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O tempo do processo na reforma judiciária brasileira

5 de junho de 2005

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“Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente” (RUI BARBOSA, Oração aos moços).

Em pleno século XXI o povo ainda reclama muito da lentidão do nosso Judiciário, sendo comum se ouvir que a Justiça é cara e inacessível, os processos não andam, as causas demoram muito tempo gerando injustiças e insatisfações. Aliás, a morosidade processual é fator negativo para a imagem do Poder Judiciário Brasileiro perante a sociedade e até perante Estados Estrangeiros.

Lamentavelmente, neste país muitos problemas ainda existem no processo e na jurisdição com reflexos no acesso do cidadão à Justiça. Entre os fatores causadores de óbices para a efetividade e a rapidez no processo se pode arrolar a falta de estrutura do Judiciário, o número insuficiente de juízes, a legislação processual formada por atos procedimentais complexos, com a previsão de inúmeros recursos, entre tantos outros.

Embora não satisfaça o argumento, pode-se afirmar que a morosidade judiciária não existe somente no Brasil, porque este é um problema quase mundial. É por isso que inúmeros ordenamentos estrangeiros possuem previsão de um processo rápido e efetivo, conquanto não seja possível, como um passe de mágica, cumprir esse ditame sem antes resolver problemas estruturais e legais que constituem óbices para o seu desiderato.

Algumas nações, preocupadas com a questão do tempo do processo, assinaram a Convenção Européia dos Direitos do Homem, a qual possui um Tribunal Internacional, o Tribunal de Estrasburgo, que concomitantemente com o controle interno de cada país europeu conveniado, controla a atuação do Estado pactuante quanto à razoável duração do processo.

A Itália, que aderiu à Convenção Européia para Proteção aos Direitos Humanos em 1997, prevê no novo art. 111 da sua Constituição que a jurisdição deve concretizar-se mediante o justo processo legal, de razoável duração, e que cada processo deve desenvolver-se em contraditório entre as partes, em condições de igualdade, perante um juiz imparcial.

Igualmente, a Constituição Espanhola no art. 24.2 dispõe que todas as pessoas têm direito de receber a prestação judicial num processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias.

Na legislação infraconstitucional de alguns países europeus esse preceito hoje fundamental também já se consagrou. Por exemplo, segundo o art. 2º do código de Processo Civil Português, “a proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter em tempo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar”.

Na América do Norte, é de se verificar ainda que a VI Emenda da Constituição dos Estados Unidos consagra, no processo penal, o direito da pessoa a público e rápido julgamento, por um júri imparcial.

Ainda na América, é de se registrar a art. XVIII da Declaração de Direitos e Deveres do Homem, segundo o qual é direito de toda pessoa um processo simples e breve, devendo a justiça proteger o cidadão contra atos de autoridade que violem seus direitos fundamentais.

Essa mesma regra foi adotada na Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), o chamado Pacto de São José da Costa Rica, cujos termos foram ratificados no Brasil em 1992, de maneira que: “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial…” (art. 8º.1); “toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo perante os juízos ou tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, a lei ou a presente Convenção, ainda quando tal violação seja cometida por pessoas que atuem no exercício de suas funções oficiais (art. 25.1).

Em 8 de dezembro de 2004 finalmente foi promulgada a Reforma do Judiciário brasileiro, depois de longo processo legislativo na Câmara dos Deputados e por último no Senado Federal.

Uma das inovações consistiu na consagração do direito ao tempo razoável de duração do processo e do principio da celeridade processual, constantes do novo inciso LXXVIII do art. 5º da Nossa Carta Maior, do seguinte teor: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

O direito ao processo sem dilações indevidas decorre do devido processo legal, originário do Direito Norte-Americano, que foi inserido na Constituição Brasileira de 1988. Pelo devido processo legal há de se proteger a vida, a propriedade, a liberdade e a igualdade, não podendo nenhuma pessoa ser privada desses bens sem processo, nos termos da lei, e perante a autoridade prévia e constitucionalmente investida na função de julgar (art. 5º, caput, e inc. LIV).

Para se obter um veredicto justo e imparcial, atendendo-se ao due process of law, faz-se mister ministrar a Justiça sem dilações indevidas, aplicando a lei, racional e proporcionalmente, com asseguração às partes do contraditório, da ampla defesa e dos demais princípios concernentes ao Direito Processual incidentes nas demandas levadas ao Poder Judiciário e também, com previsão expressa a partir de 1988, nas questões perante a Administração.

A razoável duração do processo, agora explicitado na Constituição, já estava consagrado como principio implícito, por força do Pacto de San José, tratado internacional assinado pelo Brasil (§ 5º do art. 5º da Carta da República), bem como no próprio princípio do devido processo legal inscrito na Constituição atual.

Mas é evidente o avanço ocorrido com a aprovação da proposta de Emenda Constitucional da Reforma do Judiciário, com o dever do Estado (Administração e Juiz) em assegurar a razoável duração do processo e os meios céleres para sua tramitação.

O princípio da justiça rápida e efetiva precisa ser implementado de modo efetivo, mesmo porque a produção da norma por si só não dá a garantia de que no mundo dos fatos a vontade do legislador constituinte prevaleça e se torne realidade.

Com efeito, de nada adianta a previsão legal de que as demandas devam andar rápidas ou de que é terminantemente proibido, sob pena de sanção, inclusive, o atraso na prestação jurisdicional e administrativa, se não há instrumentos concretos para obtenção desse objetivo.

No quadro forense atual, é atentar contra a natureza das coisas, contra a dialética e o contraditório no procedimento e contra a situação funcional de juízes e servidores pretender que a norma constitucional, por mais valiosa que seja, da noite pro dia se torne realidade no Direito Brasileiro, sem a implantação de instrumentos eficazes de atuação no mundo dos fatos.

A propósito, a própria Constituição neste ponto reformada traz outros mecanismos de aceleração do processo, como a denominada e polêmica súmula vinculante, do Supremo Tribunal Federal, bem como com as previsíveis alterações legislativas, pelo Congresso Nacional, visando a tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.

Ao se normatizar o princípio da entrega da justiça em tempo razoável, reforça-se sem margem de dúvidas o dever estatal de observá-lo e de expedir outras normas aptas a assegurá-lo. Aos operadores do direito incumbe a missão de persegui-lo e contrastá-lo em cada caso concreto a fim de que a prática judiciária e administrativa de atos processuais atenda às aspirações da sociedade brasileira atual.

Conseqüência da aplicação do principio é a possibilidade de ação visando à responsabilidade do estado por danos subjetivos causados pela morosidade judicial e também administrativa.

Pode-se cogitar, como decorrente do principio, efeitos no próprio processo em favor do cidadão que se vê tolhido de sua liberdade e de seus bens ou que não pode exercer sua defesa.

Assim, se há uma apreensão de um bem por parte da Administração Pública (veículo ou documento ou outro objeto) para fins fiscais ou mesmo para fins penais, não é lícito que o procedimento administrativo ou inquérito policial demore tantos anos com o sacrifício desnecessário para o particular, que, enquanto não tem uma solução definitiva, fica refém de uma limitação no seu direito de propriedade constitucional.

Se o Estado eterniza um inquérito policial, nada mais justo que o juiz ouça a pretensão do indiciado (solto) e tome providências para finalizar o procedimento inquisitorial ou então que se inicie a ação penal. Viola a ampla defesa a demora em investigar algo que não precisaria tantos anos para ser investigado, mesmo porque diante do exagerado tempo em que ficou parado o inquérito muitas vezes as provas nem existem mais.

Alem disso, quando há restrição na propriedade por força da atuação do Estado-juiz que, por exemplo, determina a busca e apreensão, naturalmente que o processo deve terminar num prazo razoável. Caso contrário, a conseqüência, aceitando-se inevitavelmente a incidência de tal principio, é a devolução da coisa apreendida, assim ocorre sem dúvida, quando alguém fica mais tempo preso do que as leis processuais penais prevêem.

Em outras palavras, que se cumpram aceleradamente os prazos legais possibilitando prontamente a defesa daquele que sofre o constrangimento ilegal. Se o tempo legal e/ou razoável extrapolou, quem está preso deve ser solto, se existe bem apreendido pela administração ou pelo juiz, que seja liberado.

O excesso de prazo, a liberdade e a devolução do bem são exemplos da incidência do princípio do processo sem dilações indevidas, naturalmente que devendo tal principio ser sopesado em cada caso concreto com outros princípios processuais incidentes na situação específica.

O dano material e moral pela demora do processo, judicial e administrativo, também gera o dever de indenizar, em face do mau funcionamento da atividade estatal, com base no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição.

Concretiza-se na Constituição o direito dos brasileiros à justiça ágil, na qual o demandante seja logo proclamado vencedor e que este vencedor receba o que é seu, prontamente. Não é concebível que a vítima ou seus sucessores tenham que ficar esperando décadas para a punição do réu ou, por outro lado, que a justiça demore longos anos para proclamar que alguém é inocente, causando-lhe com isso danos psicológicos e morais graves. Enfim, é necessário evitar que a proclamação da justiça não cause insegurança e angústia pelo excessivo atraso na solução definitiva e na satisfação de quem obteve reconhecimento judicial de um direito.

Afinal, a dilação indevida não deve impor ao cidadão a obrigação de dar mais sacrifícios do que os que as leis substanciais e processuais prevêem.

Todos querem um processo sem demora e o direito ao acesso à Justiça tem como conseqüência um processo que termine no prazo razoável (celeridade processual), com aproveitamento máximo dos atos processuais.

No âmbito judicial, ademais, vale lembrar que o juiz tem poderes para acelerar a marcha processual evitando com que se protraia no tempo, como bem determina o inc. II do art. 125 do Código de Processo Civil, aplicável por analogia ao Processo Penal.

Além de tudo, para se mover o grande obstáculo chamado tempo, o Direito Processual criou figuras de tutelas urgentes como a prisão temporária, a prisão preventiva, a antecipação de tutela e a liminar em mandado de segurança e em habeas corpus, e tantos outros instrumentos aptos a atuar em caso de morosidade da justiça ou dos órgãos estatais.

Outrossim, toda a pessoa tem o direito à liberdade e à propriedade, bens previstos na Constituição, que não podem ser prejudicados pelo excesso de prazo na prática de atos processuais.

Portanto, a chamada morosidade da Justiça acarreta indesejáveis problemas que se refletem na jurisdição e no Poder Judiciário. Conquanto a morosidade da Justiça não seja a causa desses problemas, a inclusão na Constituição Federal da necessidade de abreviação das demandas sobremaneira favorece o direito do cidadão a um julgamento rápido e efetivo.

Disso decorre também que o Estado precisa aparelhar-se para prestar a jurisdição de forma eficaz, sob pena de ser responsabilizado por tal omissão e pelo mau funcionamento da máquina judiciária, o mesmo acontecendo com os procedimentos na Administração Pública, que também deve obediência ao princípio da razoável duração do processo.

Enfim, consagrou-se com a Reforma Judiciária, recentemente aprovada, o direito ao acesso rápido e efetivo à Justiça, princípio-garantia do cidadão contra o Estado que, tendo o monopólio da jurisdição, tem também a difícil função dar a cada qual aquilo que lhe pertence, com segurança, e sem tardança.

Por isso, espera-se que o Brasil encontre alternativas para possibilitar às pessoas a obtenção de um processo célere e uma efetiva justiça, sem que, do início do processo ao seu final, haja tantos entraves e inação estatal.

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