O fenômeno global da desjudicialização, o PL n° 6.204/2019 e a Agenda 2030/ONU-ODS

4 de janeiro de 2021

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Está completando um ano a tramitação de um dos mais importantes projetos de lei que o Congresso Nacional já recebeu nos últimos tempos – o PL nº 6.204/19 – de autoria da Senadora Soraya Thronicke, que dispõe sobre a desjudicialização das execuções civis fundadas em títulos extrajudiciais e cumprimento de sentenças condenatórias de quantia certa.

Dentre os efeitos negativos trazidos pela pandemia de covid-19 está a paralização dos trabalhos regulares do Legislativo. Alguns projetos estavam (e estão) a merecer atenção especial dos parlamentares, diante das matérias versadas com grande potencial voltado à minimização de problemas de ordem jurídica, social, política e econômica a curto e médio prazos – um deles é o PL nº 6.204/2019.

O PL propõe reduzir o número de demandas executivas civis em curso (mais de 13 milhões) com implicações na alocação de algumas das atividades prestadas por magistrados para os tabeliães de protesto (agentes de execução) ou outros serventuários extrajudiciais que exerçam essa e outras atribuições em caráter cumulativo. Ao reduzir demandas executivas, desafoga o Judiciário e passa a conferir aos juízes mais tempo para destinarem suas atividades à pratica de atos efetivamente jurisdicionais (solucionando pretensões resistidas em demandas de conhecimento, muitas delas de urgência).

O PL prevê um sistema de comunicação permanente entre o agente de execução, o juízo relacionado e o procedimento que conduz. As partes ou o agente de execução podem requerer atuação do Estado-juiz mediante “consultas” ou “suscitações” (postulações diversas) sobre questões relacionadas aos títulos, ao procedimentos ou atos que possam causar prejuízos às partes (art. 21); medidas de coerção deverão ser requeridas ao juiz (art. 20). Aliás, comprovou-se em países que utilizam essa técnica que a atuação do juiz não é elemento de retardo procedimental, por tratar-se de garantia processual, desde que manejados pelas partes em observância ao dever de lealdade processual; caso contrário, a prática de ato protelatório haverá de ser coibida pelo magistrado por litigância de má-fé.

Haverá impacto na redução de despesas para os cofres públicos (mais de R$ 65 bilhões) e o aumento na arrecadação, tendo em vista que os emolumentos percebidos pelas serventias extrajudiciais são repassados em percentuais para os estados da Federação a título de “fundos de reaparelhamento”, beneficiando-se não apenas o Poder Judiciário, mas, dependendo da lei local, também o Ministério Público, as Defensorias Públicas, etc.

Está garantido aos hipossuficientes (credor e devedor) o acesso gratuito ao procedimento executivo extrajudicial (art. 5º), enquanto os emolumentos (iniciais e finais) serão fixados pelos tribunais locais em observância às diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (art. 28).

O PL não traz consigo qualquer mácula de inconstitucionalidade. Não se sustentam entendimentos em sentido contrário, tais como “violação da reserva de jurisdição, princípios do juiz natural e inafastabilidade, indeclinabilidade e não delegação das atividades jurisdicionais estatais”; ouve-se também vozes contrárias às práticas dos atos executórios pelos tabeliães de protesto, com indicação dos advogados para realizarem as tarefas de agentes de execução.

Sobre essas “resistências” algumas considerações havemos de fazer, vejamos: A) Há muito encontra-se superado o que no passado denominou-se de “reserva de jurisdição” – flexibilizaram-se os subprincípios do “juiz natural” e da “inafastabilidade da jurisdição estatal” (vg. Supremo Tribunal Federal, SE 5206-8/246 – constitucionalidade da Lei da Arbitragem). B) É ingênuo professar que os advogados deveriam absorver as atribuições de agentes de execução; ledo engano, pois em países do continente europeu que assimilaram a técnica da execução desjudicializada total ou parcial (Constituição Europeia, Recomendação 17/2003), os advogados prestam concurso público para exercerem as funções de “agente executivo” ou, tratando-se de sistema híbrido, são funcionários que, em linhas gerais, integram a estrutura do Executivo ou do Judiciário, destacados para o exercício dessa atribuição, com maior ou menor poder e autonomia, dependendo das configurações normativas delineadas para cada um deles, tendo como ponto comum o impedimento ou a limitação para o exercício da advocacia. Impensável o exercício cabal da advocacia cumulada às atribuições de agente de execução diante de manifesta incompatibilidade, em salvaguarda da imparcialidade e independência que devem nortear os agentes de execução; C) No que concerne à “delegação” de atribuições até então prestadas pelo Estado-juiz aos serventuários extrajudiciais (Constituição Federal, art. 236), trata-se de realidade há muito exitosa (v.g. retificação do registro imobiliário; inventário, da separação e do divórcio; retificação de registro civil; usucapião, etc.).

Convém salientar que no Código de Processo Civil português e no Código das Execuções Civis francês, os agentes da execução atuam com autonomia e iniciativa, mas ficam sujeitos ao controle judiciário.

Há três obras magnas que muito nos servem, entre outras: o autor é Richard Susskind e a obra é Tomorrow’s Lawyers; Online Courts and the future of Justice; e, com seu filho Daniel Susskind, The Future of the Professions. Os estudos são abrangentes, com riqueza extraordinária de dados. A obra Tomorrow’s Lawyers foi reputada pela American Bar Association como sendo disparadamente a melhor obra do mundo. Como nortes principais a serem perseguidos estão o enquadramento ao que se entende a respeito das modificações do mundo moderno; a primeira realidade gravita em torno a divisão do trabalho com a afetação de tarefas a outros que se colocaram como satélites do agente principal; de outra parte, propugna-se que tem de haver um esforço imenso para se obter eficiência, utilizando-se das expressões em inglês more for less (obter mais por menos = eficiência).

Para diminuir o acúmulo de processos que impedem a finalização da prestação jurisdicional é necessário que se tenha mais pessoas envolvidas na resolução dos conflitos em prol da rapidez com eficiência/satisfação de pretensões e com menos custos para o Estado. A solução propugnada pelo PL segue essa linha e se coaduna com uma das mais importantes diretrizes constantes dessas obras mencionadas: a divisão do trabalho, alocando-se a cada um dos integrantes desse sistema dividido em tarefas que digam respeito às suas competências.

A previsão de protesto antecedente dos títulos é media salutar já comprovada na prática cartorial, por ser vocacionado à imediatidade da satisfação do crédito perseguido, tratando-se de indiscutível fator inibidor da recalcitrância do devedor em efetuar o devido pagamento.

O advogado é indispensável em todo o processo extrajudicial e perceberá honorários nos moldes do Código de Processo Civil (art. 2º), enquanto o procedimento é conduzido pelo agente da execução, ninguém melhor do que os tabeliães de protesto, que são, necessariamente, bacharéis em Direito que ingressam na atividade notarial mediante rigoroso e disputadíssimo concurso público de provas e títulos (Constituição Federal, art. 236, caput e § 3º). São ainda os notários e registradores diretamente responsáveis pela prática de seus atos e de seus prepostos, na esfera administrativa, civil e criminal, o que reforça a garantia e exigência da prestação de um serviço público transparente, qualificado, célere e efetivo, somando-se ao fato de que são todos controlados e orientados permanentemente pelos tribunais de justiça locais e pelo Conselho Nacional de Justiça; possuem ainda excelente infraestrutura (imobiliária, tecnológica e pessoal) à serviço dos consumidores de suas atividades cartoriais, via de regra prestadas com selo de excelência, por todos reconhecida.

O PL 6.204/19 traz soluções para minimizar a crise da jurisdição estatal em estreita ligação com o movimento mundial capitaneado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em observância às definições da Agenda 2030-ODS encampada pelo Judiciário por meio da Meta 9; vem a lume em momento oportuno, dotado de objetivos claros e bem definidos, de maneira a proporcionar aos jurisdicionados um eficiente mecanismo de realização de pretensões voltadas à satisfação segura e rápida de créditos, de modo mais econômico e simplificado. Proposta excelente e como toda obra humana, pode ainda melhorar, com o aporte de boas e bem intencionadas sugestões.

Notas__________________

1 Oxford University Press, 2017, 2ª ed.

2 Oxford University Press, 2019.