IV New Trends in the Common Law

7 de novembro de 2023

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Comunidade jurídica internacional debate a relação entre Governança Digital e Estado de Direito, tema inadiável para as democracias modernas

Como o uso do sistema de precedentes pode garantir uma prestação jurisdicional mais célere? Quais as preocupações com o uso de inteligência artificial nos processos judiciais? Como as mudanças ambientais e climáticas se entrelaçam com o Estado de Direito? O que está em debate no âmbito da tributação, economia e Direito Digital? Esses foram alguns dos questionamentos presentes nos debates da quarta edição do seminário internacional New Trends in The Common Law (Novas tendências em Common Law), realizado em Londres.

Durante quatro dias em outubro, magistrados e especialistas brasileiros e ingleses de diversas áreas do Direito reuniram-se para debater a relação entre “Governança Digital e Estado de Direito”, tema inadiável para as democracias mundiais.

Promovido pela Revista Justiça & Cidadania, o seminário é organizado pelo Institute of Advanced Legal Studies (IALS) da Universidade de Londres, que sediou o evento, e pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). A edição contou com o apoio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Advogados (Enfam). 

A coordenação científica geral ficou a cargo do Juiz Federal aposentado Marcus Lívio Gomes, pesquisador associado ao IALS e professor da Uerj – que também acumulou a coordenação temática de tributação ao lado do professor emérito de Direito da Universidade de Lancaster Sol Picciotto e do professor da Uerj Sergio André Rocha. 

O Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF2), professor da Uerj e da Universidade Estácio, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, coordenou os painéis sobre common law e procedural law; a Juíza Federal do TRF2 Caroline Somesom Tauk coordenou os painéis sobre Propriedade Intelectual; a Juíza Federal do TRF2 Daniela Pereira Madeira coordenou os painéis sobre Prova Digital; a mestranda em Direito da Uerj Marília Cavagni coordenou os painéis que trataram de inteligência artificial.

Matérias ambientais – A proteção ao meio ambiente foi um dos temas de maior repercussão no seminário. O Ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Benjamin Zymler falou sobre o assunto no primeiro painel, cujo tema era “Mudanças ambientais e climáticas: desafiando o Estado de Direito”. A mediação ficou a cargo da Desembargadora Carmen Silvia, do TRF2.

Zymler apontou para a percepção mundial e crescente de que é necessário buscar melhorias na questão climática. Em sua avaliação, o Estado tem o papel de induzir comportamentos de mudança do mercado para adaptá-lo aos critérios de conformidade de sustentabilidade ambiental. Ao tratar do histórico de competências atribuídas ao TCU, Zymler disse que o órgão atua como “indutor” da melhoria das políticas públicas e da boa administração.

Esperança na Amazônia brasileira – Em sua participação, o Ministro do STJ Mauro Campbell Marques analisou a conjuntura histórica da Amazônia brasileira, a partir da perspectiva do desenvolvimento do mercado de créditos de carbono. Campbell defendeu que esse mecanismo pode ajudar na superação do déficit social e econômico no norte do Brasil e na preservação dos biomas da região.

“Temos a novidade alvissareira da comercialização de créditos de carbono para investimento em áreas como a Amazônia. Concordo que esse mercado pode suplementar o déficit social presente na Amazônia brasileira, no entanto, reafirmo que temos ‘Amazônias’ dentro da Amazônia”, alertou o ministro. “No Estado do Amazonas, por exemplo, 92% da floresta está preservada, então esse novo mercado pode acabar remunerando o mega proprietário de terra que já faz isso naturalmente, mantendo os índices de pobreza da região”, afirmou Campbell.

Iniciativas no CNJ – Três iniciativas recentes desenvolvidas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em relação ao tema ambiental foram apresentadas pela titular da 4a Vara Federal do Rio de Janeiro, Juíza Daniela Madeira. São elas: uma pesquisa inédita sobre a atuação jurisdicional em relação aos crimes ambientais; um programa que acompanha os pontos de desmatamento na Amazônia (Projada e SiresneJud); e um acordo de cooperação técnica com os municípios da Amazônia Legal mais afetados pelo desmatamento.

Um dos achados da pesquisa, que será divulgada pelo CNJ ainda neste ano, foi a constatação de que a maioria dos crimes ambientais são cometidos em áreas da União e em terras indígenas. “Várias cidades da Amazônia Legal vivem em decorrência do desmatamento ilegal, incluindo a extração ilegal do minério”, contou a juíza, apontando para as dificuldades de denúncia desses crimes, que são os maiores em termos ambientais. 

Para a magistrada, que atuou como auxiliar na Corregedoria Nacional de Justiça, o CNJ tem papel importante no direcionamento de políticas públicas dentro do Poder Judiciário. “O órgão está voltado não só
para a melhoria do Poder Judiciário, mas preocupado com a situação do Brasil como um todo”, afirmou Daniela Madeira – recém-eleita para compor o órgão enquanto Conselheira.

Tributação sob foco – As regras e a jurisprudência tributária brasileira e internacional, bem como as taxas e impostos, também estiveram em debate em vários momentos do IV New Trends. Um dos painéis tratou das tendências tributárias internacionais, do acordo de bitributação Brasil-Reino Unido e das novas regras brasileiras para os preços de transferência, sob moderação do professor visitante da Universidade de Oxford, Philip Baker.

Em sua participação, a especialista Cláudia Pimentel, subsecretaria de Tributação e Contencioso da Receita Federal, relembrou que as regras de preço de transferência surgiram a partir da internacionalização das empresas, principalmente as americanas. “Houve um movimento de precificação das transações que acontecem dentro do grupo econômico, de forma também a trazer vantagens tributárias. Mediante a precificação, é possível alocar o lucro que talvez esteja nos Estados Unidos, ou outro país com uma tributação mais elevada, e fazer essa transferência para países de baixa tributação mediante a precificação”, explicou. 

O professor Sérgio André Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, afirmou que o preço de transferência trata da distribuição de poder tributário entre os países. De acordo com o professor, o problema de adotar o modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de forma geral, está no fato de a tributação internacional se dedicar a uma “briga de poder, briga por competência tributária”. “Nessa batalha por competência tributária, o modelo da OCDE sempre favoreceu países desenvolvidos e aqueles que são exportadores líquidos de capital. (…) Mesmo no caso do Brasil, que é uma grande economia, seguimos sendo importadores líquidos de capital. Se retirarmos as empresas de commodities do radar, não temos um grande número de multinacionais brasileiras explorando mercados pelo mundo”, ponderou o professor.

Precedentes e jurisprudência – Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do STJ, Luiz Fux e Ricardo Villas Bôas Cueva, respectivamente, falaram sobre “Os precedentes no Código de Processo Civil brasileiro”. O advogado e professor Rodrigo Fux moderou o painel.

“Os precedentes têm a importância da hierarquia, de desmistificar essa ideia de que o juiz é livre para julgar o que ele quiser, e de determinar que determinada jurisprudência não pode ser modificada a toda hora”, afirmou Fux, conhecido por sua dedicação ao Novo Código de Processo Civil, de 2015, (ou Código Fux, como apelidou-se o texto).

Próximo de completar uma década de Código, o ministro apontou as alterações consideradas positivas, como o incidente de resolução de demandas repetitivas e a previsão de fixação de teses que devem ser aplicadas por todos os juízes do País, numa forma de garantir coerência decisória. Fux também elogiou a conciliação como a melhor forma de solução dos litígios, sob o aspecto da análise econômica do Direito.

Mídias sociais e algoritmos – Alvo de pesquisas incessantes na atualidade, a inteligência artificial, a partir do uso de algoritmos, e a conciliação com princípios éticos e de transparência também tiveram espaço no IV New Trends. O Brasil tem um arcabouço legal robusto em termos de tecnologia, mas ainda pode avançar em termos de regulação, como defendeu o presidente do STF, Ministro Luís Roberto Barroso.

Preocupado com a liberdade de expressão e com os efeitos da tecnologia nas relações sociais, o ministro concorda com a ideia de criação de uma agência externa para monitorar e, eventualmente, aplicar as sanções próprias diante de comportamentos criminosos ou ilícitos. Essa agência reuniria representantes do governo, das big techs e, predominantemente, da sociedade civil e da academia.

“Evidentemente, esse controle tem que assumir uma postura pluralista diante da vida. Não existe pensamento único, não existe monopólio da virtude, não existe ‘ministério da verdade’. A vida tem que ser plural e a moderação de conteúdo tem que seguir pela própria plataforma com transparência, devido processo legal, razoabilidade, e sem discriminação”, afirmou o ministro.

Interferência da máquina – Especialista no assunto, a advogada Marília Cavagni descreveu o funcionamento da inteligência artificial e alertou para a preocupação com falhas de segurança no uso do deep learning, ferramenta que funciona de forma parecida com a rede neural humana, contendo uma camada oculta de aprendizado. 

Cavagni explicou que o deep learning pode apresentar um risco para a decisão final da máquina, porque não dá para o algoritmo ser supervisionado por completo. “Com o avanço do machine learning [aprendizado da máquina], passamos a ter algoritmos que não são supervisionados pelos programadores. O lado bom é o surgimento de padrões diferentes. No entanto, não temos mais a segurança efetiva em relação àquelas informações e, principalmente, o que vai sair de resultado”, afirmou Marília.

Judiciário e inteligência artificial – Vice-presidente da seccional fluminense da OAB, a advogada Ana Tereza Basílio falou sobre a experiência do Judiciário brasileiro com os riscos do uso de inteligência artificial, com destaque para dois sistemas: Victor, do STF, e Athos, do STJ. Basílio alertou, no entanto, para o uso da inteligência artificial na parte decisória do processo, como já é feito no sistema Athos, por exemplo. Desenvolvida para agregar processos por critérios semânticos para criação de temas repetitivos de controvérsia, a ferramenta é responsável por avaliar a admissibilidade dos recursos especiais.

“É importante lembrar que o Direito reflete um dos sentimentos mais intrínsecos ao ser humano que é o direito à Justiça e a ser julgado por um semelhante, com a visão de sensibilidade humana que o computador ou a inteligência artificial jamais terá, por mais que tenha dados e por mais eficiente que seja”, advertiu Basílio.

Prova digital nos tribunais – Na palestra sobre provas digitais, o Justice Jeremy Johnson, da High Court of Justice of England and Wales, defendeu o uso da inteligência artificial justamente para mitigar o risco do erro judicial. Exaltou também o avanço do Poder Judiciário brasileiro no emprego dessas ferramentas. “Estamos digitalizando toda a entrega de Justiça na Inglaterra e no País de Gales, o que pode reduzir os atrasos e o custo do contencioso, além de melhorar o acesso à Justiça”, disse Johnson.

O vice-presidente do TRF2, Desembargador Federal Aluisio Mendes, lembrou que o CPC e o Marco Civil da Internet fortaleceram a regulamentação do uso de provas digitais no País a partir da adoção do depoimento pessoal virtual e da guarda do registro de conexões e acessos na Internet. 

“As vantagens da prova digital são a proximidade da verdade real, dados objetivos e mais confiáveis que a prova testemunhal e novas possibilidades para resolver o processo judicial de forma mais célere. As provas digitais permitem que o Judiciário se aproxime das inovações tecnológicas em busca de novos meios probatórios que possibilitam o alcance mais célere da verdade real”, afirmou.

Efeitos da audiência virtual – O professor John Sorabji, da University College London, contou da experiência do Tribunal Superior da Inglaterra e do País de Gales, que passou a permitir audiências virtuais. O professor ressaltou benefícios como a celeridade ou o testemunho virtual, que evita deslocamentos e viagens. Já entre as desvantagens, citou os efeitos adversos na saúde mental e física dos juízes e advogados.

“Com audiências digitais há um chamado para maiores pausas, porque é cansativo realizar esse tipo de audiência. Se há muitas testemunhas e se o tempo despendido vai aumentar, deixa de ser conveniente fazer uma audiência digital. Se a audiência for de longa duração, isso pode ter um efeito nefasto nos juízes e pode impactar os advogados e as partes interessadas”, explicou Sorabji.

Agenda mundial – O advogado Andrea Marighetto, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália), afirmou que o tema das mudanças ambientais e climática é de extrema importância, porque perpassa as discussões sobre o desenvolvimento econômico e sustentável, presente nas agendas mundiais. 

“Não podemos esquecer as últimas regulamentações, até em matéria europeia, sobre limitações de como devem ser realizadas determinadas atividades, em particular das empresas, e como os financiamentos, como parte de regulamentações de apoio ao exercício da empresa, dependem do objeto dessas regulamentações. Não se trata de assuntos paralelos, são extremamente dependentes e diretamente conexos uns com os outros”, ponderou.

Marighetto foi mediador de um dos painéis sobre o tema ambiental, que contou com palestras, dentre outras autoridades, do Justice Sir Keith Lindblom, the Senior President of the Tribunals (UK). Também conselheiro do Rei, Lindblom abordou as diferenças e semelhanças das jurisdições sobre o tema da  litigação climática e defendeu uma obviedade, em suas próprias palavras: “Uma parte essencial do Estado de Direito em todas as sociedades é a independência judicial e a imparcialidade”.