Edição 13
O assalto nos meios de transporte coletivo de passageiros e suas consequencias em materia de responsabilidade civil
5 de março de 2001
Carlos Antonio da Silva Navega
Ex-Procurador-Geral da Justiça / RJ Procurador da Justiça junto à Corte de Contas do Estado do Rio de Janeiro Advogado
Introdução
A sanha criminosa do “assalto” no cotidiano, autentico terrorismo urbano com o objetivo unico do roubo, este na sua exata acepção penal, a par de desafiar desdobrantes esforços da politica de segurança publica, missa esta cometida ao Estado politicamente organizado, vem ampliando dimensões , nao sem perplexidades, na area juridica, especificamente no ambito da responsabilidade civil , sendo de se destacar – aqui o objeto da nossa reflexao – suas preocupantes consequencias no campo do serviço publico delegado do transporte coletivo de passageiros.
Caminha-se célere, neste cenario juridico, acentuada inclinaçao para se creditar as empresas transportadoras toda carga de responsabilidade pelo evento, imprevisto e incontentivel ao seu alcance, carregando-as com os onus da reparaçao pelos danos causados aos respectivos usuarios, como se fossem elas participes ou coniventes com o crime, quando tambem e vitima.
E quando tais ocorrencias se registram nas vias publicas contra desprevenidos e inocentes transeuntes, o que tambem vai se tornando rotineiro? Respondera civilmente o Estado?
O tema, como se depreende, se alça relevante, desafiante ao sopesamento da sua repercussao e projetantes consequencias materiais nas relações juridicas que presidem e vinculam o usuario ao prestador de serviços delegados, pautando este na obrigaçao quanto ao resultado, ou seja, conduzir o passageiro, ilesamente, ao seu destino.
A soluçao para o tema há de confluir para o canteiro do direito positivo brasileiro no concernente a tematica da responsabilidade civil das empresas, na atividade a que se dedicam do transporte coletivo, ponderada e justa, calcada na lógica da razoabilidade e do bom senso, posto nao se enfeixar no pacto de conduçao a clausula de “transporte sem assalto”, hipótese que refoge a qualquer previsibilidade.
A responsabllldade civil das empresas de transporte coletivo de passageiros no direito positivo e na Jurisprudencia patria
Embora nao caiba no ambito restrito do tema abordado o proposito de se recensear a legislaçao e jurisprudencia ao mesmo pertinente, nao se pode deixar de reconhecer que a responsabilidade civil das empresas que se dedicam a atividade de transporte coletivo de passageiros tem, como matriz, o vetusto Decreto n° 2.681, de 07 de dezembro de 1912.
Inobstante editado para disciplinar a responsabilidade civil das ferrovias, transporte entao preponderante, sua aplicaçao, mediante construçao pretoriana, foi estendida a outras modalidades de transporte coletivo de passageiros, precipuamente o rodoviario, o qual recrudesceu com a expansao socio-economica e demografica do Pais, nas ultimas decadas do segundo exaurido milenio, enquanto o ferroviario tornou-se minguo.
Neste contexto, vale ter presente o artigo 17, do referido diploma normativo, a dispor que as empresas que se dedicam ao transporte coletivo de passageiros, atraves de ferrovias, respondam, civilmente, pelos “desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes” dos quais resultem morte, ferimento ou lesao corporal.
Sem ignorar a testilha que entao se travou na doutrina sobre ser objetiva, ou subjetiva, a responsabilidade civil atribuida as referidas empresas, o certo e que estas, a luz do citado dispositivo legal, so eram chamadas a responder pelas consequencias danosas de ações que guardavam efetiva conexao com a execuçao do serviço de transporte, ocorridas nas suas linhas, conforme a linguagem legal.
Nao e por outra razao que anciã jurisprudencia do Supremo Tribunal Federal considerava derivado de causa estranha a execuçao do serviço de transporte as danos suportados pelos passageiros, provocados por disparos e pedras atiradas por terceiros, equiparando ditas ações ao fortuito, mais tarde doutrina e a propria jurisprudencia se houve por denominar ser ato externo, por nao guardar relação com os riscos inerentes ao exercicio da correspectiva atividade.
A responsabilidade civil das empresas encimada nao se alterou, a rigor, com o advento do Codigo Civil, na medida em que estas, segundo o que dispõe o 1.521, inciso III, da mencionada codificação, so respondem, civilmente, pelos atos danosos que seus empregados causarem a seus passageiros, no exercicio do trabalho que Ihes compelir, ou seja, durante a realização da viagem.
Linha dogmatica esta que tem identica sagração na Carta Maior da nação de 1988.
Embora a Texto Basico tenha constitucionalizado a responsabilidade objetiva das pessoas juridicas de direito privado, prestadoras de serviço publico, a disposição nao sujeitou a seu regime as contratos de transporte, tanto que ditas pessoas juridicas respondem, objetivamente, pelos danos que seus agentes, durante a execução do referi do serviço, causarem a terceiros, ou seja, a norma juridica constitucional abrange, apenas, os casos de responsabilidade extracontratual, pais, em relação as mencionadas pessoas juridicas, terceiros sao, logicamente, pessoas que com elas nao contrataram.
Em face disso, a orientação pretoriana traçada no Colendo Supremo Tribunal Federal nao se alterou no seio do Superior Tribunal de Justiça, cuja Egregia Terceira Turma, em duas distintas oportunidades definiu-se por sedimentar inteligencia no sentido de que a empresa que se dedica ao transporte coletivo de passageiros nao e responsavel pela reparação de prejuizos ocasionados a seus passageiros, se estes derivam de açao totalmente estranha ao exercicio da atividade a que se dedicam, como se acham retratados no Recurso Especial n° 35.436-6-Sp, relatado pelo Ministro EDUARDO RIBEIRO e no Recurso Especial n° 38.277-7-RJ, aqui na relatoria do Ministro NILSON NAVES.
Hodiernamente, a responsabilidade civil das empresas que cuidam do transporte coletivo de passageiros esta sujeita, quanta a estes, a disciplina juridica da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, na medida em que a relação jurídica que vincula estes àquelas, o que constitui, sem duvida, modalidade de relação de consumo.
Em sendo assim, tais empresas nao sao responsaveis pela reparação dos danos ocasionados a seus passageiros, tipicos consumidores stricto sensu, por ação derivada de culpa exclusiva de terceiro, uma vez comprovada esta, conforme norma contida no texto do § 3°, inciso II, do artigo 14, do precitado ato legislado.
A não indenização de danos derivados de assaltos ocorridos em meios de transporte
A luz do dispositivo legal acima citado, o assalto ocorrido em meios de transporte coletivo de passageiros, como ocorrencia estranha e incontivel, nao gera o dever de indenizar, por parte da empresa prestadora do respectivo serviço publico.
Realmente, salvo situação excepcionalissima, na qual resulte comprovado que o empregado da empresa tenha concorrido para a consecução do evento, o assalto é fato decorrente de ação dolosa e criminosa de terceiro, inteiramente estranho a atividade de transporte.
Se a simples culpa exclusiva de terceiro, segundo o padrao legal estabelecido, afasta a responsabilidade civil do prestador de serviço, exonerando-o do dever de indenizar danos impostos aos passageiros, óbvio, aquele nao pode ser compelido a reparar prejuizos resultantes de assaltos ocorridos durante a execução de contrato de transporte.
Assim é porque a ação delituosa de assaltantes deve excluir, tal como o faz a simples conduta culposa de terceiro, a responsabilidade civil da empresa prestadora de serviço, pela mesmissima razao de direito e de justiça, consoante regra de boa hermeneutica, que recomenda dar a mesma solução as situações persemelhantes.
Nesta perspectiva, e de se ter em conta que a circunstancia do contrato de transporte gerar para o transportador uma obrigação de resultado, no sentido de Ihe incumbir fazer com que seu passageiro chegue incólume a seu destino, nao inibe a aplicação da excludente de responsabilidade prevista no dispositivo legal em tela, isso porque a ação criminosa de terceiro afasta a aludida obrigação de segurança, nos termos do direito hodiernamente posto. Sobremais, a referida obrigação de segurança e de ser entendida em sentido estrito, exigida em função de fatos que se ligam, por sua natureza, a execução do serviço de transporte.
Acresce observar, mantido o rumo, que o Poder Publico, ao transferir para a empresa privada a execução de serviço publico de transporte de passageiros, nao Ihe investiu do encargo proteger os utentes do referido servi~o contra a a~ao de meliantes, posta ser este indelegavel, cuidando-se de policiamento afeto a seguran~a publica cometido aos seus agentes.
A preservação da incolumidade pessoal e patrimonial dos passageiros, em caso de assalto, mesmo ocorrido durante a execução do serviço de transporte, e obrigaçao que se insere no ambito da segurança publica e, neste sentido, cabe ao Estado satisfaze-Ia, e nao o particular, na forma do artigo 144, da Constituiçao da Republica, reprise-se.
De se destacar, nesta trilha, que as empresas prestadoras de serviço publico, em particular as que se dedicam a execuçao do transporte coletivo de passageiros por meio de onibus, nada podem fazer para prevenir a ação de criminosos contra seus passageiros, posta serem elas, e os seus prepostos, tambem viti mas.
Tem se dito, na tentativa de se argumentar em contrario, que ditas empresas, a exemplo do que acontece nos aeroportos do Brasil e nos estabelecimentos bancarios das instituições que compõem o sistema financeiro nacional, poderiam usar detectores de metais e seguranças, aqueles nos terminais rodoviarios, para impedir o ingresso de pessoas armadas nos veiculos coletivos, para deterem a ação de assaltantes durante a execução do serviço de transporte.
Tais argumentos, porem, nao se posicionam convincentes, no escopo de criarem situações desfavoraveis a ação de meliantes e, assim, protegerem seus usuarios contra assaltos durante a execução dos serviços que prestam, tanto mais pela inocuidade na pratica, nem os estabelecimentos bancarios, lojas e os blindados de transportes de valores se acham infensos ademais, e de se observar que o usa de detetores de metais nos aeroportos nao se insere entre as responsabilidades das empresas aereas, incluindo-se, isto sim, entre as atribuições da Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuaria – INFRAERO -, empresa publica vinculada ao Ministerio da Aeronautica, integrante do Sistema de Aviação Civil – SAC -, que, no particular, adota procedimento e tecnica que tem em vista a proteçao da navegaçao aerea, fazendo-o com o auxilio da Policia Federal.
Por igual, a delegação concedida as empresas que executam o transporte coletivo de passageiros por onibus tambem nao inclui tal pratica, pelo que, sem previsao legal, nao Ihes é dado submeter passageiros a revista pessoal quando do ingresso nos coletivos, mesmo a titulo de oferecerem a estes proteção contra assaltos.
Releve-se, ainda, a caracteristica operacional da prestação de serviço de transporte coletivo de passageiros por onibus inviabiliza, por si só, a eventual eficacia protetiva, derivada do uso de detectores de metal nos terminais rodoviarios, em face da admissao de passageiros ao longo do trajeto.
Realmente, diverso do que acontece com o transporte aereo, cuja oferta cessa com a decolagem da aeronave, no transporte rodoviario de passageiros esta continua com a partida do coletivo, pois, mesmo estando ele em transito, permanece a oferta do serviço.
Tal singularidade operacional torna inutil a revista de passageiros nos terminais rodoviarios.
Avulta-se o tema a previsibilidade legal, pois, sem lei específica as empresas que se dedicam ao exercicio da atividade ora focada, nao podem empregar seguranças no intento de dificultarem os assaltos no interior dos seus veículos.
Admitir este emprego, sem base legal, importaria em se admitir a criação de milícias privadas, o que nao é de se conceber mesmo sob o influxo de eventual boa intenção, e nem tolerado pela ordem juridica vigente do país.
Destaco, neste sentido, que a situação das referidas empresas nao se assemelha a dos estabelecimentos bancarios, os quais nao podem funcionar no país sem a vigilancia preconizada pelo Decreto-Lei Federal n° 1.034, de 21.10.69.
Neste contexto, pois, no estrito plano da execução do serviço de transporte coletivo de passageiros, principalmente, por meio de veículos coletivos, nada podem as empresas fazerem para se resguardarem ou eliminarem dos assaltos ocorridos durante a prestação do referido serviço ou, quando menos, para minimizarem a sua ocorrencia.
Conclusão
Nao sendo o assalto produto de risco criado pelo exercício da atividade de transporte, tanto que sua ocorrencia esta disseminada pelos quatro cantos da vida em sociedade, nao podem as empresas que a ela se dedicam ser responsabilizadas dos danos derivados dessa ocorrencia delituosa, haja vista que expressa disposição legal afasta a possibilidade de se exigir delas a reparação de prejuízos derivados de causa alheia ao transporte em si.