Filhos e afetos: A liberdade de escolha e a liberdade sexual

3 de agosto de 2022

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I. Introdução

A liberdade individual assegura a todas as pessoas autonomia para fazer suas escolhas existenciais básicas, sem imposições externas ilegítimas. A sexualidade integra a natureza do ser humano e, portanto, o direito à autodeterminação exige que o indivíduo tenha plena liberdade para exercê-la de acordo com suas próprias concepções de bem. Aqui, estão em questão, por exemplo, os direitos sexuais e reprodutivos, bem como a liberdade quanto à orientação sexual e identidade de gênero.

No tocante aos direitos sexuais e reprodutivos, as mulheres têm lutado pela liberdade e autonomia no exercício e na determinação de sua sexualidade e na possibilidade de controle do próprio corpo. A pauta de reivindicações sobre o tema tem incluído demandas relativas ao planejamento familiar, à saúde materna e neonatal e ao aborto.

Em relação à orientação sexual e à identidade de gênero, a liberdade sexual apresenta duas dimensões principais. A primeira relativa a uma demanda por reconhecimento, com a possibilidade de manifestar publicamente seus desejos, afetos e identidades, sem qualquer sorte de discriminação. A segunda diz respeito ao acesso ao mundo dos direitos, seja por meio da extensão de direitos já reconhecidos aos heterossexuais (e.g., uniões civis), seja pelo reconhecimento de novos direitos decorrentes da legitimação das diferenças (e.g., direito à mudança de nome no registro civil).

As anotações que se seguem procuram ilustrar a temática da liberdade sexual a partir de reflexões sobre a descriminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre e sobre os direitos da população LGBTQIA+, em especial o reconhecimento das uniões homoafetivas. Também faço alguns comentários sucintos sobre outras conquistas importantes, como a adoção por casais homoafetivos, a autorização para a pessoa transgênero alterar o prenome e o gênero constantes do registro civil e a criminalização da homofobia.

II. Interrupção da gestação: Por que a criminalização do aborto é uma política errada

“Se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado como crime há muito tempo”.

Uma das questões mais divisivas nas sociedades contemporâneas diz respeito ao tratamento jurídico do aborto, isto é, da interrupção voluntária da gestação por uma mulher. Trata-se, essencialmente, de definir se ele deve ser tratado como crime ou não. O tema mexe com convicções religiosas e filosóficas profundas e, não por acaso, costuma produzir posições extremas e apaixonadas.

Desde os anos 70 do século passado, essa é uma questão recorrentemente levada aos tribunais constitucionais e às cortes supremas. O movimento feminista se articulou e se organizou ao longo dos anos 1960, reivindicando liberdade sexual, igualdade de direitos e fim das discriminações sociais e legais em desfavor das mulheres. O direito de uma mulher interromper a gestação passou a ser uma das bandeiras do movimento. Duas decisões da década de 1970 – uma da Suprema Corte americana e outra da Corte Constitucional alemã – deram o tom do debate inicial na matéria.

Nos Estados Unidos, a decisão em Roe v. Wade, de 1973, assegurou o direito de interromper a gestação durante o primeiro trimestre, invocando a autonomia da mulher e razões de saúde pública. Considerou inconstitucionais, portanto, leis estaduais que criminalizavam o aborto nos três primeiros meses, quando o feto ainda não era viável sem o corpo da mãe. Na Alemanha, as coisas se passaram com sinal trocado: em decisão de 1975, a Corte considerou que a lei votada pelo Parlamento permitindo o aborto violava o dever do Estado de proteção da vida. Consequentemente, considerou inconstitucional a descriminalização.

Nos anos 1990, as duas Cortes reviram em maior ou menor medida suas posições, aproximando-as. Na Alemanha, em julgamento realizado em 1993, a Corte Constitucional reafirmou sua posição em favor da proteção da vida, mas entendeu que a criminalização não era necessária. E, assim, aceitou a sua substituição por aconselhamento profissional visando a dissuadir a mulher da interrupção da gestação na hipótese. Porém, assegurou à mulher a decisão final.

Nos Estados Unidos, por sua vez, ao julgar o caso Planned Parenthood v. Casey, em 1992, a Suprema Corte introduziu um novo conceito, o de “ônus indevido” (undue burden), como teste para aferir a legitimidade de leis estaduais restritivas do aborto. Considerou legitima, assim, a exigência de que, anteriormente à interrupção da gestação, a mulher se submetesse a aconselhamento no sentido de manter a gestação. Mas considerou ilegítima a previsão de que o parceiro da mulher fosse previamente notificado.

Ao longo dos anos, praticamente todos os países democráticos desenvolvidos descriminalizaram a interrupção da gestação no primeiro trimestre ou nas primeiras 12 semanas. Entre eles Austrália, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Dinamarca, França, Noruega, Reino Unido, Suíça e praticamente todos os demais países da Europa, inclusive os mais católicos, como Itália, Espanha e Portugal. Malta e a Santa Sé são exceções. Na China é igualmente permitido.

Por duas vezes a questão do aborto cruzou o meu caminho profissional. Em 2004, como advogado, propus uma ação perante o Supremo Tribunal Federal, em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Nessa ação, postulava-se o direito de uma mulher interromper a gestação após detectar, em exame próprio, que o feto era anencéfalo, isto é, por uma deficiência no fechamento do tubo neural, o seu cérebro não se formava. Tratava-se de anomalia que tornava o feto incompatível com a vida extrauterina. O diagnóstico é feito no terceiro mês e pedia-se o reconhecimento do direito da mulher de não levar a gestação a termo. Após muitas idas e vindas, o caso foi jugado em 2012, tendo sido acolhido o pedido.

Na segunda vez que o tema do aborto cruzou meu caminho profissional eu já era Ministro do Supremo. Tratava-se de um habeas corpus requerido em favor de médico e de enfermeira presos preventivamente pela prática de aborto consentido. Votei pela concessão de liberdade aos acusados, por entender incompatível com a Constituição a criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Fui acompanhado pela Ministra Rosa Weber e pelo Ministro Edson Fachin, e este ficou sendo o entendimento prevalecente na 1a Turma do STF.

Apresento a seguir minhas razões em defesa da descriminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre. Cabe enfatizar, logo no início, que ser a favor de não se tratar o aborto como crime não se confunde com a defesa da prática. É possível ser contra, pregar contra, não praticar e, ainda assim, não achar que quem pense e aja diferentemente deva ser condenado criminalmente e preso.

Premissas fáticas

Minha visão nessa matéria se assenta sobre três premissas. A primeira: o aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a defesa da disseminação do procedimento.

A segunda premissa é que a criminalização não diminui o número de abortos. É fato reconhecido amplamente que as taxas de aborto nos países onde esse procedimento é permitido são muito semelhantes àquelas encontradas nos países em que ele é ilegal. Estudo do Guttmacher Institute e da Organização Mundial da Saúde demonstra que a criminalização não produz impacto relevante sobre o número de abortos realizados. Na verdade, o que a criminalização de fato afeta é a quantidade de abortos seguros e, consequentemente, o número de mulheres que têm complicações de saúde ou que morrem devido à realização do procedimento. Não se trata, portanto, de uma questão de Direito Penal, mas de saúde pública.

Por fim, em terceiro lugar, a criminalização produz impacto grave e desproporcional sobre as mulheres pobres. Tratar a interrupção da gestação como crime, nas primeiras semanas de gravidez, afeta, sobretudo, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para receber orientação, medicação ou realizar o procedimento próprio. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a estabelecimentos clandestinos, sem infraestrutura ou assepsia, ou, pior ainda, se automedicam, utilizando meios precários e primitivos, com elevado risco de lesões, mutilações e óbito. Este é apenas mais um capítulo da perversidade e da indiferença com que o País trata a sua gente humilde.

Eu já vi – ninguém me contou – gente que faz o discurso pela criminalização, mas não hesitou em incentivar a filha a interromper a gestação indesejada.

Desrespeito a direitos fundamentais da mulher

Quando o Estado opta por mandar a polícia, o promotor ou o juiz obrigarem uma mulher a permanecer grávida do filho que ela não quer ter – não quer porque, geralmente, não pode – viola uma série de direitos constitucionais. O primeiro é a liberdade individual, que assegura a todas as pessoas autonomia para fazer suas escolhas existenciais básicas, como a de ter ou não um filho. Em segundo lugar, vem o direito à igualdade: já que homens não engravidam, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. Também os direitos sexuais e reprodutivos estão em questão: tal como os homens, mulheres também têm direito a uma vida sexual ativa e prazerosa, sem o ônus de suportar, frequentemente sozinha, os ônus de uma gravidez indesejada.

A questão dos direitos do feto e do nascituro

Resta, por fim, a delicada questão relativa à situação moral e jurídica do feto. A legislação brasileira protege os direitos do nascituro. Além disso, para muitos, existe vida desde a concepção. Para outros, um pequeno aglomerado de células em fase de multiplicação, sem sistema nervoso ou vestígio de consciência, não deve ser equiparado à vida. Não há solução correta para esse problema: ela sempre dependerá das convicções religiosas e filosóficas de cada um. Mas que existe uma vida potencial é inegável. E esta vida deve estar protegida quanto a qualquer intervenção de terceiros.

A pergunta intrincada aqui é: essa regra vale para a mãe, que terá que suportar todas as consequências físicas e psicológicas de uma gravidez, mais a responsabilidade pela criação da criança? Se afastarmos as respeitáveis convicções religiosas de cada um – que são legítimas, mas não podem prevalecer no espaço público – a resposta é negativa. Um dos pilares da ética moderna, concretado desde o Iluminismo, é o imperativo categórico de Kant, que em uma de suas formulações assenta: toda pessoa é um fim em si mesma, e não um meio para a realização de projetos alheios ou da sociedade.

Se adotarmos essa premissa ética, a resposta é relativamente simples: se o feto não tem como se desenvolver por conta própria – e enquanto assim for – se ele depende inteiramente do corpo da mãe, há de ser dela a decisão final. Do contrário, a mãe terá deixado de ser um fim em si mesma e passado a ser um meio para a realização de projeto alheio. Tal constatação não retira a possibilidade de se discutir o mérito da decisão da mulher. Mas, inequivocamente, estabelece que a decisão é dela.

A tradição judaico-cristã condena o aborto. Deve-se ter profundo respeito pelo sentimento religioso das pessoas. E, portanto, é plenamente legítimo ter posição contrária ao aborto, não o praticar e pregar contra a sua prática. Mas será que a regra de ouro, subjacente a ambas as tradições – tratar o próximo como desejaria ser tratado – é mais bem cumprida atirando ao cárcere a mulher que passe por esse drama? Pessoalmente, não creio. Portanto, sem abrir mão de qualquer convicção, é perfeitamente possível ser simultaneamente contra o aborto e contra a criminalização.

Em suma: numa sociedade aberta e democrática, alicerçada sobre a ideia de liberdade individual, não é incomum que ocorram desacordos morais razoáveis. Vale dizer: pessoas esclarecidas e bem-intencionadas têm posições diametralmente opostas. Nesses casos, o papel do Estado não é o de escolher um lado e excluir o outro, mas assegurar que cada um possa viver a sua própria convicção.

III. Direitos LGBTQIA+ e uniões homoafetivas: O que vale a vida são nossos afetos

“As pessoas têm o direito de ser iguais, quando a diferença as inferioriza. E de ser diferentes, quando a igualdade as descaracteriza”, Boaventura Souza Santos

Saindo do armário

Nas últimas décadas, superando séculos de discriminação e preconceito, milhões de pessoas em todo o mundo deixaram de ocultar a sua orientação sexual e, corajosamente, saíram do armário. Desafiando valores convencionais e tradições, parceiros do mesmo sexo assumiram publicamente suas relações homoafetivas, reescrevendo a história da sexualidade e da liberdade individual. O termo homoafetivo foi um achado, por ser bastante mais expressivo do que homossexual, na medida em que uma parceria afetiva é feita de muito mais do que sexo. O mundo, que já assistira à liberação das mulheres e às ações afirmativas para negros, celebrava a vitória de uma nova causa, a do amor gay. Tabus arcaicos começavam a ser derrotados pelo espírito do tempo.

A progressiva aceitação social dessa nova realidade passou a exigir respostas da legislação, mas simplesmente não havia regras jurídicas contemplando as uniões de pessoas do mesmo sexo. Tal lacuna dava lugar a muitas incertezas para os parceiros de tais relações, que não tinham clareza quanto aos seus direitos e obrigações. Algumas dúvidas que surgiam: a) Os parceiros homoafetivos tinham direito de herdar um do outro ou, por ocasião da morte, os seus bens revertiam integralmente para a família do falecido? b) Em caso de separação, como deveria ser partilhado o patrimônio adquirido durante a convivência comum? c) No caso de um casal gay, era possível incluir o parceiro como dependente no plano de saúde e na aposentadoria complementar da empresa?

Para responder a essas e muitas outras questões, era necessária uma legislação que disciplinasse o tema. Porém, como sucedeu em outras partes do mundo, o Poder Legislativo não conseguiu produzir consensos ou maioria consistente na matéria. E, consequentemente, não se aprovou lei alguma. Restou, assim, o Poder Judiciário como única alternativa para equacionar situações que se repetiam. Foi nesse contexto que, em fevereiro de 2008, militantes da causa, simpatizantes e procuradores da República articularam uma ação a ser proposta perante o Supremo Tribunal Federal e me procuraram para ser o advogado. Aceitei o encargo e, na ação apresentada, o pedido formulado foi no sentido de que as uniões homoafetivas recebessem o mesmo tratamento jurídico das uniões estáveis heterossexuais. De fato, após a Constituição de 1988, legislação específica passou a prever que um homem e uma mulher que vivessem conjugalmente, mesmo sem haverem se casado, constituíam uma união estável, com um regime jurídico próprio.

Quando a ação foi proposta, a perspectiva de êxito era improvável, à vista da cultura machista prevalecente à época e de um papel mais tímido tradicionalmente reservado ao Judiciário. Cabe registrar que o preconceito, tanto o ostensivo quanto o dissimulado, se ocultava por trás do argumento formal de que somente o Poder Legislativo poderia ter tal iniciativa. Como havia certeza de que o Congresso não aprovaria a união de pessoas do mesmo sexo, essa posição aparentemente neutra significava, na verdade, adesão à impossibilidade de legitimação jurídica das uniões homoafetivas. Muita gente que posava de progressista disfarçou o preconceito por trás desse biombo.                 

O reconhecimento das uniões homoafetivas

A ação veio a ser finalmente julgada em maio de 2011. Da tribuna do STF, à época como advogado, procurei demonstrar aos ministros que se estava diante de um momento histórico: o embate entre o avanço civilizatório e uma visão intolerante e antiga, que empurrava pessoas para a clandestinidade e para a incompletude. E enfatizei: o que vale a vida são os nossos afetos. Impedir uma pessoa de colocar o seu amor e a sua sexualidade onde mora o seu desejo é privá-la de uma dimensão essencial da sua existência. A afetividade é uma das energias mais poderosas universo. Por que interditar o direito de duas pessoas se amarem? Naquela ocasião, lembrei que o amor homossexual foi vítima de preconceitos, discriminações e perseguições desde o início dos tempos.

Rememorei três exemplos emblemáticos: a) em 1521, as Ordenações Manuelinas, o mais antigo Código Penal aplicado no Brasil, previa a pena de morte na fogueira, confisco de bens e a infâmia sobre os filhos e descendentes dos condenados por homossexualismo; b) em 1892, Lord Alfred Douglas, amante de Oscar Wilde, escreveu o poema “Dois amores”, que termina com a frase célebre “O amor que não ousa dizer seu nome”, no qual estava implícita a paixão homossexual de ambos. O poema foi utilizado no julgamento em que Wilde foi preso e condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados; c) na década de 1970, um soldado americano, que havia sido condecorado na guerra do Vietnam, foi expulso das Forças Armadas quando descobriram que ele era gay. Na ocasião, ele produziu uma frase antológica: “Por matar dois homens, recebi uma medalha. Por amar outro, fui expulso das Forças Armadas”.

A história da humanidade é a história da superação do preconceito, da progressiva inclusão social de todos. E, a cada tempo, as pessoas precisam escolher de que lado desejam estar. Ao concluir a sustentação oral naquele julgamento, falei do papel do Supremo Tribunal Federal na construção de um tempo de tolerância, fraternidade e delicadeza. Um tempo em que todo amor possa ousar dizer seu nome. E o Tribunal não faltou ao seu encontro com a história. E a história reconheceu a virtude daquela decisão, declarando-a patrimônio imaterial da humanidade. Tudo foi ajudado pela excepcional sensibilidade do relator, meu querido amigo Carlos Ayres Britto, a quem vim a suceder no Tribunal.

Os fundamentos de fato do pedido formulado na ação eram relativamente óbvios: a homossexualidade é um fato da vida; a existência de relações homoafetivas é uma decorrência natural desse fato; e não há como o ordenamento jurídico ignorar essa realidade e deixar de disciplinar a suas consequências. E, ao fazê-lo, deve aplicar os princípios constitucionais pertinentes, a saber: a) o da igualdade, pelo qual as pessoas não devem ser discriminadas sem um fundamento legítimo, sendo que a orientação sexual não é um deles; b) o da liberdade individual, em razão do qual as pessoas têm direito à autodeterminação e podem fazer as suas escolhas individuais sem imposições externas ilegítimas; e c) o da dignidade humana, que se assenta sobre a compreensão de que todas as pessoas são um fim em si mesmas, e não um meio para a realização de interesses alheios ou de metas coletivas.

Não é fora de propósito relembrar que as uniões estáveis heterossexuais também levaram séculos para serem adequadamente reconhecidas pelo Direito. A mulher não casada, que vivesse uma relação conjugal com um homem, era vista como algo próximo a uma prostituta e a ela não se atribuíam direitos. Aos poucos os tribunais foram reconhecendo direito de participação no patrimônio obtido com o esforço comum e à partilha dos bens, mas foi só com a Constituição de 1988 que essas uniões estáveis vieram a ser reconhecidas como entidades familiares legítimas, com direitos e deveres análogos aos do casamento. No histórico julgamento de maio de 2011, em surpreendente e bem-vinda unanimidade, o Supremo Tribunal Federal equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis tradicionais.

Pouco mais de um ano depois da publicação da decisão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou importante resolução, não apenas prevendo a conversão das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo em casamento, como também permitindo a habilitação direta para o casamento. Casamento civil, naturalmente, porque as religiões têm o direito de disciplinarem a matéria de acordo com os seus dogmas e postulados, mas a verdade é que uma revolução profunda de costumes ocorreu com a decisão do Supremo e a resolução do CNJ. O Brasil foi um dos pioneiros na quebra desse tabu, ainda em 2011. Nos Estados Unidos, o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo só veio em junho de 2015, com o julgamento do caso Obergefell v. Hodges.

Outras conquistas importantes

Sobrevieram algumas outras conquistas importantes para a comunidade LGBTQIA+. A seguir, destaco três delas.

Adoção por casais homoafetivos

Essa possibilidade foi assentada em decisão do Superior Tribunal de Justiça, relatada pelo Ministro Luís Felipe Salomão, pela qual o critério que deve reger a adoção é o melhor interesse da criança, e não a orientação sexual dos candidatos a adotantes. Com esse fundamento, em decisão unânime, legitimou-se a adoção de uma criança por um casal formado por duas mulheres. Esse caso específico não chegou ao Supremo Tribunal Federal. Aliás, não existe uma decisão do Plenário do STF sobre a matéria. Porém, decisão individual da Ministra Carmen Lúcia, em processo no qual se recorria de uma decisão da Justiça do Estado do Paraná, reiterou esse entendimento. Não houve recurso dessa decisão e a discussão não voltou a ser suscitada perante o Tribunal, sendo certo que casais homoafetivos vêm adotando regularmente pelo Brasil afora. E é bom que seja assim. O que faz diferença na vida de uma criança é um ambiente de respeito e afeto. Acreditar que albergues ou mesmo a rua possam ser opções melhores é uma visão que não se sustenta por nenhum critério.

Autorização para a pessoa transgênero alterar o prenome e o gênero constantes do registro civil

Uma breve nota terminológica é importante aqui para distinguir sexo, gênero e orientação sexual. Sexo é uma condição física, biológica, que distingue homem e mulher por características que incluem genitais e órgãos reprodutivos. Gênero diz respeito à autopercepção do indivíduo, ao sentimento de pertencimento ao universo feminino, masculino ou a nenhuma dessas orientações tradicionais. A orientação sexual, por sua vez, está associada à atração física, ao desejo de cada um. É aqui que a pessoa pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Transgênero ou transexual – não há consenso sobre a terminologia – é a pessoa que não se identifica plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo biológico. O Supremo Tribunal Federal decidiu que tais pessoas têm o direito à alteração do prenome e da classificação de gênero perante o registro civil, independentemente de cirurgia de redesignação de sexo.

Criminalização da homofobia

A homofobia e a transfobia significam a violência física ou psicológica contra uma pessoa, respectivamente em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero. Tais condutas se manifestam por via de agressões, ofensas e atos discriminatórios. Já não se está falando aqui apenas do direito de membros da comunidade LGBTQIA+ de viverem a própria liberdade sexual, mas de preservarem a integridade física e psíquica, quando não a própria vida. A Constituição, por sua vez, determina a edição, pelo Congresso Nacional, de lei destinada a punir qualquer discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais. Como lei criminalizando a homofobia jamais veio a ser editada pelo Poder Legislativo, o STF reconheceu a omissão existente e determinou que se aplicasse aos atos de homofobia e transfobia a lei que pune o crime de racismo.

Este é um breve relato dos sofrimentos, lutas e vitórias judiciais da comunidade LGBTQIA+ na busca por respeito, consideração e igualdade. Um esforço pela superação de preconceitos, discriminações e violências, para que todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual ou identidade de gênero, tenham o direito de buscar a própria felicidade e viver o seu ideal de vida boa. Ser gay não é uma escolha livre, mas um fato da vida. Um destino. Uma vontade da criação. Discriminar uma pessoa por essa razão é o mesmo que discriminar alguém por ser negro, judeu, mulher ou latino-americano. Vale dizer: não há cientificidade nem racionalidade. É só uma derrota do espírito.