada pelo Congresso a emenda nesse sentido. Essa escola trabalhará pensando numa nova mentalidade para o Judiciário, novas formas de recrutamento e de inserção dos juízes no sistema, atualizando-os de acordo com as tendências e mudanças da sociedade.

Como o senhor vê a necessidade de integração online dos tribunais? Será que o fim do papel será motivo de resistência entre os magistrados? Como conciliar a necessidade da implementação tecnológica com a resistência cultural dos magistrados?

Há dificuldades, sim. Há uma babel. Alguns tribunais já elegeram seus sistemas, fizeram despesas, é preciso reunir tudo outra vez. Mas vamos com calma e conversando. Vamos convencer algumas pessoas que ainda não entenderam bem o espírito da coisa. Criar um sistema integrado não será tarefa fácil e de curto prazo. Cada tribunal tem a sua ilha e por isso acredito que o Conselho Nacional de Justiça, previsto na reforma do Judiciário, servirá como setor responsável pela administração dos tribunais, assegurando a governabilidade. Se for decidido mudar, todos terão que mudar. Qualquer mudança gera problema, mas isso precisará ser enfrentado mais cedo ou mais tarde.

Durante estes primeiros meses, o que o senhor identificou como sendo um dos principais entraves da Justiça brasileira? Quais as ações que o senhor propõe para reverter esse quadro?

A morosidade judicial é o inimigo comum. É ela que enseja o escândalo do “ganha, mas não leva”. Estamos atacando a morosidade em várias frentes.

Como foi feita a articulação para que os recursos destinados à criação das Varas fossem antecipados, uma vez que há carência de verbas e outras prioridades para o Governo?

Por meio de muita conversa. Tivemos reuniões com a equipe econômica, com todos os agentes interessados na questão. Nosso discurso foi o de mostrar que o dinheiro empregado resultaria em investimento. Estão sendo destinados pouco mais de R$ 165 milhões para a instalação dessas varas. Agora, sabe qual é o montante que o Governo tem para receber? Algo próximo de R$ 200 bilhões a título de execução fiscal. Esses números serviram para ilustrar que a instalação das varas é investimento e não gasto. E o Governo concordou.

A morosidade da Justiça se deve, por um lado, aos inúmeros recursos existentes nas leis processuais. Em se tratando dos “privilégios” da União como parte, o assunto é mais grave, devido ao prazo em dobro. O que poderia ser feito?

Tem razão, os entes públicos, além de serem os maiores demandantes, ainda detêm privilégios sobre os entes privados, como na questão dos prazos em dobro e da obrigação de recorrer a qualquer custo, mesmo que não tenham argumento. Isso é uma excrescência, um abuso. O presidente Lula poderia determinar ao ministro da Justiça que encaminhe ao Congresso uma lei acabando com isso.

A lentidão é vista também na própria aprovação da reforma do Judiciário. Discute-se apenas o controle externo da magistratura. E quanto aos demais aspectos?

Penso que estamos num momento no qual poderemos ver aprovados alguns aspectos dessa reforma. O Conselho Nacional de Justiça e a Escola Nacional da Magistratura serão aprovados. Depois, haverá uma comissão mista para, no prazo de 180 dias, levantar as questões processuais. Com isso, será feito o mapeamento daquilo que se pode fazer para dar mais agilidade ao Judiciário. Estamos aguardando a desobstrução da pauta do Senado para que a reforma do Judiciário seja apreciada.

Que análise que o senhor faz da greve dos servidores?

As lições da greve não podem cair no esquecimento. A primeira é a de que a administração judiciária tem que se manter em sintonia com os servidores, saber das suas condições de trabalho, suas aspirações, manter um diálogo em bom nível, ampliar os espaços de transparência para que todos entendam que nada é tão fácil quanto se imagina e correr na frente, unindo-se aos servidores em busca da realização dos seus anseios, reivindicações, dentro do razoável, do possível. Outra lição é a de que não devemos perder a humildade. Afinal, servidores e juízes servem a um mesmo patrão, ao povo brasileiro.

A violência é uma das maiores preocupações dos governantes. Paralelamente, discute-se a revisão da lei sobre crimes hediondos. O que o senhor acha?

Nesta questão sempre fui voto vencido. Considero que a lei atual é inconstitucional quando impõe o regime fechado, pois atenta contra os direitos humanos. Além disso, contraria a doutrina do sistema prisional, que foi imaginada no sentido de reabilitar o detendo e não de o tratar como animal. Defendo o princípio da igualdade e a necessidade de termos penitenciárias distintas. Os criminosos de alta periculosidade, entendo que devem ser mantidos em ilhas oceânicas, longe dos grandes certos urbanos. Assim, poderão transitar pelo presídio a céu aberto. Esta idéia contraria posições no Governo mas, por outro lado, tem aceitação da sociedade. Eu prefiro ficar com o posicionamento da sociedade.

O que deveria ser feito hoje?

Investir em penas alternativas nos casos em que as condenações não sejam superiores a quatro anos de prisão. Mas é preciso ter um sistema que possibilite ao juiz controlar se determinada pena está sendo cumprida. Os que têm feito encontram dificuldades. Não tenho dúvidas de que há falta de magistrados. Entretanto, é fácil falar que o problema se deve à falta de verbas. A meu ver, o que acontece é que as verbas não têm sido bem aplicadas pelas administrações dos tribunais. Entendo ainda que investir em penas alternativas deve ser encarado como prioridade e com seriedade. Assim poderemos seguir o exemplo de países como a Inglaterra, que serve como vitrine de uma experiência bem sucedida.

O julgamento da taxação dos inativos deu brechas para que cláusulas pétreas da Constituição Federal viessem a ser questionadas, principalmente no aspecto relativo ao direito adquirido. O senhor acha que a Constituição Federal deve ser repensada? Em quais aspectos?

Isso foi lá com o Supremo Tribunal Federal (STF). Não posso me envolver nisso. Como disse o meu amigo ministro Jobim, há pouco, a propósito da greve no Judiciário paulista, “cada macaco no seu galho”.