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O que é provável que aconteça depois do Brexit?

27 de fevereiro de 2019

Membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB

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O que o Brexit significa para os litígios na Europa?

A saída da Grã-Bretanha da União Europeia (UE) está prevista para o dia 29 de março de 2019. O Reino Unido é atualmente um centro muito popular para resolução de disputas internacionais e beneficia-se por ser parte de vários tratados internacionais que determinam: (a) qual é a lei aplicável às obrigações das partes, (b) quais tribunais têm jurisdição para decidir disputas, e (c) o reconhecimento e execução de decisões entre diferentes países.

A adesão do Reino Unido a muitos desses tratados é decorrente da sua participação na UE. Depois do Brexit, o Reino Unido deixará de ser parte deles e, portanto, o sistema de regras transnacionais que determinam a lei vigente, a jurisdição, o reconhecimento e a execução de julgamentos entre estados membros da UE não serão mais aplicados na Inglaterra, no País de Gales, na Escócia e na Irlanda do Norte.

Na atual incerteza e ausência de um “novo acordo”, portanto, os tribunais no Reino Unido esperam considerável mudança. Outros países europeus, em particular França e Alemanha, vêem o Brexit como uma oportunidade de ouro para tornar seus tribunais e leis domésticas a escolha mais popular para resolver disputas internacionais.

Então, qual é o regime atual e o que pode acontecer depois do Brexit?

Escolha da lei aplicável

A determinação da lei aplicável a um contrato, quando há escolha entre as leis de mais de um estado membro da UE, atualmente é determinada pela Convenção de Roma, o Regulamento Roma I e Regulamento Roma II. Em resumo, a lei que se aplica será aquela escolhida pelas partes ou, para contratos sem escolha expressa de lei aplicável, a lei do país com o qual o contrato tem conexão mais próxima. Da mesma forma, a lei que se aplica às obrigações extracontratuais será, geralmente, aquela escolhida pelas partes ou, quando elas não concordaram sobre a escolha, a lei do país em que ocorreu o dano.

A lei aplicável às relações contratuais é o tema com menor probabilidade de ser alterado, dada a proposta de que o Regulamento de Roma seja incorporado à lei interna do Reino Unido na data do Brexit. No entanto, dificuldades poderão surgir mais tarde. Quaisquer futuros regulamentos da UE não serão aplicados no Reino Unido e o parlamento do Reino Unido, em Londres, poderá aprovar leis no futuro que divirjam dos princípios dos regulamentos de Roma. Assim, embora a lei que se aplica no Reino Unido e nos estados membros da UE seja provavelmente a mesma imediatamente após o Brexit, isso poderá mudar em alguns anos.

Além disso, o papel do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) deverá ser um ponto de conflito. O governo do Reino Unido não quer que nenhum de seus tribunais fique sujeito à jurisdição do TJUE após o Brexit. No entanto, qualquer tribunal de um estado membro da UE poderá solicitar a interpretação de uma norma da UE para o TJUE (como, por exemplo, questão decorrente dos regulamentos de Roma). Depois do Brexit, é mais provável que quaisquer questões sobre o direito aplicável decorrentes de casos nos tribunais ingleses sejam finalmente decididas pelo Supremo Tribunal do Reino Unido.

Jurisdição

Atualmente, quaisquer disputas sobre jurisdição também estão sujeitas ao regime de direito internacional da UE. Os tratados aplicáveis são: i) o Regulamento Reformulado de Bruxelas, que se aplica a todos os 28 estados membros da UE; ii) A Convenção de Lugano de 2007, que se aplica a todos os estados membros e também à Islândia, Noruega e Suíça; e iii) A Convenção de Haia de 2005 sobre os Acordos de Escolha do Tribunal, que se aplica a todos os estados membros e também a México, Montenegro e Singapura.

De modo geral, esses tratados estabelecem que deve prevalecer a vontade das partes que outorgam jurisdição aos tribunais de determinado estado sobre suas disputas. Isto significa que, se uma parte tentar iniciar um processo perante tribunais de um estado membro da UE diferente do que foi avençado na cláusula de jurisdição, isso será considerado uma violação ao contratado e os tribunais incompetentes se recusarão a processar as demandas.

A adesão do Reino Unido a todos os três tratados resulta do fato de ser estado membro da UE. Na data do Brexit, portanto, o Reino Unido deixará de ser parte deles.

Algumas opiniões surgiram no sentido de que o parlamento britânico poderia simplesmente incorporar os princípios dos tratados à legislação do Reino Unido para preservar o status quo. No entanto, a dificuldade que o Reino Unido enfrenta é que, mesmo que o faça, não terá reciprocidade. Em outras palavras, o Reino Unido pode promulgar legislação nacional que exija que seus tribunais reconheçam cláusulas de jurisdição do Regulamento Reformulado de Bruxelas, Convenção de Lugano e Convenção de Haia, mas não haveria nenhuma obrigação nos tribunais desses países de reconhecer cláusulas de jurisdição do Reino Unido. A única maneira de o Reino Unido conseguir a reciprocidade seria por mútuo acordo com cada uma das nações.


Reconhecimento e execução de decisões judiciais

O reconhecimento e a execução das sentenças entre os estados membros da UE são regidos pelos mesmos três tratados supracitados. A reformulação do Regulamento de Bruxelas aplica-se a processos instaurados nos estados membros da UE a partir de 10 de janeiro de 2015. Fornece um mecanismo simplificado para o reconhecimento e a execução de decisões judiciais. Ele foi projetado para tornar a fiscalização em todos os estados membros mais simples e menos demorada. A fim de fazer cumprir a Convenção de Lugano, que também se aplica à Islândia, Noruega e Suíça, o credor é obrigado a requerer uma declaração de executoriedade. A Convenção de Haia de 2005 é aplicada se uma sentença precisa ser cumprida no México, em Montenegro ou em Singapura. Na data do Brexit, o Reino Unido deixará de ser parte desses tratados. A menos que um mecanismo alternativo seja implementado, após o Brexit, litigantes bem-sucedidos de estados membros da UE (e também Islândia, México, Montenegro, Noruega, Singapura e Suíça) que desejarem executar uma sentença no Reino Unido não mais se beneficiarão do regime recíproco. Eles terão que confiar nas leis domésticas do Reino Unido sobre a execução de sentenças, assim como os litigantes brasileiros fazem no momento. Da mesma forma, se antes as sentenças do Reino Unido poderiam ser aplicadas em outros países que são signatários dos três tratados, a partir do Brexit isso vai depender das leis internas do país em questão.

Essa é a posição atual em termos de execução de sentenças estrangeiras entre o Reino Unido e países com os quais não há acordos específicos, como o Brasil. A execução de julgados nas relações entre o Brasil e outros estados membros da UE permanecerá inalterada.

O que é provável que aconteça depois do Brexit?

As negociações entre o governo do Reino Unido e a UE ainda estão em curso. Ambas as partes manifestaram o desejo de um regime coerente de cooperação judiciária civil após o Brexit. Se um acordo for alcançado, haverá um “período de transição” até o final de 2020. Em junho de 2018, Reino Unido e UE publicaram uma declaração conjunta confirmando que, em princípio, o regime atualmente em vigor seria aplicado aos processos judiciais iniciados antes do final do período de transição. No entanto, faltando menos de dois meses para a data de retirada, ainda não está claro se um acordo será firmado. Se o Reino Unido deixar a UE sem acordo de retirada (o chamado cenário “sem acordo”, que parece cada vez mais provável), então não haverá período de transição e, em 29 de março de 2019, o Reino Unido deixará de ser parte do Regulamento Reformulado de Bruxelas, da Convenção de Lugano e da Convenção da Haia de 2005.

Mais recentemente, em setembro de 2018, o governo do Reino Unido publicou nota técnica intitulada “Lidando com processos judiciais que envolvem países da UE se não houver acordo no Brexit”. Nessa nota, indicou que pretende tomar as medidas necessárias para internalizar a Convenção de Haia de 2005 no sistema normativo britânico. Este ordenamento entraria em vigor em 1o de abril de 2019, o que significa que haveria uma lacuna de alguns dias entre 29 de março e 1o de abril de 2019. Se o Reino Unido de fato aderir à Convenção de Haia de 2005 isso determinará a escolha da jurisdição, o reconhecimento e a execução das sentenças entre o Reino Unido e os estados membros da UE (alem de México, Montenegro e Singapura) após o Brexit. No entanto, o seu âmbito de aplicação é mais restrito do que o do Regulamento Reformulado de Bruxelas e a da Convenção de Lugano de 2007:

• Aplica-se apenas a acordos escritos em assuntos civis e comerciais, nos quais exista uma cláusula de jurisdição exclusiva;

• Não abrange áreas significativas da legislação, como medidas provisórias e questões de insolvência, arbitragem, transporte de mercadorias e alguns assuntos de propriedade intelectual; e

• Não se aplica à Islândia, Noruega e Suíça (que são signatários da Convenção de Lugano de 2007, mas não da Convenção de Haia de 2005).

Orientação prática

Tendo em vista a incerteza sobre o que acontecerá depois do Brexit, o que o advogado brasileiro deve considerar ao atuar em litígios relacionados com o Reino Unido? Em primeiro lugar, é importante lembrar que as regras que regem a escolha da lei vigente, a jurisdição, o reconhecimento e a execução das sentenças entre Brasil e Reino Unido não serão afetadas pelo Brexit. Os litigantes brasileiros precisam considerar as questões em torno do Brexit somente se o litígio deles também tiver conexão com outro estado membro da UE, ou Islândia, México, Montenegro, Noruega, Singapura ou Suíça.

Existe um risco pós-Brexit de que os litigantes europeus ignorem as cláusulas de jurisdição do Reino Unido e instaurarem processos nos tribunais dos seus estados de origem. Solicitações poderão ser feitas para contestar a jurisdição, mas isso significaria despesas e atrasos adicionais. Além disso, existe o risco de que os tribunais nos estados membros da UE permitam que esses processos continuem, o que significaria: i) que a outra parte que observou a cláusula de jurisdição deveria submeter-se à jurisdição do tribunal incompetente nos termos do contrato; ou ii) que existam processos paralelos – e julgamentos potencialmente concorrentes – no Reino Unido e em outra jurisdição.

Naturalmente, esses riscos serão minimizados se o Reino Unido aderir à Convenção de Haia de 2005 após o Brexit. Entretanto, se uma das outras partes em potencial reclamação no Reino Unido tiver ligação com outro país da UE (ou com Islândia, México, Montenegro, Noruega, Singapura ou Suíça), o potencial requerente seria aconselhado a ajuizar a ação nos tribunais do Reino Unido antes da saída da UE em 29 de março de 2019.

Alternativamente, potenciais litigantes podem considerar a arbitragem ao invés da justiça estatal. O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais internacionais não se baseia na legislação da UE, sendo regidos pela Convenção de Nova York, da qual 157 países são signatários, incluindo o Brasil. Portanto, esse tema não será afetado pelo Brexit. Da mesma forma, as partes que entrem em contratos regidos pela lei inglesa devem considerar a inserção de cláusula especificando que as disputas serão determinadas pela arbitragem que aplica a lei inglesa.

Nota___________________________

1 Esse artigo foi encaminhado para publicação em 5 de fevereiro de 2019. Entre esta data e sua efetiva publicação é provável que existam novidades em relação ao acordo, dada a proximidade da data do Brexit.

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