Edição

“Nosso Senhor Dom Quixote””

31 de dezembro de 2005

Bernardo Cabral Presidente de Honra do Conselho Editorial

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“Cervantes, Miguel de Cervantes (1547–1616) – imperecível monumento da Hispanidade – um dia voltara a Madri com as feridas da batalha de Lepanto (onde acabou por perder os movimentos da mão esquerda) e as angústias de um mundo tragediado.  Ele mesmo, no seu universalmente conhecido “Dom Quixote de La Mancha”, tentara diluir a dúvida pertinaz de Sancho Pança, o amigo fiel, que encontra um elmo e acreditava ser do rei mouro, Mambrino.  E a versão clarividente de Dom Quixote é que o curioso objeto não era o elmo do monarca, mas a bacia de um fígaro.  A transcendente intervenção sardônica de Dom Quixote visava tão somente reduzir a uma dimensão exata a figura de um potentado efêmero, tão fugaz como as orgias do Paço.

Por outro lado, o seu debate contra os moinhos de vento significou a sua insurreição contra aquilo que, àquela altura, era considerado moderna tecnologia pelos pobres camponeses e, portanto, além da competência desleal, uma forma de opressão contra os seus pequenos recursos de produção.

Não foi sem uma longa meditação que San Tiago Dantas se debruçou no seu magistral ensaio sobre a obra de Cervantes, como também Francisco Campos – conhecido como o jurista autoritário Chico Ciência – a ela dedicou um trabalho de rara sensibilidade.

São essas e tantas outras razões que levaram esse grande brasileiro Orpheu Salles – espécie de Quixote redivivo – a idealizar, criar e dar vida à Confraria Dom Quixote e à Revista Justiça e Cidadania.

Com que finalidade?  Qual o objetivo maior?  Atingir cinco itens: ética, moralidade, dignidade, justiça e direitos da cidadania.

Observem os que me ouvem o texto do convite para esta solenidade: “a outorga dos troféus Dom Quixote de La Mancha e Sancho Pança às personalidades que se destacaram na defesa desses postulados”.

Essa é a razão da cúpula do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, através dos eminentes desembargadores federais Frederico José Leite Gueiros e Paulo Freitas Barata, respectivamente Presidente do Tribunal e Diretor-Geral do Centro Cultural Justiça Federal – meus velhos e queridos Amigos – se terem juntado à Confraria Dom Quixote, da qual tenho a honra de ser seu Chanceler.

E o fizeram num instante em que o País passa por turbulências políticas, o que indica a necessidade de ser construída uma ponte de harmonia, através do “rio” de certa desunião, de determinados desencontros, uma vez que a situação emergente não mais permite o fanatismo sectário ou as provocações estéreis ou a prepotência arbitrária.

O momento – permitam-me que a Confraria faça este alerta, a título de colaboração – é o da crítica construtiva, da participação sem adesismo condenável, da contribuição não só em criatividade, mas em solidariedade, a fim de ajudar o Brasil a não cair no poço escuro da apatia, do medo, do desânimo e do descrédito.

A Nação precisa continuar empenhada em reencontrar os caminhos de sua grandeza.  E para isso se faz necessário que nos voltemos todos para a sua reconstrução política, fincando raízes no subsolo da nossa nacionalidade, alcançando a sua estrutura econômica e política, pois um país só se mantém erguido nos braços da soberania de seu povo.  E soberania não tem preço, por mais alto que seja o valor que por ela pretendam oferecer.

É evidente que Cervantes – sempre iluminado na sua genialidade – ao percorrer hoje o século XXI, mostraria a todos nós que é preciso ter em mente de que a essência de uma civilização moderna, numa sociedade moderna, nada mais é do que a existência de pessoas livres, com mentes livres, uma vez que, para se efetuar a desejada mobilização da consciência político-social de um povo, não basta apelar para o seu patriotismo ou então para o seu interesse.  Mas, sim – antes de mais nada – formular um ideário de combate em que ele possa acreditar e, a partir daí, convocá-lo para que interprete, na realidade, por seus próprios meios, aquilo em que crê.

Dom Quixote foi tudo isso.  Combateu a corrupção, a miséria, apostou na moralidade e na ética.  Demonstrava, às escâncaras, de que sociedade sem idéias de impulsão nem capacidade de ação e opção é sociedade letárgica, mais vencida do que vencedora, já que a primeira condição de vitória de uma sociedade é a responsabilidade e esta se mede pela dignidade tanto das idéias como das ações.

Essa a razão pela qual, quase quatro séculos decorridos de sua publicação, merece o Dom Quixote as palavras proféticas do escritor argentino Jorge Luiz Borges: “poderiam perder-se todos os exemplares do Quixote, em castelhano e nas traduções; poderiam perder-se todos, mas a figura de Dom Quixote já é parte da memória da humanidade”.

Ao me acercar do final desta saudação, ainda trago na memória o que me lembrava, amiúde, o meu saudoso Amigo Clidenor de Freitas, médico de profissão e um dos maiores especialistas que conheci da obra de Cervantes e que guardava na sua Biblioteca, na cidade de Teresina, Piauí, quase todas as edições, à exceção de uma ou outra.

Dizia ele, sempre enfático: razão tinham Miguel de Unamuno e Rubén Dario quando cunharam a expressão:  Nosso Senhor Dom Quixote.

Volto, pois, as minhas palavras iniciais: ética, moralidade, dignidade, justiça e direitos da cidade.

Com elas, confirmo que os senhores agraciados dispõem de todos os predicados para merecer essa significativa honraria.

Eu vos saúdo.