O papel das mulheres nos espaços de poder da Defensoria Pública

12 de março de 2024

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Mais de 60 anos depois de Habermas escrever “Mudança Estrutural da Esfera Pública (MEEP)” não se podedeixar de ficar impressionado com a cegueira da obra para as dimensões de gênero da esfera pública. A exclusão das mulheres da esfera pública burguesa não foi acidental ou contingente, mas constitutiva desse espaço ou, melhor, “a exclusão das mulheres teve um significado estruturante”, como reconheceu Habermas, e isso gera impactos ainda hoje. Ao discutir de maneira crítica a esfera pública habermasiana, Nancy Fraser, trazendo à baila a critica feminista, afirma, entre outros pontos, que a igualdade social é uma condição necessária para a democracia política. A autora aponta que a história da esfera pública oficial, com seu modo hegemônico de dominação, foi acompanhada pela história alternativa de públicos concorrentes chamados de “contra-públicos”, aqueles formados por aqueles em situação de poder desfavorável ou subordinada.

Se tomamos os espaços de poder, como esse espaço da esfera pública, fica claro que por mais histórico que esse debate possa parecer, ele permanece atual. A presença feminina nos espaços de poder é um tema de relevo especialmente quando se trata de instituições públicas, e a Defensoria Pública, com sua missão de promover acesso à justiça e garantir direitos fundamentais, não foge desta discussão.

A análise da história da Defensoria Pública leva à conclusão de que, como em muitas outras áreas, a presença feminina sempre foi relegada ao papel secundário. O retrato do poder institucional era essencialmente branco heteronormativo. A exclusão política e jurídica das mulheres, a violência doméstica, a divisão de trabalho, a discriminação social e cultural, são manifestações de poder social que possuem lógicas próprias, ainda que cruzadas e que também atingem a instituição. 

No entanto, nos últimos anos, com o avanço dos movimentos de igualdade de gênero e a crescente conscientização sobre a importância da representação feminina, tem havido mudança significativa neste cenário. Cada vez mais mulheres têm ocupado cargos de destaque e liderança, como defensoras públicas-gerais, presidentas de associações de classe e coordenadoras de diversas áreas de atuação. 

A presença feminina nos espaços destaca a valorização do talento e competência das mulheres, bem como o reconhecimento de sua capacidade de liderança, além de trazer consigo uma abordagem mais inclusiva e sensível às questões de gênero. A expertise e vivência de cada mulher é fundamental para a criação de políticas mais eficazes e para a garantia de igualdade de direitos, promoção de políticas públicas voltadas para a proteção das mulheres vítimas de violência doméstica, bem como no combate à discriminação de gênero em outras esferas sociais. 

No âmbito político-institucional da Defensoria Pública no Brasil, o processo de aumento gradativo da participação política das mulheres defensoras públicas nos espaços de decisão institucional é um caminho que está sendo incentivado e apoiado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep). A diretoria da Anadep é formada em sua maioria por mulheres. Há 3 anos a instituição possui três mulheres nos principais cargos de liderança: a presidência e duas vices presidências. Além disso, das 27 associações estaduais, 13 são presididas por mulheres.

É fundamental garantir que haja mais igualdade de oportunidades para as mulheres em todas as frentes de trabalho, em especial aos cargos de gestão, para que sua perspectiva e experiência contribuam para a mudança da cultura institucional. 

A ideia muitas vezes propagada de que as mulheres não querem ingressar na política ou não almejam assumir cargos públicos de chefia dentro das instituições que fazem parte é falsa. Contudo, é importante diagnosticar porque a Defensoria Pública Estadual no Brasil apesar de possuir cerca de 6.700 defensoras e defensores públicos na ativa nas 27 unidades, dos quais 52% são mulheres, tem, tão somente, 8 defensoras públicas gerais ocupando a direção institucional em apenas 8 unidades da federação (Acre, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Piauí, Paraíba e Rio de Janeiro). 

Algumas respostas parecem mais óbvias. Os dados refletem o fenômeno da masculinização do comando e feminização da subalternidade. Esse fenômeno demonstra que, mesmo frente aos espaços conquistados pelas mulheres na sociedade, o poder de comando permanece fiel à lógica da cultura patriarcal. O baixo número da participação das mulheres está relacionado a um número negativo que o Brasil ocupa, qual seja, o 5o lugar no ranking da violência, e aqui a violência precisa ser entendida também por práticas cotidianas do universo patriarcal como o  “mansplaining” ou “manterrupting”.

Além disso, o caminho a ser percorrido pelas mulheres para chegar em cargos de gestão é muito mais árduo. As mulheres precisam do apoio de outras mulheres. A dupla jornada de trabalho e a falta de políticas de equilíbrio entre vida pessoal e profissional podem limitar a participação feminina nos altos cargos hierárquicos. Para isso, é necessário criar políticas e práticas que promovam a igualdade de oportunidades, garantindo a progressão profissional das mulheres e abordando as barreiras que podem impedi-las de atingir seu pleno potencial.

Mas há outro desafio que precisa ser enfrentado: reconhecer que, quando falamos de algum crescimento da presença de mulheres no comando, ainda assim não estamos falando de todas as mulheres. Afinal, embora as mulheres brancas tenham conquistado espaço em algumas áreas específicas, ainda é perceptível que a discussão de intersecção, raça e gênero está longe de ser alcançada.

É necessário ampliar a representatividade feminina de todas as mulheres em todas as áreas de atuação da Defensoria Pública. Na luta por igualdade, como assevera Nancy Fraser, nem todos os feminismos são iguais. 

A lógica de opressão social também se repete na instituição. As mulheres negras ainda enfrentam maiores desafios que as mulheres brancas em sua ascensão dentro da Defensoria Pública. Por isso, promover a diversidade de gênero e raça dentro do espaço público organizacional da Defensoria Pública é urgente. Não se trata apenas de uma questão de justiça social, é também uma necessidade para a efetividade da mudança cultural e social mais ampla, que implica em crescimento qualitativo de uma instituição que pretende assumir posição cada vez mais democrática.

O dia internacional das mulheres é momento de ampliar essas reflexões em todas as partes. O machismo institucional existe, todavia ele é sub-reptício e atinge de diferentes formas, as diferentes mulheres. Muitas vezes, está escondido em diversas condutas praticadas que são vistas com naturalidade no ambiente. A mudança só ocorrerá quando este olhar crítico for trazido para a formação profissional. A luta pela equidade de gênero nos espaços de comendo precisa do envolvimento de todas e de todos, porque a responsabilidade por construir uma sociedade justa e equilibrada é coletiva.

Notas___________________

1 Habermas, J. (1992). “Further reflections on the public sphere” em Habermas and the public sphere de Craig Calhoun, p. 421-461. Cambridge: MIT Press p. 428.

2 Fraser, N. (1997a) “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy” em Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York: Routledge, p. 76.

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