O sistema de Justiça pelas mulheres

5 de abril de 2023

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Seminário homenageia pioneiras do Direito nacional e discute novas ferramentas para a igualdade de gênero

Aprofundar reflexões sobre as lutas das mulheres por igualdade e respeito nas carreiras jurídicas. Este foi o objetivo do seminário “O sistema de Justiça pelas mulheres”, realizado em março, no auditório da Escola Paulista de Magistratura (EPM), em São Paulo (SP), cujos painéis de debates foram batizados com os nomes das pioneiras do Direito nacional.

Promovido pela EPM e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com apoio da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário de São Paulo (Comesp) e da Revista Justiça & Cidadania, o evento reuniu advogadas, promotoras, procuradoras, defensoras públicas, professoras e magistradas, que foram além do diagnóstico da desigualdade de gênero para debater as novas ferramentas disponíveis para enfrentá-la, com destaque para o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, recém-aprovado pelo CNJ (Resolução nº 492/2023), de aplicação obrigatória em todos os tribunais do País.

“Esperanza Garcia e Myrthes de Campos são pioneiras da advocacia no Brasil. Auri Costa foi a primeira juíza, Mary de Aguiar Silva a primeira juíza negra e Maria Rita de Andrade a primeira juíza federal no Brasil. Fechando os olhos, conseguimos imaginar a legião de mulheres que vieram depois delas. Tenho 35 anos de carreira e trabalhei com juízas muito boas. Gostaria que todas elas se sentissem representadas pelas magistradas que participam deste evento. (…) A luta pelas conquistas das mulheres é uma luta de todos pela igualdade”, comentou na abertura o Diretor da EPM, o Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) José Maria Câmara Júnior, citando as pioneiras homenageadas.

Protocolo de gênero – O primeiro painel contou com a participação da Conselheira Salise Sanchotene, Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que falou sobre a aprovação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo CNJ. “Tínhamos uma recomendação do uso do Protocolo (por meio da Recomendação nº 128/2022) que não estava sendo observada pelos tribunais, não havia praticamente nenhuma capacitação de magistrados e servidores para atuar com perspectiva de gênero. Elevando o Protocolo à categoria de resolução, temos agora como verificar junto a cada tribunal qual é a capacitação que está sendo feita, qual prática ou política foi adotada”, explicou ela.

Segundo a conselheira, o Protocolo é uma ferramenta para ajudar os juízes a enfrentar processos em que a questão de gênero esteja presente, de forma livre de estereótipos ou preconceitos. “A capacitação tem que ser permanente, precisa fazer parte da fase inicial da carreira. Quando o magistrado ingressa, já tem que entender o julgar com perspectiva de gênero. Isso tem que fazer parte também da formação continuada. A partir da aprovação da Resolução, abriremos um processo de acompanhamento junto a todos os 91 tribunais para saber o que exatamente cada um está fazendo a respeito”, acrescentou a magistrada.

Sobre a participação das mulheres no sistema de Justiça, a conselheira adiantou que a edição de 2023 do “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário” – que seria lançado na semana seguinte ao seminário – não trará boas novidades em relação aos índices da edição anterior, de 2019. Os números mostram, por exemplo, que apenas 6% das juízas são negras.

O papel do Direito – No mesmo painel, a Vice-Diretora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Ana Elisa Bechara, questionou o papel do Direito, em seus moldes atuais, na promoção de uma sociedade mais equilibrada e igualitária em termos de gênero, na medida em que o sistema de Justiça Criminal seria incapaz de dar respostas adequadas à violência de gênero e a outras demandas femininas. “O Direito Penal não sabe trabalhar com os recortes necessários para a análise complexa da violência de gênero, além de deliberadamente reforçar preconceitos e estereótipos baseados nesses mesmos recortes, legitimando, num círculo vicioso, a reprodução de um sistema social desigual”, acrescentou a professora, que defende uma reformulação do ensino jurídico para inserir, de forma transversal na grade curricular, reflexões sobre a situação das mulheres na sociedade.

Mediadora do painel e Coordenadora da Comesp, a Desembargadora Maria de Lourdes Rachid de Almeida disse compartilhar a preocupação de levar a igualdade de gênero à educação. Por isso, segundo ela, a Comesp trabalha para convencer os secretários de Educação de que a igualdade de gênero precisa ser ensinada desde a educação fundamental, para que as crianças conheçam desde cedo a importância do respeito à mulher. “Somos diferentes, as mulheres engravidam, têm que amamentar, têm peculiaridades que precisam ser respeitadas”, disse a magistrada.

Recorte racial – O painel seguinte, mediado pela Desembargadora Silvia Rocha, contou com a participação da Procuradora-Geral do Estado de São Paulo, Inês Maria Coimbra, que ressaltou o fato da primeira juíza brasileira, Auri Costa, ter se formado na Faculdade de Direito do Recife anos antes da conquista do voto feminino no Brasil. “A história de Auri frente ao reconhecimento das mulheres como sujeitos de direitos me faz pensar o quão pioneira essa mulher foi. Essas figuras são muito emblemáticas e significativas, mas é muito ruim quando precisamos trabalhar sempre com figuras heroicas. São histórias inspiradoras, sem sombra de dúvida, mas quantas Auris não chegaram lá? Quantas mulheres tão potentes quanto ela não puderam chegar lá? Porque além de potência, quando se vive num ambiente tão desigual, é preciso também um bocado de sorte. Não podemos nos organizar como sociedade baseados em mérito heroico e sorte”, afirmou a Procuradora-Geral.

“Quando o feminismo não se opõe explicitamente ao racismo e quando o antirracismo não incorpora a oposição ao patriarcado, as políticas de gênero e raça acabam sendo antagonistas e ambos os interesses perdem. É impossível falar de equidade de gênero sem olhar para o recorte racial e sem trazer para o debate a interseccionalidade”, acrescentou Inês Coimbra.

No mesmo painel, a Ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Maria Claudia
Bucchianeri Pinheiro trouxe dados sobre o recorte de gênero nas eleições de 2022. Em números aproximados, segundo ela, 1.700 cargos eletivos foram disputados por cerca de  30 mil candidatos, sendo eles pouco mais de 19 mil homens e quase 11 mil mulheres. Foram eleitas 302 mulheres, “taxa de conversão” de 3%, bem abaixo da taxa de conversão dos homens, acima de 7%. Dentre as mulheres negras, que somam 24% da população brasileira segundo os dados estatísticos oficiais, foram eleitas apenas 39, o que representa menos de 2,5% dos candidatos eleitos.

Filtro de gênero –  Para a ministra do TSE, o arcabouço jurídico-institucional não funciona adequadamente para que as mulheres possam ocupar os espaços de poder na velocidade adequada, lembrando que tanto na composição das casas legislativas quanto nos tribunais a média da participação feminina gira em torno de 18%. “Diversidade é ativo, as empresas estão gastando dinheiro em políticas ESG, em políticas de formação de lideranças femininas e da comunidade LGBTQIA+. Fazem isso porque quando têm um conselho plural e diverso, conseguem endereçar produtos e respostas que alcançam mais pessoas na sociedade, o que gera mais riqueza e lucro. Diversidade é ativo porque traz as respostas mais adequadas para uma sociedade que é muito plural. O Judiciário, como caminho último da solução de controvérsias, não tem como endereçar bem as controvérsias de uma sociedade plural se for homogêneo”, acrescentou Maria Cláudia Pinheiro.

Sobre o que pode ser feito para reverter esse quadro na esfera do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça, a ministra defendeu a criação de filtros de gênero nas listas tríplices para indicações aos tribunais, a exemplo do que foi feito pelo TSE há três anos, ao proibir a inclusão de nomes de parentes de desembargadores nas listas que chegam ao Tribunal para a composição dos Tribunais Regionais Eleitorais. “O TSE passou um filtro constitucional nas listas, algo que não está previsto em resolução ou em lei, não está na Constituição, mas foi a aplicação de um princípio, em atendimento, inclusive, aos princípios da moralidade e da impessoalidade. Por que não passar um filtro de gênero? Não é também constitucional?”, questionou a ministra, para quem as listas apenas com nomes de homens violam o princípio da igualdade.

Resistência ao Protocolo – O terceiro painel foi mediado pela Juíza Adriana de Mello, titular do 1º Juizado da Violência Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). O debate contou com a participação da Juíza do TJRJ Renata Gil, que foi presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) no biênio 2020-2022, período no qual se destacou como uma das principais articuladoras da campanha “Sinal vermelho contra a violência doméstica”. Segundo a magistrada, que hoje é Juíza Auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, o mundo enfrenta uma epidemia de morte de mulheres: “Os dados de que dispomos apontam um aumento de 5% nos casos de violência contra a mulher e feminicídio, o que indica que ainda não encontramos o caminho certo de combate à violência”.

No mesmo painel, a Presidente da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), Juíza Vanessa Mateus, retomou o debate sobre o Protocolo de Gênero, ao comentar que já percebe resistências à sua aplicação no seio da magistratura. “Ninguém duvida da constitucionalidade das medidas afirmativas, todo mundo estuda nas faculdades de Direito a necessidade de tratar igualmente os desiguais, mas quando você vai falar de medidas de gênero, sempre vem o questionamento de que homens e mulheres já são iguais na Constituição, não há necessidade de medidas de gênero”, comentou a primeira presidente da Apamagis em 70 anos de existência da instituição, que acrescentou: “Eis que quando o CNJ aprova o Protocolo e ele é publicado, começamos a ouvir nos debates e grupos de WhatsApp que “isso fere a igualdade, porque nós julgamos com objetividade”.

“Sobre o questionamento que se faz em relação ao Protocolo, faço uma comparação com o processo penal. Se por um lado o acusado se apresenta como titular de direitos e garantias fundamentais e sua liberdade pessoal é tutelada pelo princípio da presunção de inocência, em outro vértice a mulher vítima de violência de gênero, titular de direitos humanos, apresenta a vulnerabilidade qualificada primordialmente pela dificuldade na produção da prova, surgindo o Julgamento com Perspectiva de Gênero como forma de materializar o princípio da igualdade”, acrescentou a Coordenadora da Área de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da EPM, a Juíza do TJSP Maria Domitila Manssur.

Pauta permanente – O último painel, mediado pela Presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), a Juíza Federal Marcelle Ragazoni Ferreira, contou com a participação da Juíza Auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Caroline Tauk. Ela comentou o caso Márcia Barbosa, vítima de feminicídio, pelo qual o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a indenizar os parentes da vítima e a estabelecer um sistema nacional para analisar quantitativa e qualitativamente os casos de violência contra as mulheres, incluindo um plano de capacitação para que policiais, promotores e juízes passem a investigar e julgar com perspectiva de gênero.

No encerramento, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, reafirmou que a igualdade de gênero é uma pauta permanente de toda a sociedade. “Eu me dei conta disso logo que fui para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por ocasião dos debates sobre a aplicação da Lei Maria da Penha. No tribunal estadual temos a visão do caso concreto, mas no STJ mudamos o foco, começamos a criar a ideia da amplitude do precedente para além do caso concreto, das demandas objetivas que transpassam a questão”, comentou

O Ministro Salomão exemplificou com o caso do Recurso Especial 1.419.421 (Saiba mais sobre o assunto no artigo da página 44), julgado em 2014, sob sua relatoria, no qual a 4ª Turma do STJ decidiu que a questão não se limitava ao âmbito da violência contra a mulher, transbordando para a violência contra a própria sociedade, e determinou que as medidas protetivas previstas em lei podem ser pleiteadas de forma autônoma, para proteger a mulher da violência doméstica, independentemente da existência presente ou potencial de processo criminal ou ação penal contra o suposto agressor.

Por fim, a Diretora de Redação da Revista JC e Vice-Presidente do Instituto Justiça & Cidadania, Erika Branco, agradeceu e parabenizou os participantes pelo dia de trabalho proveitoso. “As questões aqui discutidas não tratam apenas de uma luta por igualdade de gênero, mas sim pela busca de uma sociedade melhor. Que tenhamos outras oportunidades para debater essa temática tão importante, não só no mês de março, tão emblemático para nós, mas em todo o ano, sempre”, finalizou.

Participaram ainda do Seminário as desembargadoras do TJSP Flora Maria Silva, Silvia Rocha e Ana Paula Zomer; a Juíza do TJSP Hertha Helena de Oliveira; a Secretária Municipal de Justiça de São Paulo, Eunice Prudente; a coordenadora científica da Unidade de Monitoramento e Fiscalização de Decisões e Deliberações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (UMF/CNJ), Professora Flávia Cristina Piovesan; a advogada, professora da PUC-SP e ativista do movimento feminista Silvia Pimentel, que cumpriu três mandatos como integrante do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), da Organização das Nações Unidas; a Presidente da Associação das Mulheres em Carreiras Jurídicas (ABMCJ) no Estado de São Paulo, Promotora Fabiana Paes; a Defensora Pública Mônica de Melo; e a Diretora da União de Mulheres de São Paulo, jornalista Maria Amélia Teles.