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Impactos da covid-19 no agronegócio

10 de maio de 2020

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Confira a cobertura do webinar promovido pela Revista JC e pela Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB

O Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e o Diretor da Comissão de Crédito Rural da Febraban, Carlos Aguiar, participaram do webinar “Impactos da covid-19 no Agronegócio”,, transmitido pela Revista Justiça & Cidadania e coordenado pelo Presidente da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB, Antônio Augusto de Souza Coelho. Durante 90 minutos, os convidados responderam várias questões de interesse dos produtores rurais formuladas pelos membros da Comissão.

Estiveram em pauta as recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que flexibilizam regras contratuais, inclusive no agronegócio; as iniciativas legislativas em tramitação no Congresso Nacional; e a política de crédito, discutida pelo Conselho Monetário Nacional para enfrentar a crise provocada pela pandemia do novo coronavírus.

Quem olha de fora é levado a acreditar que a pandemia não afetou de imediato os trabalhos no campo e que o agronegócio brasileiro continua firme – responsável por 21,4% do PIB brasileiro, com 15 milhões de pessoas diretamente empregadas – garantindo o abastecimento interno e acelerando as exportações. Afinal, quando o novo coronavírus chegou já estava plantada a supersafra de soja que, em agosto, deve ultrapassar o recorde de 126 milhões toneladas e consolidar o Brasil como o maior exportador mundial do grão. As commodities agrícolas brasileiras também se beneficiam das atuais taxas de câmbio, que tornam seus preços competitivos no exterior, bem como da diminuição das medidas restritivas na China, principal destino do nosso agronegócio, e da antecipação das compras dos chineses frente ao cenário de incerteza.

Mas da porteira para dentro há grandes preocupações, pois o prolongamento da pandemia pode produzir efeitos incertos, como a redução da demanda de algumas culturas, problemas na logística de distribuição e variações imprevisíveis nos preços de vários produtos. O custo de muitos insumos, como fertilizantes e defensivos agrícolas, além de maquinário importado, cotado em dólar, também preocupa. O volume de crédito rural oferecido pelos bancos é também considerado insuficiente pelos produtores rurais, que temem ainda a insegurança jurídica provocada pelos desdobramentos imprevisíveis da crise sobre as relações contratuais e os processos de recuperação judicial.

Há ainda os setores do agronegócio que acumulam os problemas decorrentes da covid-19 com as perdas provocadas por outros fatores. É o caso dos cerealistas do Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina, que perderam enorme volume de colheitas em função da prolongada seca que atinge a região. Assim como o do setor sucroalcooleiro, que atingido pelo colapso do mercado de petróleo bruto amarga uma depreciação de 33%, desde janeiro, no valor do etanol.

Cooperação e negociação – Utilizando o exemplo da ferrugem asiática, doença que atinge a soja causada pelo fungo phakopsora pachyrhizi, Antônio Augusto Coelho lembrou ao Ministro Cueva que, anteriormente, o STJ não admitiu pragas como fatos imprevisíveis aptos a justificar revisões contratuais. Ele perguntou ao magistrado se agora, embora a atividade agrária tenha ficado de fora das medidas de quarentena por ser considerada essencial, a covid-19 poderá vir a justificar eventuais revisões, considerados os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, conforme preconiza o art. 421-A, introduzido no Código Civil pela recente Lei da Liberdade Econômica. 

O Ministro Cueva disse que essa é uma pergunta difícil, não apenas porque ele poderá vir a julgar situações semelhantes no futuro, mas também porque ninguém no Poder Judiciário ou no mercado já teria certezas sobre a dimensão dos impactos da crise. Para ele, o esforço agora deve ser no sentido de estimular os agentes econômicos a negociar, com a imposição do dever de cooperação e boa fé objetiva. “O que o legislador espera hoje é que as partes sejam capazes de atingir uma composição. Isso não é fácil, não é trivial, mas temos que estimular esse dever de cooperação e negociação. Cabe ao Judiciário oferecer os meios adequados à resolução desses conflitos sempre que for possível”, disse o Ministro.

Gatos escaldados – O Vice-Presidente da Comissão, Marcus Vinícius Rezende Reis, perguntou ao Ministro Cueva sobre aspectos da teoria da imprevisão, constantemente levantada em discussões sobre a inadimplência de créditos do agronegócio. Ele lembrou que o STJ já enfrentou a matéria em diversas ocasiões como, por exemplo, em decorrência das oscilações do preço do dólar na década de 1990, além da já mencionada praga da ferrugem asiática que atingiu o País na primeira década desse século.

“Foram fatores considerados previsíveis aos olhos do Judiciário, mas dessa vez a situação é muito diferente. Poderia talvez até se argumentar que a incidência de um vírus tão contagioso quanto o novo coronavírus era previsível, mas ninguém jamais em sã consciência poderia prever um lockdown global dessa natureza. Entendo aqui um genuíno e típico caso fortuito ou de força maior, capaz de atrair os olhos da Justiça ao equilíbrio da balança contratual, fiel ao pétreo princípio do equilíbrio contratual entre as partes. (…) Como é que o STJ está se preparando para momento de tamanha incerteza jurídica?”, questionou Reis.

O Ministro Cueva lembrou que o Brasil, apesar de não ter enfrentado pandemias nas décadas recentes, tem experiência acumulada com congelamentos de preços, mudanças de padrão monetário e de todo tipo de intervenção do Estado na economia. “Como bons gatos escaldados, temos o receio de aplicar tablitas, descontos padronizados e moratórias únicas porque isso pode gerar o desequilíbrio dos preços relativos e uma quebra em cadeia de contratos que são essenciais para o funcionamento da economia. Minha visão já retratada em voto pretérito e em artigos é de que algumas intervenções do Judiciário são desastrosas. (…) A julgar pela evolução da jurisprudência no STJ é possível avaliar que hoje os juízes estão mais atentos às consequências das suas decisões e, portanto, procurarão levar em consideração – especulando como doutrinador e não como juiz – as peculiaridades de cada caso concreto”.

Novos olhares – O Secretário da Comissão da OAB, Frederico Price Grechi, reconheceu a importância da negociação para solucionar eventuais conflitos, mas lembrou ao Ministro que na cadeia produtiva do agronegócio há relações não paritárias, não raro de dependência dos produtores em relação a fornecedores e distribuidores. Nesse sentido, perguntou se o Judiciário estaria sensível à criação de instrumentos de autocomposição para relações entre partes assimétricas. Em resposta, ouviu do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva que sempre que se fala na função social do contrato, ela aparece conjugada a outros princípios, sobretudo a boa fé objetiva, como forma de mitigar os efeitos da assimetria entre os contratantes.

Por fim, Cueva voltou a ressaltar que as decisões dos magistrados deverão sempre considerar o caso concreto e as possíveis repercussões econômicas: “Dificilmente haverá resposta coletiva, uniforme e adequada para todo tipo de situação que se apresentar. Não apenas setorialmente, mas em função de peculiaridades de mercados específicos e situações peculiares poderá haver perdas e benefícios. Uma intervenção do Judiciário que passe a régua e trate igualmente os desiguais poderá ser mais desastrosa do que não fazer nada, pode ter inclusive o resultado oposto àquele que se pretendia com a intervenção, obviamente motivada pelas melhores intenções. (…) Espero que entre todos os agentes econômicos e todos os Poderes haja muita capacidade de olhar para cada situação como se ela fosse nova.

Confira os comentários do Ministro Ricardo Cueva sobre iniciativas do Judiciário e Legislativo para enfrentar a pandemia

“É um momento histórico muito peculiar. Nenhum de nós tem condições de avaliar concretamente qual será o impacto na vida das pessoas e na economia. No agronegócio, claro, também haverá impactos significativos. É por isso que já se começam a adotar algumas iniciativas importantes no âmbito do Poder Judiciário e do Poder Legislativo para tentar minorar os efeitos da crise cataclísmica que certamente se seguirá à pandemia, de final ainda incerto.

A primeira iniciativa é o Projeto de Lei nº 1.179/2020, relatado pelos Senadores Antonio Anastasia e Simone Tebet, que resulta de uma iniciativa muito feliz do Judiciário. O Ministro Dias Toffoli, em conjunto com meu colega Ministro Antônio Carlos, da Segunda Seção do STJ, com apoio do Professor Otávio Rodrigues e de outros juristas elaboraram um texto que leva em consideração experiências pretéritas de outras crises, experiências adotadas agora em outros países e também as lições da Análise Econômica do Direito, para evitar comportamentos oportunistas que poderiam ocorrer, por exemplo, se fosse de uma hora para outra decretada a moratória geral de todas as relações contratuais, independentemente das circunstâncias peculiares de cada uma delas.

A justificativa do Projeto é muito clara. O que se procura é criar regra de transição emergencial e temporária, aplicada por período determinado no tempo, evitando, portanto, a eficácia retroativa dessa situação para contratos anteriores a 20/3, que é considerado o início do estado de calamidade pública. (…)

Outra iniciativa importante que merece destaque é o PL nº 1.397/2020, de autoria do Deputado Federal Hugo Leal, que também procura tratar da situação emergencial com regras específicas para a recuperação judicial. Isso pode ter impacto no agronegócio, pelo menos na ideia bastante inovadora em nosso ordenamento de criar um sistema de prevenção à insolvência, um mecanismo de negociação preventiva à recuperação judicial, a exemplo do que já existe em outros países. (…) Esse modelo pode se revelar uma saída importante, inclusive, para o futuro do instituto da recuperação judicial no Brasil, se formos capazes de criar alguns institutos assemelhados ao que já existe na França, com várias modalidades de recuperação assistida, em que se simplifica a relação entre os devedores e o credor. Será um grande avanço.

Além disso, temos uma iniciativa importante do CNJ. Meu colega da Segunda Seção, Ministro Luis Felipe Salomão, faz parte do grupo de trabalho que acabou de criar a recomendação que, fundamentalmente, diz: tenhamos serenidade nesse momento difícil; vamos priorizar a análise e a decisão sobre o levantamento de valores em favor do credor e da empresa recuperanda; vamos suspender as assembleias gerais e permitir que elas se realizem em reuniões virtuais quando for necessário; vamos prorrogar o período de suspensão previsto no art. 6º da Lei de Falências; vamos autorizar o plano de recuperação modificativo; vamos avaliar com muita cautela o deferimento de medidas de urgência, de despejo e atos executivos de natureza patrimonial. Todas essas iniciativas em conjunto acabam por criar, na medida do possível, certa serenidade na apreciação dos eventos que virão por aí.

Os tribunais também já têm se movimentado prevendo um grande afluxo de demandas judiciais que estão sendo represadas agora no período de suspensão dos prazos, mas que provavelmente inundarão o Judiciário em várias frentes, na questão do consumidor, na área de recuperação judicial, etc. Para isso já se cogita a criação de uma estrutura mais adequada para o manuseio de negociações, até mesmo sob a forma de plataformas eletrônicas. Há também uma iniciativa muito recente do CNJ, que ainda está por ser divulgada, que é a criação de uma plataforma eletrônica que permita a negociação dos conflitos antes que eles sejam judicializados.

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“Tenhamos serenidade nesse momento difícil”

Confira os comentários do Ministro Ricardo Cueva sobre iniciativas do Judiciário e Legislativo para enfrentar a pandemia

“É um momento histórico muito peculiar. Nenhum de nós tem condições de avaliar concretamente qual será o impacto na vida das pessoas e na economia. No agronegócio, claro, também haverá impactos significativos. É por isso que já se começam a adotar algumas iniciativas importantes no âmbito do Poder Judiciário e do Poder Legislativo para tentar minorar os efeitos da crise cataclísmica que certamente se seguirá à pandemia, de final ainda incerto.

A primeira iniciativa é o Projeto de Lei nº 1.179/2020, relatado pelos Senadores Antonio Anastasia e Simone Tebet, que resulta de uma iniciativa muito feliz do Judiciário. O Ministro Dias Toffoli, em conjunto com meu colega Ministro Antônio Carlos, da Segunda Seção do STJ, com apoio do Professor Otávio Rodrigues e de outros juristas elaboraram um texto que leva em consideração experiências pretéritas de outras crises, experiências adotadas agora em outros países e também as lições da Análise Econômica do Direito, para evitar comportamentos oportunistas que poderiam ocorrer, por exemplo, se fosse de uma hora para outra decretada a moratória geral de todas as relações contratuais, independentemente das circunstâncias peculiares de cada uma delas.

A justificativa do Projeto é muito clara. O que se procura é criar regra de transição emergencial e temporária, aplicada por período determinado no tempo, evitando, portanto, a eficácia retroativa dessa situação para contratos anteriores a 20/3, que é considerado o início do estado de calamidade pública. (…)

Outra iniciativa importante que merece destaque é o PL nº 1.397/2020, de autoria do Deputado Federal Hugo Leal, que também procura tratar da situação emergencial com regras específicas para a recuperação judicial. Isso pode ter impacto no agronegócio, pelo menos na ideia bastante inovadora em nosso ordenamento de criar um sistema de prevenção à insolvência, um mecanismo de negociação preventiva à recuperação judicial, a exemplo do que já existe em outros países. (…) Esse modelo pode se revelar uma saída importante, inclusive, para o futuro do instituto da recuperação judicial no Brasil, se formos capazes de criar alguns institutos assemelhados ao que já existe na França, com várias modalidades de recuperação assistida, em que se simplifica a relação entre os devedores e o credor. Será um grande avanço.

Além disso, temos uma iniciativa importante do CNJ. Meu colega da Segunda Seção, Ministro Luis Felipe Salomão, faz parte do grupo de trabalho que acabou de criar a recomendação que, fundamentalmente, diz: tenhamos serenidade nesse momento difícil; vamos priorizar a análise e a decisão sobre o levantamento de valores em favor do credor e da empresa recuperanda; vamos suspender as assembleias gerais e permitir que elas se realizem em reuniões virtuais quando for necessário; vamos prorrogar o período de suspensão previsto no art. 6º da Lei de Falências; vamos autorizar o plano de recuperação modificativo; vamos avaliar com muita cautela o deferimento de medidas de urgência, de despejo e atos executivos de natureza patrimonial. Todas essas iniciativas em conjunto acabam por criar, na medida do possível, certa serenidade na apreciação dos eventos que virão por aí.

Os tribunais também já têm se movimentado prevendo um grande afluxo de demandas judiciais que estão sendo represadas agora no período de suspensão dos prazos, mas que provavelmente inundarão o Judiciário em várias frentes, na questão do consumidor, na área de recuperação judicial, etc. Para isso já se cogita a criação de uma estrutura mais adequada para o manuseio de negociações, até mesmo sob a forma de plataformas eletrônicas. Há também uma iniciativa muito recente do CNJ, que ainda está por ser divulgada, que é a criação de uma plataforma eletrônica que permita a negociação dos conflitos antes que eles sejam judicializados.

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“Não deve faltar recursos”

O Diretor Setorial de Crédito Rural da Febraban, Carlos Aguiar, falou sobre as resoluções tomadas pelo Conselho Monetário Nacional para garantir crédito aos produtores e empresários cujas atividades venham a ser atingidas pela pandemia. Segundo ele, os principais obstáculos encontrados até o momento são a dificuldade de visitar os produtores para a renovação do crédito e o funcionamento irregular dos cartórios, que em algumas regiões estão trabalhando de portas fechadas e/ou com poucos funcionários.

O representante reconhece a necessidade de maior valor de financiamento para a próxima safra, sobretudo em função do aumento de custos provocado pela desvalorização cambial do real. “O agronegócio segue forte, a maior parte das vendas antecipadas por produtores rurais foram feitas com preços interessantes. (…) O que não quer dizer que o agro não tenha problemas, por isso trabalhamos com a possibilidade de crescimento de crédito. Na Febraban não enxergamos nenhuma reticência de crédito para o setor. Existem sim casos pontuais, mas de maneira geral os bancos, tanto os públicos quanto os privados, estão crescendo no segmento e não deve faltar recurso”.

Contudo, preocupado com a situação dos produtores da Região Sul que esse ano, além da covid-19, perderam 17 milhões de toneladas de grãos em função da seca, o Presidente da Comissão de Direito Agrário da OAB-RS, Ricardo Barbosa Alfonsin, se queixou do volume do crédito rural e da inexistência de seguro agrícola no Brasil. “Um exportador desse tamanho sem seguro agrícola é um problema terrível, porque o risco na atividade é superior ao de qualquer outra. O produtor rural é um trapezista sem rede de proteção, que ao primeiro erro no trapézio está morto. Nosso crédito rural é também muito pequeno, não chega a 40% dos produtores rurais, normalmente os grandes”.

 Em relação ao volume de crédito, Carlos Aguiar discordou: “O que temos visto nos últimos anos é o aumento do volume do crédito para os pequenos em detrimento dos grandes. A crítica que está sendo feita é válida, mas o Ministério da Agricultura nos últimos está aumentando o crédito para os pequenos em detrimento da agroindústria, então essa é uma visão compartilhada por nós”.