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Lei da Ficha Limpa e a conjuntura brasileira

24 de novembro de 2014

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Rogerio-Medeiros1. Introdução
Em 1996, por iniciativa do preclaro Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram implantadas as urnas eletrônicas nas eleições brasileiras.

No aspecto formal, ou seja, segurança na captação do sufrágio, a inovadora tecnologia operou histórica revolução no sistema eleitoral brasileiro. A Lei da Ficha Limpa, versada neste artigo, revoluciona nosso sistema eleitoral no aspecto substancial, ao propiciar o afastamento temporário da vida pública de candidatos incompatibilizados com o princípio constitucional da moralidade administrativa.

Este artigo analisa a importância da denominada Lei da Ficha Limpa no contexto histórico e político do Brasil.

2. Visconde do Uruguai e a política

Nos primórdios da atividade política no Brasil, ao tempo do Império, Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, ocupou relevantes cargos em ministérios e no Poder Legislativo.

Era um homem estudioso e honrado. No seu clássico “Ensaio sobre o Direito Administrativo”, apontava muitos males inerentes à política nacional (CARVALHO, 2002, p. 44):

A distância entre governo e povo, a burocracia absolutista e ineficaz, a mania de esperar tudo do Estado, o sufocamento dos municípios, a inadequada distribuição de responsabilidade entre municípios, províncias e governo central, o empreguismo, o empenho, o clientelismo, o patronato, o predomínio dos interesses pessoais e de facções, a falta de espírito público, a falta de garantia dos direitos individuais, continuam na ordem do dia, posto que atenuados.

3. A corrupção no contexto histórico e político brasileiro
Ao longo da sua história como jovem nação, o Brasil registra inúmeros episódios de corrupção nos campos da política e da administração pública. A chaga da improbidade espraia-se pelas diversas unidades federativas e esferas de poder.

Atualmente, em pleno vigor da democracia e do amplo acesso às informações divulgadas pela imprensa e pela internet, os brasileiros indignam-se com escândalos repetidamente desvendados. Em junho de 2013, o povo foi às ruas protestar massivamente.

4. Milton Campos e Tancredo Neves, exemplos de políticos probos
Sucessivos escândalos noticiados podem conduzir à generalizada impressão de que todos os políticos e homens públicos são corruptos. Essa ilação, contudo, não é justa nem verdadeira. A história brasileira sempre registrou a atuação de líderes dedicados, probos e patriotas, a exemplo dos saudosos Milton Soares Campos e Tancredo de Almeida Neves.

Milton Campos pregava que “governar é resistir”. O estadista, deveras, tem de resistir a todas as pressões e tentações que o poder político suscita (NERY, Minas como era, 2014).

Tancredo Neves, o grande condottiere da redemocratização de 1985, era imbuído de inquebrantável espírito público. Iniciou a carreira política para servir a terra natal, São João del Rei/MG. Apresentou, como deputado estadual, emenda à Constituição mineira de 1946, da qual resultou a construção da usina hidrelétrica de Itutinga. Agiu movido pelas lembranças do passado de estudante e devorador de livros. Frequentemente suas leituras noturnas eram interrompidas pela falta de energia na cidade. E concluía:

Isso é que me levou a entrar na política e só por isto eu estou na política até hoje. Foi para tirar a minha terra das escuras, da escuridão em que ela vivia. (SILVA e DELGADO, 1985, p. 117)

O intérprete arguto concluirá que Tancredo referir-se-ia literalmente às trevas noturnas, mas também incluía na reflexão as trevas metafóricas do atraso, persistentes e difíceis de combater…

5. Ética e política na Antiguidade Clássica
Antigos filósofos gregos, como Platão e Aristóteles, já falavam da Ética, como prática da virtude: fazer o bem, não fazer o mal (GARCIA DE LIMA, 2003).

Aristóteles subordinava a ética à política (REALE, 1994, p. 405). Compreendia o homem, segundo a tradição grega dominante, unicamente como cidadão. Punha a cidade completamente acima da família e do homem individual: o indivíduo existia em função da cidade e não a cidade em função do indivíduo.

6. Ética e política no mundo contemporâneo

A questão ética é alvo de aprofundados debates no mundo contemporâneo, em diversos setores do conhecimento e das atividades humanas. Explicava o saudoso jurista, filósofo e político André Franco Montoro (1997, p. 13-14):

Quiseram construir um mundo sem ética. E a ilusão se transformou em desespero. No campo do direito, da economia, da política, da ciência e da tecnologia, as grandes expectativas de um sucesso pretensamente neutro, alheio aos valores éticos e humanos, tiveram resultado desalentador e muitas vezes trágico.

7. A Constituição de 1988: inelegibilidade e improbidade administrativa
A redação original, o artigo 14, § 9o, da Constituição Federal de 1988, dispôs:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990, p. 102-103) comentou:

Dentro de uma orientação realista, a Constituição prevê que a lei complementar estabeleça inelegibilidades destinadas a preservar “a normalidade e legitimidade das eleições”. Isso, não só proscrevendo da disputa de postos os que exercem cargos ou funções públicas, inclusive na administração indireta, mas também impedindo que o façam os detentores de poder econômico que enseje abusos. É o que se depreende do art. 14, § 9o.
De maior repercussão é a inelegibilidade em decorrência do poder econômico. Traduz o reconhecimento, que em raras legislações já se fez, de que o ocupante de certos postos em empresas privadas, como bancos, o proprietário de certos estabelecimentos, pode, tanto quanto certas autoridades públicas, usar do poder resultante dessa posição para viciar o processo político em benefício próprio ou de seus parentes mais chegados.

Foi editada a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990 (Lei de Inelegibilidade), a qual estabelece, de acordo com o artigo 14, § 9o, da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências.

Entretanto, a Emenda Constitucional de Revisão no 4, de 1994, conferiu nova redação ao artigo 14, § 9o, da Carta de 1988:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta (grifei os acréscimos).

Somente 16 anos passados, a partir de um projeto de iniciativa popular, o Congresso Nacional editou a Lei Complementar no 135, de 4 de junho de 2010, para alterar a Lei Complementar no 64.

Resumidamente, a modificação fundamental é a imposição da inelegibilidade temporária ao candidato condenado, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado do Poder Judiciário, pela prática de determinados crimes, infrações eleitorais – inclusive abuso de poder – e improbidade administrativa. Em outras palavras, para o candidato ser considerado inelegível, não mais se exige, como antes, o trânsito em julgado das decisões que lhe impuseram as sanções já referidas.

8. O Supremo Tribunal Federal e a Lei da Ficha Limpa
A constitucionalidade da Lei Complementar no 135/2010 foi corroborada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), destacando-se no acórdão:

(…) O direito político passivo (ius honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigência constitucional da razoabilidade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social, sob os enfoques da violação à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político. (…) (Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade no 29-DF, min. Luiz Fux, DJe 29/6/2012).

9. Os princípios e a hermenêutica contemporânea
O sistema jurídico, em geral, é controlado e aplicado como uma rede axiológica e hierarquizada de princípios, de normas e de valores jurídicos, cuja função é dar cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição (FREITAS, 1997, p. 49).

Surge nova materialidade constitucional e alcança o patamar supremo da Constituição. Ao mesmo passo, insere-se na órbita principal, com superioridade normativa, no que toca aos demais preceitos da Constituição. Em caso de conflito constitucional, o princípio é superior à regra. O princípio aplica-se, a regra não. Os juristas do positivismo sempre foram contundentes no menosprezo e na aversão aos princípios. As correntes antipositivistas, desse fim de século, fundaram uma Nova Hermenêutica. Retiraram os princípios — dantes designados simplesmente princípios gerais de Direito — da esfera menor dos Códigos, onde jaziam como a mais frágil, subsidiária e insignificante das peças hermenêuticas do sistema, para a região mais elevada e aberta das Constituições, cujo espaço oxigenado entraram a ocupar até se fixarem com aquela densidade normativa que os converteu em senhores supremos da juridicidade constitucional. De tal sorte que, por derradeiro, os princípios governam a Constituição e a governam nos termos absolutos que a legitimidade impõe (BONAVIDES, 1998, p. 22-29).

Segundo Canotilho, hoje a subordinação à lei e ao Direito, por parte dos juízes, reclama, de forma incontornável, a principialização” da jurisprudência. O Direito do Estado de Direito do século XIX e da primeira metade do século XX é o Direito das regras dos códigos. O Direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito leva a sério os princípios, é um Direito de princípios. O tomar a sério os princípios implica mudança profunda na metódica de concretização do Direito e, por conseguinte, na atividade jurisdicional dos juízes (Revista de Processo, 98/83-84). A existência de regras e princípios permite a descodificação, em termos de um constitucionalismo adequado (Alexy), de estrutura sistêmica, isto é, possibilita a compreensão da Constituição como sistema aberto de regras e princípios. Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como constitucional, que é necessariamente aberto (CANOTILHO, 1993, p. 168-169).

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) assumiu posição vanguardeira, ao decidir:

A norma de sobre-direito magistralmente recomenda ao Juiz, na linha da lógica razoável, que, “na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Em outras palavras, é de repudiar-se a aplicação meramente formal de normas quando elas não guardam sintonia com a realidade. (Recurso Especial no 64.124-RJ, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicação da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, Tribunal de Justiça/MG, Diário do Judiciário/MG, 16/5/1997)
O jurista, salientava Pontes de Miranda em escólio ao Código de 1939 XII/23, “há de interpretar as leis com o espírito ao nível do seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem, mesmo provável, do distante futuro”. “Para cada causa nova o juiz deve aplicar a lei, ensina Ripert (Les Forces Créatives du Droit, p. 392), considerando que ela é uma norma atual, muito embora saiba que ela muita vez tem longo passado”; “deve levar em conta o estado de coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada”, pois somente assim assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para uma evolução lenta. (trecho do voto do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, relator do Recurso Especial no 196-RS, in Revista dos Tribunais, vol. 651, janeiro de 1990, p. 170-173)

10. O princípio da moralidade administrativa
Releva enfatizar o princípio da moralidade administrativa, com fulcro no qual se editou a Lei da Ficha Limpa.

Hely Lopes Meirelles (1985, p. 82) considerava “o povo titular do direito subjetivo ao governo honesto”.

O artigo 2o, parágrafo único, da Lei Federal no 9.784/1999, determina que, nos processos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal, serão observados, entre outros, os critérios de:

(…) IV – atuação segundo padrões éticos, de probidade e boa-fé.

Também estabelece o § 2o do artigo 13 da Constituição do Estado de Minas Gerais (1989):

A moralidade e a razoabilidade dos atos do Poder Público serão apuradas, para efeito de controle e invalidação, em face dos dados objetivos de cada caso.

Para Caio Tácito (Revista de Direito Administrativo, 218/1-10), a moralidade integra a legitimidade do exercício da competência administrativa (Hauriou). Pressupõe o exame dos motivos do ato administrativo, em conexão com o vínculo legal à finalidade. O administrador não pode colocar seus poderes a serviço de interesses pessoais exclusivos e de conceitos que se discrepam de valores morais respeitáveis.

De maneira semelhante, definia Lúcia Valle Figueiredo (1995, p. 49):

O princípio da moralidade vai corresponder ao conjunto de regras de conduta da Administração, que, em determinado ordenamento jurídico, são consideradas os ‘standards’ comportamentais que a sociedade deseja e espera.

11. Conclusão

Preponderantemente no exercício da jurisdição eleitoral, os magistrados devem estar atentos à observância dos princípios e das regras constitucionais, bem como da legislação infraconstitucional. Devem também considerar o clamor social por probidade na Administração Pública (GARCIA DE LIMA, 2011).

Ao aplicar a Lei de Inelegibilidade (Lei Complementar no 64, de 1990), alterada pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar no 135, de 2010), os juízes eleitorais devem notar que o mau candidato é o mandatário corrupto em gestação. Afastá-lo das eleições para cargos políticos é – mais que um imperativo ético – um dever de cidadania.

Concluo com a sempre oportuna assertiva de Alceu Amoroso Lima (1974, introdução):

Onde falha a justiça e as leis não enquadram nem a autoridade, nem a liberdade, o resultado é o domínio dos fortes sobre os fracos e a opressão dos ricos contra os pobres.

* Este artigo resume meu ensaio publicado, na íntegra, in RIBEIRO, Patrícia Henriques; COSTA, Mônica Aragão M. F.; GUERRA, Arthur Magno e Silva. Direito eleitoral: leituras complementares. Belo Horizonte: D’Plácido, 2014. p. 357-373.

Referências bibliográficas ________________________________________________________

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