Habeas Corpus 84.038-8

5 de julho de 2004

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RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE(S) : SÉRGIO JACOME DE LUCENA

IMPETRANTE(S) : RICARDO PIERI NUNES

ADVOGADO(A/S) : JOÃO HENRIQUE CAMPOS FONSECA

COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO

Eis as informações prestadas pela Assessoria:

O Ministério Público Federal requer sejam reconsideradas as decisões – cópias em anexo – proferidas por Vossa Excelência, nas quais concedeu medida acauteladora em favor do paciente Sérgio Jacome de Lucena e dos co-réus. Sucessivamente, pleiteia que as referidas decisões sejam submetidas ao referendo do Colegiado.

Conforme já consignei em peça apresentada pelo Ministério Público Federal anteriormente, o caso não sugere a reconsideração da medida acauteladora deferida. Reporto-me, mais uma vez, às razões que serviram de base ao pronunciamento, ressaltando a primazia da Constituição Federal e, mais do que isso, a convicção de que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele. Impõe-se a observância da ordem jurídica em vigor, robustecendo-se, com isso, o Estado Democrático de Direito. O decreto de prisão que o Ministério Público, na qualidade de fiscal da lei e não de parte, em iniciativa pouco comum, visa a tornar prevalecente conflita com a ordem jurídica. Atente-se para os fundamentos da decisão interlocutória – e não mero despacho – proferida:

Em primeiro lugar, consigno que a busca da preservação da liberdade de ir e vir não se faz submetida à forma. Por isso mesmo, qualquer do povo pode dar notícia do constrangimento e procurar, na última trincheira do cidadão, que é o Judiciário, a proteção cabível, fazendo-o sem a exigência de peça datilografada, redigida sob o ângulo técnico-jurídico e em original. Daí não se poder potencializar a disciplina dessa via moderna de transmissão de dados que é o fac-símile. De toda maneira, há de se levar em conta a viabilidade de atuação de órgão judicante até mesmo de ofício.

Segundo o disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal – e reconhecem-se neste diploma textos afinados com o Estado Democrático de Direito, com as peculiaridades que se notam em uma república -, que, “no caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25)” – numeração vigente à época -, “a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros”. A interpretação literal cede a métodos mais eficazes, como são o sistemático e, acima de tudo, o teleológico, de modo a se alcançar o objetivo da própria norma. É possível a aplicação do artigo 580 em análise ainda que não se cuide de decisão formalizada em sede recursal, abrangendo a regra todo e qualquer pronunciamento que beneficie co-réu, desde que as circunstâncias sejam comuns. Tratando-se de habeas corpus, o caso se mostra até mais favorável, em vista de ato conflitante com a ordem jurídica em vigor. No que tange à incidência do preceito, observe-se a ausência de previsão de provocação do interessado. Aquele que age na qualidade de Estado-juiz há de sopesar a situação concreta e, constatada a pertinência no figurino legal, implementar a providência. O texto do artigo 580 do Código de Processo Penal pode e deve ser conjugado com a regra do § 2º do artigo 654 do mesmo diploma, sobre a competência dos juízes e tribunais para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Atente-se para o fato de a atividade acauteladora ser ínsita à jurisdição, presente a garantia constitucional do inciso XXXV do artigo 5º da Carta de 1988, reveladora do livre acesso ao Judiciário para reparar lesão ou afastar ameaça de lesão a direito.

A rigor, cumpre reconhecer que, na formalização da liminar de folha 526 a 532, já deveria ter ocorrido a extensão ora almejada por três dos co-réus. Assim procedi quando enfrentei pedido de concessão de liminar no Habeas Corpus nº 84.181-3, havendo a Turma, no julgamento final, placitado tal óptica. Eis como confeccionei a ementa que veio a sintetizar o acórdão prolatado pelo Colegiado:

LIMINAR – ALCANCE – CO-RÉUS – ARTIGO 580 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. A interpretação teleológica do artigo 580 do Código de Processo Penal é conducente à aplicação de benefício outorgado a co-réu no bojo do habeas corpus, inclusive no campo da liminar.

PRISÃO – EXCESSO DE PRAZO. O Estado há de se aparelhar, objetivando o desfecho do processo criminal em tempo hábil. Uma vez configurado o excesso de prazo da preventiva, cabe afastá-la, evitando-se com isso verdadeira transformação em cumprimento precoce de pena.

Realmente, os parâmetros da decisão sinalizam, a mais não poder, a identidade de situações dos réus a quem se impôs a condenação, determinando-se o imediato início do cumprimento da pena, no que negado o direito de recorrerem em liberdade. Noto que existe campo propício à extensão pretendida e que, em face dos artigos do Código de Processo Penal referidos, deve alcançar os demais réus, com exceção de Marlene Rozen, Reinaldo de Menezes da Rocha Pitta, Alexandre da Silva Martins, Romeu Michel Sufan e Paulo Henrique Borges Sekiguchi, que foram beneficiados, de início, com o regime aberto e, a seguir, com a substituição da pena restritiva de liberdade pela restritiva de direitos. Reitero as premissas da decisão ora estendida:

O julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça ficou assim sintetizado, conforme peças enviadas a esta Corte, muito embora com a tarja de “sem revisão”:

HABEAS CORPUS. LAVAGEM DE DINHEIRO, EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL, CORRUPÇÃO PASSIVA E FALSIDADE IDEOLÓGICA. PRISÃO PREVENTIVA. ADVENTO DE SENTENÇA CONDENANDO O PACIENTE A 16 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO COMO INCURSO NOS ARTIGOS 1º, INCISO V, DA LEI Nº 9.613/98, 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 7.492/86, 1º, INCISO I, E 3º, INCISO II, AMBOS DA LEI Nº 8.137/90, E 299 DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL E TAMBÉM COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRETENSÃO DE APELAR EM LIBERDADE. ORDEM DENEGADA.

1 – Não se mostra possível conferir o direito de apelar em liberdade a acusado que permaneceu preso durante o processo em virtude de provimento devidamente fundamentado, notadamente se agora se encontra condenado a 16 anos e 6 meses de reclusão, pela prática dos delitos descritos nos artigos 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/98, 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, 1º, inciso I, e 3º, inciso II, ambos da Lei nº 8.137/90, e 299 do Código Penal, reconhecidas as necessidades da custódia para assegurar a aplicação da lei penal e como garantia da ordem pública.

2 – Habeas corpus denegado (folha 498).

No voto condutor do julgamento, assentou-se (folha 521):

Como visto, a sentença negou ao paciente o direito de apelar em liberdade, recomendando-o na prisão em que se encontra.

Evidente, assim, que modificou-se (sic) o título da custódia, agora decorrente de sentença condenatória.

No entanto, diante desse quadro, está claro que o magistrado, muito embora sem o dizer expressamente, manteve a prisão em face da anterior decretação da preventiva.

Não vejo, portanto, óbice a que se conheça do pedido.

Como bem posto na impetração, na verdade o habeas corpus está a desafiar o decreto de prisão cautelar do paciente, mantido no acórdão do Tribunal Federal da Segunda Região.

Compreenda-se o envolvimento, na espécie, quer da preventiva, quer do verdadeiro início de cumprimento da pena, no que houve a recomendação à prisão na sentença condenatória.

Ante qualquer controvérsia sobre o direito de ir e vir, há de abrir-se a Constituição Federal, observando-se normas que surgem como garantias maiores do cidadão. Extrai-se do artigo 5º nela contido:

a) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal – inciso LIV;

b) ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança – inciso LXVI;

c) ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória – inciso LVII.

Neste exame preliminar, conclui-se pelo desatendimento a esses ditames constitucionais. A preventiva foi decretada consoante peça que se encontra às folhas 39 e 40. Aludiu-se à ordem pública e, aí, apontou-se a necessidade de prevenir a repetição de fatos criminosos. Mais do que isso, fez-se referência ao acautelamento do meio social e à credibilidade da Justiça, consignando-se a gravidade do crime e a repercussão. Pois bem, têm-se parâmetros reveladores, a princípio, de agentes episódicos – servidores públicos que teriam claudicado na arte de proceder, incidindo em práticas criminosas. Supor-se a continuidade dos delitos é passo demasiadamente largo, contrariando a ordem natural das coisas, o afastamento da atividade desenvolvida na Administração Pública, na fiscalização própria às relações jurídicas concernentes aos tributos. O objetivo de acautelar o meio social surge com dose maior de subjetivismo, servindo, na forma em que vazado, à prisão de todo aquele que seja acusado, simplesmente acusado, de um ato delituoso, invertendo-se, com isso, valores, presumindo-se não o que normalmente ocorre, mas o extravagante, o excepcional, a postura à margem do que se espera do homem médio. Sob o ângulo da credibilidade da Justiça, o que asseverado condiz com a punição, então, a ferro e fogo, tornando-a meio de justiçamento e não órgão que implique a eqüidistância desejada na atuação do próprio Estado. Pouco importa a gravidade do crime e a impressão no meio social. Quanto mais grave o crime e maior a reverberação, tem-se a conveniência de resguardar-se as prerrogativas do acusado, as franquias, a intangibilidade da ordem jurídica constitucional. Com esses enfoques é que a Justiça se impõe e se torna acreditada perante os concidadãos.

Relativamente à instrução penal, não fosse a particularidade de já achar-se encerrada com decreto condenatório devidamente formalizado, constata-se, no pronunciamento judicial atinente à preventiva, haver sido acionada capacidade intuitiva. Simplesmente supôs-se que o paciente em liberdade viria a “inutilizar, modificar, alterar ou mesmo impedir a obtenção de provas de seus crimes”. Em suma, o raciocínio desenvolvido convém para justificar a prisão em qualquer caso, mormente quando se trate de pessoa que, em passado recente, haja atuado no âmbito da Administração Pública. A problemática da instrução penal, sob o prisma da preventiva, deve ser inserida num contexto jurídico a partir de dados concretos, dados já existentes, imaginando-se, aí sim, a continuidade de procedimento visando a frustrar a apuração dos fatos. É certo que se remeteu à notícia, simples notícia, de que se procurara obstaculizar o cumprimento de carta rogatória. Todavia não se conta com uma linha sobre a imputação de ato dos acusados, muito menos do paciente. A inserção do trecho fez-se com generalidade imprópria, razão pela qual não se mostra idônea a alicerçar a prisão. Indispensável seria a menção de fato concreto e não de notícia, talvez mesmo por ouvir dizer.

Por último, na preventiva, cogitou-se da possibilidade de fuga. Ora, esta é sempre factível, consubstanciando até mesmo um direito natural do homem, no que se sinta injustiçado por certa determinação. Lançou-se, no procedimento mediante o qual foi formalizada a preventiva, serem os acusados primários, com profissão certa e endereço conhecido, mas se potencializou a posse de recursos e, então, partiu-se para a premissa de que, em liberdade, poderiam deixar o País. Vale registrar o que já decidido pela Corte sobre a fuga e a ausência de base para, via suposição, chegar-se à custódia.

HABEAS CORPUS – CUSTÓDIA PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO INCONVINCENTE.

Decreto de prisão preventiva fundamentado principalmente no temor da evasão do paciente. A custódia cautelar não pode se basear em conjecturas, mas na real necessidade de constrição que justifique a excepcionalidade da medida. Precedentes do STF.

Recurso provido (Recurso em Habeas Corpus nº 67.069-5, Segunda Turma, relator ministro Francisco Rezek, Diário da Justiça de 31.03.1989)

Vê-se que a preventiva, decretada em abril de 2003, o foi à margem do arcabouço normativo de regência.

Diante de novo título a respaldar a custódia, ao contrário da óptica externada no julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça, impossível é ter-se como implicitamente adotados os fundamentos do ato pretérito, da prisão no início do processo. Em jogo a liberdade de ir e vir, a formalização do pronunciamento, a clareza da deliberação é exigível, descabendo presumir-se, ou seja, conceber decisão implícita. Na longa e substanciosa sentença proferida, quanto à dosimetria da pena (folha 223 a 260), proclamou-se:

Nego aos réus o direito de apelar em liberdade, exceto com relação aqueles que tiveram sua pena privativa de liberdade substituída. Recomendem-se os réus na prisão em que se encontram e expeçam-se os mandados de prisão para os réus em liberdade, por força agora de sentença condenatória (folha 259).

O que consignado não se coaduna com os novos ares constitucionais. É próprio à quadra de exceção, como aquela vivenciada quando veio à balha, em penada única, via decreto-lei do então Presidente da República, o Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Neste, em textos não recepcionados pela Carta de 1988, encontra-se base para a negativa de viabilização do apelo em liberdade. O teor da sentença se coaduna com o artigo 393 do Código de Processo Penal:

Art. 393.  São efeitos da sentença condenatória recorrível:

I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;

II – ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.

O teor da sentença é harmônico com o artigo 585 do Código de Processo Penal:

Art. 585.  O réu não poderá recorrer da pronúncia senão depois de preso, salvo se prestar fiança, nos casos em que a lei a admitir.

O teor da sentença está condizente com o extravagante pressuposto de recorribilidade versado no artigo 594 do Código de Processo Penal:

Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.

O teor da sentença está afinado com o preceito do artigo 595, também do Código de Processo Penal:

Art. 595.  Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.

O teor da sentença também não discrepa da previsão óbvia do artigo 596 do Código de Processo Penal:

Art. 596.  A apelação da sentença absolutória não impedirá que o réu seja posto imediatamente em liberdade.

Por último, o teor da sentença conforma-se com o artigo 669:

Art. 669.  Só depois de passar em julgado, será exeqüível a sentença, salvo:

I – quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança;

II – quando absolutória, para o fim de imediata soltura do réu, desde que não proferida em processo por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a 8 (oito) anos.

A Carta da República, entretanto, está no ápice da pirâmide das normas jurídicas. Dotada de rigidez, a todos impõe-se e os dispositivos do Código de Processo Penal, pedagogicamente transcritos nesta decisão, não guardam harmonia com as garantias acima referidas. É hora de dar-se concretude aos ditames constitucionais, pagando-se, assim, o preço por viver-se em um Estado Democrático de Direito. Jamais é demasia frisar-se que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele. A prisão, tal como formalizada, surge temporã.

Estendo a liminar não só aos três requerentes – Axel Ripoll Hamer, Amauri Franklin Nogueira Filho e Carlos Eduardo Pereira Ramos, como também, a partir do disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal, aos demais co-réus que estejam sob a custódia do Estado. Observe-se o fecho da decisão, no que implicou a expedição de alvará de soltura com as cautelas legais. A extensão se faz nos moldes estabelecidos quanto ao paciente Sérgio Jacome de Lucena, ou seja, caso os beneficiários não se encontrem presos por motivo diverso do retratado na prisão preventiva formalizada no Processo nº 2003.5101505176.5 da Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro ou na sentença ainda não coberta pela cláusula da irrecorribilidade proferida, nesse processo, pela 3ª Vara Federal da citada Seção.

O pedido sucessivo formalizado discrepa da jurisprudência pacífica da Corte. Liminares em mandado de segurança e em habeas corpus não ficam sujeitas ao referendo da Turma ou do Plenário. Há de aguardar-se o julgamento, pelo Colegiado, do habeas, o que ocorrerá uma vez colhido, aí sim, o parecer do Órgão.

Indefiro os pedidos formulados.

Publique-se.

Brasília, 23 de junho de 2004.

Ministro MARCO AURÉLIO

Relator