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Hans Kelsen e a Psicanálise

5 de fevereiro de 2005

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Kelsen rejeita todos os assuntos metajurídicos da tradicional Ciência do Direito: sociologia, psicologia, política, economia. Para ele o que transforma um fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, é a norma. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. Ele textualmente afirma que “não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito”. Ele se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir tudo o que não pertença ao seu objeto e libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos.

Este é o seu princípio metodológico fundamental, evitar um sincretismo metodológico. Esta é a sua filosofia, dirigir o conhecimento jurídico às normas jurídicas, sem importar como deve ser o direito ou como deve ele ser feito, mas diz que com o “termo norma quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. Ora, o que deve ser é valor, escolha”, assim como afirmar que “um homem deve se conduzir de uma determinada maneira”, também é valor, escolha. A escolha de fato para revesti-lo de normatividade é valor, é política. Kelsen não consegue afastar-se “do fato” que vai ser transformado num ato jurídico, não pode afastar-se da vontade que vai prescrever a conduta. Também não pode afastar-se, e não se afasta, da conduta estatuída por uma norma como devida (como devendo ser), e neste dever também tem valor, escolha.

Apesar disso ele afirma que “não é do ser fático de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-ser que deflui validade – em sentido objetivo – da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir de harmonia com o sentido subjetivo de ato vontade”.

Na realidade, sem perceber, ele finda por fazer uma dissociação entre fato e norma, entre valor e norma e afasta do ser o valor. Para ele a validade do direito depende da norma, do ato de vontade, independente do valor e do fato. Essa dissociação é neurótica, decorre de uma fantasia, e permanece na fantasia, de construir uma ciência do direito desvinculada do próprio fato que deu origem à norma, ou do dever ser vinculado tão somente ao estabelecido na norma, que pode ser justo ou não.

É evidente que a Ciência do Direito não é Ciência da economia, Ciência política, Sociologia, Psicologia, mas também é evidente que não precisa ser uma ciência dissociada das demais ciências, dissociação que se reflete no comando estatuído na norma e na desobediência social, dissociação existente nas contradições da metodologia de Kelsen e na sua tentativa de criar um direito puro, como num ritual obsessivo de lavagem de mãos para não olhar as culpas interiores.

Quais são os motivos interiores ou as razões para a dissociação de Kelsen, ou para sua necessidade de construir uma teoria pura, afastada de aspectos importantes da vida? Não sei porque não tenho detalhes de sua vida pessoal. Posso apenas sugerir uma hipótese de pesquisa psicanalítica: a necessidade de afastar os demônios de Lassale sem solucionar os conflitos nas suas origens, de buscar segurança na neurose, cujo sintoma é a crença, crença na norma, que funciona como um substitutivo, mas mantendo-se no campo do imaginário, das idéias, e não no real, tentando desta forma dar conta da incompletude por via tão somente do ordenamento jurídico.

Kelsen finda por negar o “defeito social”, rejeita ver uma sociedade enferma, pretende tamponá-la por meio da norma, da vontade. Nós também, de igual modo, queremos tamponar os nossos demônios, a nossa violência, todas as chagas interiores, e tudo resolver através da lei, através de uma norma que é sempre menor do que as necessidades da vida.

A Teoria Pura do Direito é uma crença, “um saber com exclusão dos outros sujeitos”, o da economia, o da psicologia, o da sociologia, portanto, sem transdisciplinariedade. É um projeto de exclusão da ordem da subjetividade, mas aquilo que um saber exclui para delimitar o seu campo retorna sempre, de alguma forma, para dentro desse campo.

A Teoria Pura do Direito não é suficiente para abarcar toda a complexidade da vida social tratada pelo Direito porque ela é excludente, realiza uma dissociação, afasta- se da faticidade e dos valores do ser, mas não pode impedir o retorno do que foi excluído, assim como não pode deixar de tratar do que foi excluído. É uma teoria das significações da norma e não do ser, mas não existe teoria que, por si mesma, possa realizar a tarefa buscada pelo direito.