“Não podemos ficar olhando pelo retrovisor”

10 de dezembro de 2019

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Entrevista com o presidente do Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro (Rio Ônibus), Cláudio Callak

Desde outubro de 2017, o advogado e empresário Cláudio Callak preside o Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro (Rio Ônibus). Nessa entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania, ele fala sobre as perspectivas do setor para os próximos anos e demonstra empenho em deixar, realmente, o passado para trás.

Revista Justiça & Cidadania – O que fez sua gestão resgatar a credibilidade do ônibus no Rio de Janeiro?
Cláudio Callak – A primeira coisa foi procurar todos os stakeholders do setor de transportes, incluindo Secretaria de Transportes, Prefeitura, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública. Nos apresentamos e procuramos saber quais demandas poderíamos resolver a curto prazo. É um setor que emprega 40 mil pessoas, que transporta quatro milhões de passageiros por dia todos os dias, mas que também sofre um nível de perseguição muito forte. Gastasse o tempo que gasto com demandas judiciais para cuidar de transporte, estaríamos muito a frente. Conseguimos com a Procuradoria Geral do Município (PGM), por exemplo, dar baixa em importantes processos judiciais que tínhamos com a Prefeitura. Tentamos fazer o mesmo com o Ministério Público e com o Tribunal de Justiça, para não levar demandas repetitivas e se transformarem em mais processos e julgamentos.

RJC – Como foi resolvido o conflito sobre a climatização dos ônibus?
CC– Foi uma confusão gerada ainda na gestão passada da Prefeitura. Reconhecemos que em um dia de clima típico no Rio de Janeiro precisamos ter ônibus com ar condicionado, mas sobre a promessa que foi feita, é preciso dizer primeiro que esse investimento nunca constou no contrato de concessão e, segundo, que não participamos da assinatura desse acordo. Aquilo foi assinado pelo então Prefeito Eduardo Paes, pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp) e pelo Ministério Público, mas nós é que teríamos que pagar a conta. Quem conhece ônibus sabe o tempo que leva para obter crédito, preparar o ônibus e colocá-lo para rodar. Mesmo que tivéssemos assinado, seria tecnicamente impossível cumprir no prazo que eles decidiram, que era de seis meses. Para resolver a questão, fizemos, no ano passado, um acordo com a Prefeitura. Ela se comprometeu a reajustar anualmente a tarifa e nós a climatizarmos a frota em prazo realista, de 10% a cada seis meses. Assim, até setembro do ano que vem vamos estar com 100% da frota climatizada. O que a cidade quer e precisa é o ônibus com ar condicionado, não uma briga judicial.

RJC – O que foi feito para dar mais transparência à tarifa?
CC – Todos os nossos cálculos hoje são feitos pela Ernst & Young. Os cálculos são extremamente simples, mas mesmo tendo pessoal técnico para fazer, pedimos para a Ernst & Young atestar o laudo, porque é a maior empresa de auditoria e consultoria do mundo. Quando partimos para esse caminho, entendemos que haveria razoabilidade do Poder Público em entender que não é uma conta feita no papel de pão. Houve o trabalho e o custo de trazer uma big four (as quatro maiores firmas de auditoria do mundo, grupo que reúne ainda PricewatherhouseCoopers, KPMG e Deloitte) para calcular.  

RJC – Houve investimento em compliance?
CC – Começamos a procurar parceiros estratégicos que trouxessem aprendizado e transparência. Trabalhamos com a Fundação Dom Cabral, uma das dez maiores escolas de negócios do mundo, que passou aqui mais de um ano treinando todos os funcionários, nos ajudando a captar outros profissionais e trabalhando a parte comportamental, para profissionalizar a equipe. Ao mesmo tempo, contratamos um dos melhores escritórios de advocacia da América Latina em Direito empresarial para contribuir com a implantação do programa de compliance do Rio Ônibus. Importante dizer também que buscamos, para a área administrativa, profissionais com excelentes currículos, mas que não trabalhavam com transporte, o que foi exigência pessoal minha. Tudo para dar o tratamento comportamental, profissional e a transparência que o setor precisa ter. Hoje já temos 100% dos balanços das empresas e dos consórcios auditados. Vamos terminar dezembro com 80% da frota climatizada. Passamos a transmitir toda a receita, online, diretamente para a Prefeitura. Qualquer um que achar que temos uma caixa-preta, basta ir ao IplanRio e pedir nossa receita.

RJC – E na área técnica?
CC – Todos os nossos técnicos são engenheiros de transportes e os principais atores da equipe têm mestrado ou doutorado na Coppe/UFRJ. Temos boa capacidade técnica, mas não funcionamos sozinhos, minha força de trabalho técnica tem que encontrar do outro lado uma força equivalente para que possamos colocar os projetos de transporte na rua. Independente de demanda, ficamos o tempo todo produzindo projetos de transporte para a cidade, que apresentamos à Secretaria. Precisamos que a Secretaria, de seu lado, os analise para dizer se vai fazer ou não.

RJC – Teve retorno positivo em alguma dessas iniciativas?
CC – Sim. Conseguimos convencer o município a expandir o BRS (bus rapid service), o que é muito bom, porque sempre que se dá prioridade ao transporte público, ele ganha velocidade e dá velocidade ao passageiro. Além disso, se economiza com paradas, combustível e uma série de coisas. Nossa intenção hoje é buscar a redução da tarifa, mas para isso, como a fórmula paramétrica é enxuta, precisamos ter criatividade para achar onde está a economia possível. Não tem sentido aumentar o custo do usuário, o sentido agora é ter liberdade para trabalhar, racionalizar o sistema, economizar custos e tentar fazer com que o sistema sobreviva. 

RJC – O Rio Ônibus pensa em utilizar algum método extrajudicial para evitar que demandas cheguem ao Judiciário?
CC – Na área trabalhista, acabamos de montar algo nesse sentido junto a outra parte, o sindicato dos trabalhadores. Fomos à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que é especializada nisso, para montar um núcleo de mediação intersindical. Tudo sem cobrança alguma para o rodoviário, porque hoje ele vai ao Judiciário, entope a Justiça do Trabalho de processos e, no final, o advogado ainda cobra 30% ou 40% dele. Esse núcleo será 100% gratuito para os rodoviários, com os custos divididos entre os sindicatos. Já está tudo montado, aguardando apenas a superação dos entraves burocráticos. A tendência é que isso vai aliviar muito a Justiça do Trabalho, porque chegamos a ter 40 mil rodoviários, com uma rotatividade grande, o que gera muita demanda trabalhista.

RJC – Foi equacionada a questão das gratuidades?
CC – Ao legislar sobre transporte público, a Constituição dá autonomia aos municípios e estados para atribuir gratuidades, mas preconiza que não haverá gratuidade sem fonte de custeio. Cada vez que uma autoridade pública cria uma gratuidade, quer seja a Câmara Municipal ou a Prefeitura, precisa criar a respectiva fonte de custeio, o que não aconteceu nos últimos anos na criação de várias gratuidades. Aproximadamente 40% de quem anda no sistema hoje no Rio de Janeiro o faz por meio de gratuidades, o que acaba onerando quem paga a passagem. (…) Grande parte dessas gratuidades é fraudulenta, o que já provamos em vários processos administrativos. A tarifa linear colada no adesivo no para-brisa é de R$ 4,05, mas você só paga esse valor porque ao seu lado tem alguém que, muitas vezes, não tem direito, mas está andando de graça. Isso onera a passagem em 40%.

RJC – A Prefeitura do Rio não subsidia as gratuidades?
CC – Temos uma situação sui generis, acho que é a única cidade de grande porte do País em que não há subsídio para o transporte público. Não recebemos nenhum subsídio para as gratuidades e somos o único modal que tem que reinvestir no seu equipamento. Para os trens, barcas, VLT e metrô o Estado compra e cabe ao empresário ser apenas o operador, fazer aquilo que sabe fazer. Em nosso caso não, o sistema de transportes por ônibus no Município do Rio de Janeiro tem que comprar sua própria frota, e essa compra da frota faz parte do cálculo da tarifa.

RJC – Como está a saúde financeira das empresas?
CC – Em colapso. O contrato de concessão começou com 49 empresas e hoje nós temos 14 empresas a menos. A Zona Oeste é a região mais impactada, por conta do problema de segurança pública, uma vez que é amplamente dominada pela milícia. Temos motoristas saindo, empresas fechando, donos de empresas sendo ameaçados. Na Zona Sul, mesmo sem a milícia, já faliram três empresas em um universo de dez, o que se deve ao contrato de concessão mal feito, às tarifas politicamente suspensas e a esse percentual de 40% de gratuidades. Nenhum negócio resiste. Você pode montar o melhor restaurante do mundo, se 40% das pessoas que almoçarem lá não pagarem, você vai quebrar. Não se trata de negar direito à gratuidade, mas à fraude que é cometida sobre as gratuidades. Sempre lembrando que as mesmas não têm fonte de custeio e não estavam previstas no edital, nem no contrato de concessão, da forma como estão hoje. Mudou a regra ao longo do caminho e a fórmula paramétrica não acompanhou. 

RJC – O possível congelamento da tarifa afetaria ainda mais essa saúde financeira?
CC – As empresas no Rio vivem totalmente da tarifa, que é calculada por meio de uma fórmula paramétrica simples, com índices públicos e definidos por instituições idôneas, como a FGV e o IBGE. Qualquer pessoa pode calcular a tarifa dos ônibus do Rio, basta querer. O contrato de concessão estabelece que haja reajuste tarifário anualmente justamente para manter o equilíbrio financeiro das empresas e a saúde do sistema. Assim, é possível até mesmo que o valor pago pelo passageiro diminua, caso a inflação seja negativa (deflação). O problema é que, com o acréscimo de gratuidades não previstas no contrato de concessão e sem fonte de custeio indicada, a conta não fecha.

RJC – O modelo de concessão precisa ser revisto de que forma?
CC – Foi um erro à época da assinatura da atual concessão, em 2010, a sociedade e o Ministério Público não terem participado. Sou partidário que todo mundo sente à mesa, MP e Defensoria Pública em nome dos munícipes, associações de moradores, Prefeitura, todo mundo mesmo, para reescrever o contrato de concessão. As coisas evoluíram, a tecnologia do ônibus evoluiu, nossos dados hoje são transmitidos online. A concessão também precisa evoluir. Temos que lembrar que, desde 2010, houve inúmeras mudanças na cidade que impactaram o setor de transporte por ônibus. Não havia VLT, corredores do BRT ou metrô até a Barra, por exemplo, bem como as vans ilegais tomando a Zona Oeste à revelia das autoridades e o transporte por aplicativos que não pagam impostos. São desafios que surgiram desde então, mas que não foram enfrentados pelo contrato, que continua o mesmo.

RJC – Essa revisão já está agendada?
CC – O Prefeito Marcelo Crivella editou decreto criando grupo de trabalho para refazer os contratos de concessão ou, se possível, consertá-los. Esse grupo de trabalho ainda não começou, mas as pessoas já estão nomeadas. Fazemos parte junto com a Secretaria de Transportes, a PGM, a Controladoria-Geral do Município e o Tribunal de Contas do Município. Vamos todos sentar à mesa, pegar item por item, e tirar os remendos para repactuar a maneira como é calculada a tarifa. Se a sociedade tem a percepção de que a tarifa não é transparente, estamos aqui para trazer transparência ao setor. (…) Não podemos ficar olhando pelo retrovisor. Precisamos pensar verdadeiramente na população e abrir um canal de interlocução com o intuito de resolver e não de judicializar os problemas.

RJC – A Justiça também precisa participar desse debate? O senhor acha que falta conhecimento das especificidades do setor a quem decide?
CC – Sem dúvida nenhuma. Nesse sentido, fomos convidados para participar no, mês passado, de um seminário organizado pela OAB sobre segurança jurídica nos contratos de concessão, no qual estavam representados todos os modais do Rio de Janeiro, além de membros do Ministério Público, juízes e desembargadores. Estamos organizando novos seminários. No volume e na generalidade de coisas que têm que julgar, em um país com 80 milhões de processos judiciais, fica muito difícil que o magistrado tenha profundidade em todos os assuntos.

RJC – Quais são as perspectivas para 2020?
CC – Queria ser um pouco mais otimista, mas se não buscarmos uma solução em conjunto, se continuarem tentando resolver todos os problemas com processos na Justiça, o sistema de transportes vai parar no ano que vem. Não tenho dúvida nenhuma, há tempos a gente vem dizendo isso, mas agora está acontecendo. Ninguém fecha uma empresa de 50 anos e perde todo o seu patrimônio só para provocar um prefeito. Ninguém fecha 14 empresas apenas para ameaçar a população, até porque são empresas de donos diferentes. Das empresas que sobraram, temos mais duas que estão em recuperação judicial e outras tantas que estão atrasando salários mês após mês. (…) O que faremos no dia seguinte? Como é que quatro milhões de pessoas vão se deslocar pela cidade? De Uber?