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Nós, os ônibus e nossas desesperadoras circunstâncias

5 de maio de 2003

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Vamos para o trabalho nesta [ex] maravilhosa cidade do Rio de Janeiro e tomamos nosso ônibus. Ao nosso lado sentam usuários descontentes com o preço da passagem e angustiados pelo incerto destino da viagem. Ninguém sabe se o trajeto será interrompido por um assalto ou se o ônibus será incendiado, numa demonstração de força do crime organizado.

Ao lado dos que pagam sentam os que não pagam. Aqueles sabem que pagam mais por causa destes que viajam de graça. Enquanto alguns catam as moedas, do fundo do corroído bolso, para pagar a tarifa, quase metade do ônibus ingressa pela porta da frente sem nada pagar. Ha duas espécies de cidadãos que usam o ônibus: os que entram por trás da roleta e os que sobem pela frente. Isto é, tributados e os isentos. Ambos são cidadãos brasileiros. Em termos de ônibus, são incluídos ou excluídos. Incluídos quem não paga. Excluídos, os demais.

Esta é mais uma face das contradições da sociedade brasileira que se repete todos os dias num sistema que transporta diariamente mais de cinqüenta milhões de pessoas, parte discriminada, parte beneficiada. A casta dos beneficiários, por sua vez, é cada vez maior a medida que cresce a criatividade política na produção de leis de gratuidades. Agora mesmo, o Congresso está examinando a PEC n. 6, de 2.003, através da qual se pretende agregar um parágrafo ao art. 208 da Constituição para instituir a gratuidade aos estudantes da rede pública de ensino fundamental e médio. Já não são apenas leis municipais: o que se quer, agora, é pôr todas as escolas dentro dos ônibus. De graça. Por via da Constituição.

De fora do ônibus, reside o empresário, desesperado e impotente diante do legislador irresponsável. A tarifa, maior podendo ser menor, gera o desvio de passageiros para a informalidade. As vans que cortam as ruas do Rio de Janeiro são filhas anônimas das gratuidades dos ônibus. A medida que o transporte se torna mais caro, produz, como insumo natural, o camelo do transporte, que não paga imposto algum e produz um serviço pior e inseguro, mas mais barato, flexível e rendoso porque todos pagam. A Constitui<;:ao e leis de gratuidade não andam nas vans.

Esses benefícios não são apenas um exemplo de brutal violação do princípio da igualdade de tratamento dos usuários perante o serviço público. Trata-se, na verdade, de dois confiscos: no primeiro, confisca-se o patrimônio do transportado; no segundo, confisca-se o patrimônio do transportador. Uma espécie de desapropriação sem lei. Sem observância do due process oflaw.

O fim de tudo isso será o caos urbano e a redução da liberdade de ir e vir do cidadão.

A Constituição é clara: a assistência social, que é parte da seguridade social, deve ser financiada por toda a sociedade, começando com o orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e terminando pelas receitas de concursos de prognósticos [art. 195]. Nessa relação não se incluem os que pagam para que outros viajem de graça: os usuários excluídos e os donos do ônibus.

A par disso, diante da impotência ou inércia do poder constituído, começa a instalar-se um estado de anomia na cidade antes maravilhosa. Não se trata, agora, de seqüestros de empresários e de assaltos aos usuários. Ingressamos, com o incêndio criminoso de ônibus, na era do terrorismo urbano. O que distingue o dano multitudinário do terrorismo é o propósito. Em ambos esta presente a força da ilegalidade e a violência contra pessoas ou propriedades. Mas enquanto a ação da multidão é um produto mais da emoção que da razão, no terrorismo e a razão pura que comanda a ação. Na ação multitudinária, os torcedores que protestam quebrando as vidraças do ônibus que transporta os jogadores mal sucedidos, não há propósito de intimidar ou coagir alguém a algum objetivo. Há o protesto. No terrorismo a violência visa, sempre, a algum objetivo de intimidação ou de coação sobre a autoridade, sobre a população civil ou sobre algum segmento da sociedade mas para obter alguma vantagem. O terrorismo nunca é gratuito: ele sempre quer alguma coisa. O objetivo pode ser político, econômico ou social. Não existe ato de terrorismo de puro protesto.

Há, portanto, um propósito atrás do incêndio de ônibus.

Os atentados, outrossim, revelan10utros aspectos da estratégia terrorista: a demonstração de poder através do ato de força; a prova de que o terror é um estado paralelo incontrolável dentro do Estado; a desmoralização da autoridade pela demonstração da impotência dos órgãos de segurança; a intimidação dos usuários para forçá-los a usar meios mais “seguros” de transporte, onde tais fatos não ocorrem.

Para reparar nossos danos, não contamos com o prestigio do transporte aéreo e das companhias de seguro que, logo apos a tragédia americana do World Trade Center, obtiveram do Congresso brasileiro uma lei que autoriza a União a assumir responsabilidades civis perante terceiros nos casos de terrorismo contra aero naves brasileiras no Pais ou no Exterior [ Lei 10.605, de 18 de dezembro de 2.002] e outra que socorre o combalido transporte aéreo com favores fiscais [Lei n. 10.560, de 13 de novembro de 2.002].

Estamos, pois, entre o mar e o rochedo, ou entre Bush e Sadamm, como queiram.

Só nos falta termos de pagar proteção ao próprio crime organizado. Ou pagamos ou somos queimados.

Temos de enfrentar essa situação desonerando a tarifa. E essa luta começa com a decretação da inconstitucionalidade de todas as leis de gratuidade que não indicam as fomes constitucionais de seu financiamento. Em vez de fome zero, se formos derrotados, vemos ter o programa transporte zero.

Não é demais dizer que ninguém é contra a adoção de medidas de assistência social, no campo da saúde, da educação, do transporte e dos direitos humanos em geral. O que não se pode é institucionalizar uma política de Robin Hood entre os usuários do transporte coletivo e completar o saque com desvios de orçamento das transportadoras.

O transporte é o único setor da atividade econômica em que o Estado intervém para produzir desigualdades e o faz com a irresponsabilidade dos políticos, a cumplicidade dos poderes concedentes e a indiferença da mídia, vale dizer, da própria sociedade.

Não contamos sequer com o Ministério Público que, equivocadamente, em todo o País, esta mais preocupado em desmontar o sistema atual de ônibus através de ações civis para impedir prorrogações de contratos das permissões e concessões em vigor, a maioria por prazo indeterminado, e produzir de licitações generalizadas. É tudo o que os possuidores de recursos sem origem querem. As licitações serão portas aberras para o dinheiro mal havido tomar conta de vez do transporte coletivo.

Resta-nos o Judiciário como tabua de salvação. Até agora, porém, salvo exceções, não logramos atingi-lo com a nossa mensagem de socorro. Nas poucas vezes em que batemos as suas portas, não conseguimos levar, com clareza, o recado do nosso desespero e o sentido da nossa justiça. Não conseguimos dizer ao judiciário, até hoje; que o sistema de ônibus não é diferente da padaria da esquina. Se o padeiro fornecer pão de graça para alguns, distribuindo o custo entre os compradores dos Paes e ele próprio, em breve o pão custará muito caro para os pagantes e a padaria estará quebrada por subsidiar a farinha. a sistema de ônibus irá falir pela mesma razão com que falira o padeiro que tiver de fornecer pão de graça para metade de seus clientes e dividir, ele mesmo, com a metade que paga, o custo dos Paes.

Mesmo a gratuidade dos idosos, estabelecida na Constituição, como medida de assistência social que é, está subordinada as regras de financiamento da seguridade social do art. 195 da Carta, como resulta da leitura do texto da gratuidade do idoso [CF, art. 230, § 2°] no contexto da constituição [CF, art. 195 e 203, I]. Mas ninguém fez a leitura sistêmica da Carta. Quem aplica o art. 230, § 2°, passa voando pelo art. 195. Faz que não vê.

Nós, na verdade, usuários e empresários, vítimas da irresponsabilidade de legisladores irresponsáveis, estamos pagando a conta do clientelismo, representada pelas leis de exceção e não soubemos dizer aos tribunais que essa violência legal ameaça o pouco que nos resta de liberdade de ir e vir, a liberdade de ir e vir da população que trabalha, que não pede nas esquinas, que não assalta, que não mata, que não incendeia ônibus nem saqueia supermercados.

Assim como não tivemos força para dizer aos legisladores um basta a demagogia fácil, não tivemos habilidade para convencer o judiciário que só ele, nesta altura, tem legitimidade para dizer “não” e terminar com esse festival de desigualdades em que se transformou o principal insumo da liberdade do cidadão urbano, o serviço público essencial que assegura a mais de cinqüenta milhões de brasileiros, por dia, o pleno o exercício da cidadania, o direito de ir e vir, o direito do trabalho, o direito da educação, o direito da saúde e o direito do lazer.

Resumindo: administrar empresas com esse nível de assistencialismo, nem clima de terror, de an1ea<;as, de insegurança e de concorrência com a informalidade, começa a ser um exercício de sobrevivência tão difícil como viver em Bagda diante de bombardeios vindos de nuvens desconhecidas e muitas vezes, ate mesmo de fogo amigo. Lutamos contra o poder da força e não temos a nosso favor senão a frágil força do poder.

Assim nos despedimos nós, os ônibus e nossas desesperadoras circunstâncias.