Olhares cruzados sobre as constituições brasileira e francesa

2 de junho de 2019

Compartilhe:

Uma é sexagenária, possui menos de cem artigos, mas já passou por 24 revisões. Outra acaba de chegar aos 30, ostenta 245 artigos, nunca foi revisada, porém já recebeu mais de cem emendas. Estamos falando da Constituição da Quinta República Francesa, lei fundamental vigente desde 1958, a décima quinta oficialmente adotada em um total de 22 escritas desde a Revolução Francesa; e da Constituição Federal do Brasil de 1988, nossa sétima carta magna desde a proclamação da República.

Ambos os textos constitucionais foram comentados e comparados para muito além dos números em encontro realizado em maio, pelo Consulado da França no Rio de Janeiro. O colóquio contou com a participação dos professores franceses de Direito Constitucional Dominique Rousseau, da Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne, Jean-Pierre Camby, da Universidade de
Versailles-Saint Quentin-en-Yvelines, e Pascal Jan, reitor ultramarino da região acadêmica da Martinica.

O grande destaque, porém, foi a participação do relator-geral da última Assembleia Constituinte brasileira, Bernardo Cabral. Com o olhar de quem muito já viu – como professor universitário, deputado estadual, deputado federal, senador e ministro – o jurista amazonense falou em perspectiva sobre as virtudes e vícios da Constituição Cidadã. Além das comparações com o texto constitucional francês, Cabral situou os antecedentes da Constituição brasileira no processo de redemocratização do País, contou casos curiosos sobre seu processo de elaboração e não se furtou de apresentar uma visão crítica sobre o atual quadro político e jurídico nacional.

“É preciso que o próprio Judiciário e seus integrantes façam um exame de consciência, para não permitir que continue pesando sobre eles a carga difícil que é a falta de confiança”, disparou o ex-ministro da Justiça e ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao comentar o momento atualmente enfrentado pelo Poder Judiciário.

Bernardo Cabral apontou como principais avanços do texto de 1988 a consagração do respeito aos Direitos Humanos como princípio fundamental; a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário; o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase no habeas corpus, no mandado de injunção, na garantia do devido processo legal e nos mandados de segurança; a consagração constitucional dos direitos dos trabalhadores, que fortaleceu os sindicatos e lhes deu autonomia e independência; o fortalecimento do Ministério Público; e o fim da censura. Confira nas próximas páginas os melhores momentos de sua participação e a entrevista que deu à Revista Justiça & Cidadania.

“Começou sem absolutamente nada, foi feita tijolo por tijolo”

“Há uma particularidade na Constituição de 1988. Sem exceção, todas as constituições anteriores tiveram um esboço prévio que facilitou o trabalho dos constituintes. (…) Logo após a saída do governo militar, o Presidente eleito Tancredo Neves nomeou uma comissão de notáveis, formada pelos melhores constitucionalistas àquela altura e presidida pelo grande professor de Direito Constitucional, que foi chanceler do nosso País, senador e catedrático, Afonso Arinos de Melo Franco. Ao final dos trabalhos, a Comissão concluiu pelo sistema parlamentarista, como existe na França. Só que, com a morte de Tancredo Neves, o Presidente da República já era José Sarney. Ao receber o relatório, defensor do sistema presidencialista que era e continua a ser, Sarney o arquivou. Naquele período em que estávamos saindo da excepcionalidade para um retorno constitucional, a Assembleia Nacional Constituinte teve que começar sem absolutamente nada. Tudo teve que ser feito tijolo por tijolo.

O Presidente da Constituinte foi um político brasileiro muito conhecido, Ulysses Guimarães, que sugeriu criar novo esboço por meio de uma comissão, para a qual seriam escolhidos 80 dentre 559 constituintes. Houve uma briga imensa, uma repulsa, porque os demais diziam que haveria constituintes de primeira e de segunda classe. Por isso a ideia não foi adiante. O jeito foi criar oito comissões temáticas, cada uma delas divididas em três subcomissões, que posteriormente levariam todo seu arcabouço para a comissão principal, chamada Comissão de Sistematização, que escreveria o texto final”.

A escolha do relator – “Funcionava assim. O principal partido em números era o PMDB, cujo líder era o Senador Mário Covas, que depois foi governador de São Paulo. O segundo partido mais importante era o PFL, comandado pelo Deputado José Lourenço, da Bahia. Quando o líder do PMDB escolhia o presidente da comissão ou subcomissão, cabia ao PFL o relator, e vice-versa. Isso foi encaminhado normalmente, sem nenhuma dificuldade na combinação. Tivemos a instalação da Assembleia em fevereiro de 1987. O regimento interno foi redigido pelo então Senador Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde seria presidente da República, e ficou pronto em março. A partir daí começou o trabalho das comissões, até que se chegou à Comissão de Sistematização. Foi quando ocorreu o primeiro impasse.

As lideranças e todos o componentes do PFL foram ao Presidente Ulysses Guimarães pedir que a presidência da Comissão fosse entregue ao Professor Afonso Arinos de Melo Franco, que era senador pelo partido. Houve unanimidade, ninguém discordou disso, mas surgiu o problema. Quem ia escolher o relator era o PMDB. A ‘voz dos corredores’ dizia que Tancredo Neves, já falecido, tinha como preferido o Deputado Federal Pimenta da Veiga, líder do PMDB na Câmara. Só que Ulysses Guimarães tinha outro preferido, que era Fernando Henrique Cardoso. O impasse surgiu porque Ulysses era de São Paulo e Tancredo de Minas Gerais.

Esse cidadão que vos fala havia sido presidente da OAB e estava com 23 anos de experiência no exercício da advocacia. Fui ao Ulysses Guimarães dizer que não poderia aceitar a escolha de Fernando Henrique Cardoso, porque apesar de ser sociólogo, não era advogado. O segundo, Pimenta da Veiga, era advogado apenas há quatro anos e, portanto, não tinha nenhuma experiência na advocacia.

Quando o governo militar estava instalado, lá entre os anos de 1967 e 1968, o líder da oposição era o Senador Mário Covas e eu, deputado federal pelo Amazonas, era o vice-líder. Ambos fomos cassados pelos militares. Tiraram nossos mandatos, meu lugar de professor na faculdade, dez anos de direitos políticos e fomos muito perseguidos. Eu lembrei isso na hora. Essa circunstância ajudou a resolver o impasse. Isso é histórico, preciso que os senhores saibam, pois não está nos livros.

Com todos os deputados e senadores do PMDB reunidos, um deputado do Maranhão virou-se e disse: ‘Nós da oposição brigamos para derrotar a ditadura. Não é possível que se escolha o relator da Comissão de Sistematização no compadrio. Quem tem que escolher é a bancada’. Só que a minha bancada tinha só três deputados, São Paulo e Minas Gerais tinham mais de 30 cada, era uma desproporção enorme, mas eu aceitei. (…) Fomos para a discussão. Em primeiro lugar falaria Fernando Henrique Cardoso, fui sorteado para falar em segundo e Pimenta da Veiga em terceiro.

Fernando Henrique fez um discurso como sempre brilhante, só que eu falei procurando destruir o discurso dele e preparando a destruição do que viria depois. Disse aos jovens que lá se encontravam, e eram muitos que ali estavam pela primeira vez, que a minha candidatura a relator não tinha nenhum compromisso com o governo, fora do governo, com os militares ou com quer que fosse, porque eu havia sido punido pela ditadura. Isso tocou o coração dos jovens parlamentares, porque nenhum dos outros havia sido punido.

O resultado foi que Fernando Henrique teve 81 votos, Pimenta da Veiga e eu empatamos com 84 votos. Na segunda votação, na qual procurei captar todos os votos do Senado, Pimenta da Veiga teve 90 votos e eu 111. Essa foi a escolha do relator, que ninguém conta por aí. Gostaria que tomassem nota não como se eu estivesse aqui me regozijando, mas porque não fui nomeado por ninguém, nem pelo presidente da República, nem pelo presidente da Assembleia Constituinte, nem pelo presidente do Supremo. Quem me escolheu foi exatamente a bancada. Com isso, tive uma independência muito grande para poder redigir o texto constitucional”. (…)

Revisão desperdiçada – “Nossa Constituição é muito censurada por ser longa. É verdade, até eu mesmo censuro. Não deveria ter tantos artigos, a da França não chega a ter cem, o que é uma vantagem enorme. Só que terminamos os trabalhos com 330 sessões plenárias em 309 dias. Hoje, quando se fala em emendas, todos sabem que dá trabalho. Agora mesmo estamos tratando de uma emenda sobre a Previdência Social que dá uma briga enorme. Pois bem, foram apresentadas 62.160 emendas, pessoalmente examinei 40.823. O trabalho que veio das subcomissões e das comissões temáticas trazia mais de mil artigos, sem computar essas emendas. Tudo isso foi reduzido para 245 artigos. (…) Imaginem o que eu sofri, junto com meus sub-relatores. Todos os constituintes eram iguais, todos tinham o mesmo valor. Quantos adversários eu não adquiri ao longo desse trabalho, cortando tudo o que era possível! (…)

No Ato das Disposições Constitucionais Provisórias criamos artigo dizendo que após cinco anos da promulgação da Constituição, no caso em 1993, o Congresso poderia realizar uma revisão constitucional para aparar as arestas. Infelizmente, não se fez a revisão. A Constituição era longa porque previa que, exatamente na revisão, se cortaria o que havia de excesso, porque já teria ocorrido a eleição de um presidente da República, em 1989. Infelizmente, não se aproveitou a revisão constitucional.” (…)

A profecia da MP – “Na Comissão de Sistematização aprovamos o sistema parlamentarista de governo, mas ao chegar ao Plenário, que tem a última palavra, isso foi derrubado e voltou para o texto constitucional o sistema presidencialista de governo. (…) Ninguém conta essa história. Havia um relator-adjunto chamado José Fogaça, que era senador, um gaúcho, que testemunhou essa história e outro dia a contou aos seus conterrâneos, por isso vou torná-la pública. (…) Chamei o líder dos presidencialistas, o Presidente do Senado, Humberto Lucena, e disse a ele: ‘Vai correndo dizer aos teus companheiros presidencialistas que retirem do texto constitucional o instituto da medida provisória, que só pode conviver com o sistema presidencialista’. Ele ficou sem jeito. Eu disse em palavras textuais: ‘Caso contrário, vocês vão dar ao presidente da República um poder tão forte que nenhum ditador da história do Brasil teve até hoje. (…) Disse o José Fogaça de público: ‘Infelizmente, a profecia do Bernardo Cabral aconteceu’. Estou lhes contando isso porque também não vão encontrar em livro nenhum”.

Reforma agrária e impeachment – Ao responder pergunta do cônsul da França, Jean-Paul Guihaumé, sobre a discussão do instituto da reforma agrária pelos constituintes brasileiros, disse Bernardo Cabral: “Jovens àquela altura, nossa ideia era melhorar o Estatuto da Terra dos militares, mas os interessados, um grupo que sempre foi forte em nosso País, os que cuidam da terra, derrubaram nosso texto. Portanto, o texto atual é fruto de alguém que não entendeu que a terra, desde os tempos bíblicos, sempre foi motivo para discussões, homicídios e invasões. O que queríamos era conciliar, para que a terra pudesse cumprir sua função social. Infelizmente, ficou abaixo e aquém do Estatuto da Terra.

Ou seja, o militar, sobre o qual se dizia trazer em si o ato ditatorial contra a reforma agrária, não chegou a ser tão forte quanto o grupo que derrubou nossa versão. De modo que coloquei duas desilusões na minha vida. Uma foi não ter aprovado o sistema parlamentarista de governo. Se hoje tivéssemos uma pessoa que não fosse ao mesmo tempo chefe de governo e chefe de estado, não teríamos a dolorosa figura do impeachment. É muito mais fácil em um voto de censura derrubar o primeiro-ministro ou, como se faz nos Estados Unidos, matar o presidente (risos da plateia). Passamos por essa dolorosa caminhada ainda há pouco. Minha segunda tristeza (foi a questão da reforma agrária), não por não ter dado o melhor, ninguém faz nada sozinho, eu tinha três relatores adjuntos e havia 559 membros. Foi uma pena, mas você tem que respeitar uma coisa chamada maioria. A maioria decidiu”.

Esteio da democracia – “Recentemente, o presidente do Supremo, o presidente da República e outros quetais juraram absoluto respeito à Constituição e disseram que vão cumpri-la. Espero, porque já vi algumas coisas flutuando pelo ar… Muito a contragosto, há algumas pessoas que pensavam que a Constituição duraria seis meses. Chegaram a dizer que ela tornaria o País ingovernável. Passados 30 anos, estamos nos aproximando de meio século, continua a existir essa disputa mais ou menos feroz. Aliás, isso não é só nosso, na França também temos a disputa entre a esquerda e a direita. A esquerda em nosso País, por miopia, diz não existir nenhuma virtude no capitalismo. Por sua vez, isso também é grave, a direita em sua arrogância diz não haver nenhum defeito no livre mercado. Até hoje estamos entre os que acham que o defeito é só do outro. (…)

Felizmente, a Constituição de 1988 tem a seu favor a doutrina, na qual se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos que uma vez incorporados ao seu texto tornaram-se indiscutíveis, insusceptíveis de novo acordo e nova decisão. O que é preciso é que se extraia da Constituição o que ela tem de bom, não tentar modificá-la a reboque de interesses meramente circunstanciais”.

 

“Nossos direitos e garantias individuais são muito mais fortes”

Fundador e chanceler da Confraria Dom Quixote, Bernardo Cabral concedeu entrevista à Revista JC

Revista Justiça & Cidadania – Após debater com três constitucionalistas franceses, quais paralelos, semelhanças e diferenças entre as constituições e as cortes constitucionais do Brasil e da França o senhor poderia apontar?

Bernardo Cabral – Faço duas comparações. Uma a favor deles, pelo que se passa hoje no Brasil. Eles têm lá o Conselho Constitucional e nós o Supremo Tribunal Federal. A corte deles é composta por nove membros, três indicados pelo presidente, três pela Assembleia Nacional e três pelo Senado, com mandatos de nove anos, sem reeleição. Eles também tratam da eleição para presidente, o que quer dizer que este Conselho funciona como nosso Tribunal Superior Eleitoral, que eles não têm por lá. Veja como é que se passam as eleições. Em nosso Brasil nós temos onze ministros do Supremo, que são vitalícios, têm vencimentos irredutíveis e não podem ser removidos. Vitaliciedade, irredutibilidade e inarredabilidade. Uma vitaliciedade sui generis, porque agora aos 75 vão para casa, mas se entrar lá com 40 anos, são 35 anos. Essa é uma vantagem deles.

Qual é a nossa? Nossos direitos e garantias individuais são muito mais fortes do qualquer texto que a França possa ter em sua constituição. Além disso, aqui o Poder Judiciário tem autonomia administrativa e financeira, enquanto lá o garantidor do Judiciário é o presidente da República, uma situação diferente. De modo que o Brasil, apesar de todas as circunstâncias, é uma democracia plena, estamos funcionando bem. Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário estão com portas abertas. Se algum deles não estivesse funcionando seria uma ditadura. Por enquanto, o povo está escolhendo quem bem entende. Não adianta censurar que tal presidente não está à altura do cargo, porque foi uma escolha do povo.

Outra coisa que estamos vendo sobre a constituição francesa é que apesar de lá ser uma república parlamentarista – e no sistema parlamentarista o chefe do governo é o primeiro-ministro e o chefe do Estado é o presidente da República – muitas vezes o governo manda mais do que o primeiro-ministro. Aqui, infelizmente, o chefe do governo e do Estado é o presidente, o que a meu ver é pior para nós.

O senhor sempre foi ardoroso defensor da efetividade dos marcos sociais, políticos e jurídicos da Constituição de 1988. Hoje, quase 31 anos após sua promulgação, o que ainda falta para alcançar essa efetividade?

Como relator, trabalhei 19 horas por dia, desde os primeiros debates até o dia da promulgação, em 5 de outubro. O que fiz, hoje não faria melhor. Poderia ser feito algum reparo? Sim, ela poderia ser reparada, ela é sempre criticada por ser longa demais. Perdemos a oportunidade, na revisão constitucional de 1993, de aparar as arestas. Hoje, muitas emendas constitucionais estão sendo feitas ao sabor de interesses meramente circunstanciais. A medida provisória não poderia ter ficado na Constituição, mas ficou, deveria ser extirpada. De modo que ela precisa realmente sofrer uma reorganização. Antes de tudo, porém, o principal mesmo é respeitar a Constituição.

O senhor disse na época da promulgação que a Constituição injetou no Brasil o “ar saudável das liberdades públicas e civis”…

Sem dúvida nenhuma.

Esse ar teria sido envenenado de alguma forma pelas crises institucionais que tivemos desde então?

Quando Costa e Silva era Presidente da República e sofreu um acidente vascular cerebral, quem o substituiu não foi o Pedro Aleixo, que era o Vice-Presidente, um grande homem, sério, professor. Quem o substituiu foi uma junta militar composta pelo então ministro da Guerra, o da Marinha e o da Aeronáutica. Quando Fernando Collor foi apeado do poder pelo impeachment, não foi uma junta militar que tomou conta, foi seu Vice-Presidente Itamar Franco, porque a Constituição garantiu. Não foi acaso, tanto é assim que quando agora ocorreu novo impedimento, quando Dilma
Roussef foi afastada por impeachment, com toda a crise que existia – e não era uma crise democrática – quem assumiu foi o Vice-Presidente da República Michel Temer. Apesar de todas as dificuldades que atravessamos, a Constituição não permitiu que nenhuma crise política tivesse posto, ainda que temporariamente, um ponto final em nossa democracia.

O senhor testemunhou há 20 anos a criação da Revista JC em resposta a uma Comissão Parlamentar de Inquérito que buscava sufocar a autonomia do Poder Judiciário. Hoje, a Justiça está novamente sob ataque e, inclusive, se fala em instalar a CPI da Lava Toga. Qual postura as pessoas que realmente defendem o Judiciário deveriam adotar nesse momento?

Em primeiro lugar, é preciso que se faça justiça à saudade que deixou no País nosso querido Orpheu Salles (fundador da Revista Justiça & Cidadania), que até quase centenário sempre defendeu com responsabilidade em seus artigos o Poder Judiciário. Seu filho Tiago Salles continua no mesmo caminho. Em resposta à pergunta, é preciso que o próprio Judiciário e seus integrantes façam um exame de consciência, para não permitir que continue pesando sobre eles a carga difícil que é a falta de confiança. Só isso.

A Constituição da Quinta República

Charles De Gaulle e o Primeiro-Ministro Michel Debré,os pais da atual Constituição francesa

Em setembro de 1958, os franceses decidiram em referendo popular pela elaboração de nova Constituição. Fortemente influenciado pelo General Charles de Gaulle, o texto constitucional foi redigido ao longo de dois meses por um comitê consultivo composto por 39 membros, liderados por Michel Debré, que viria a ser primeiro-ministro. Em dezembro, já com a nova Constituição referendada e promulgada, De Gaulle foi eleito pelo voto indireto como Presidente da República.

A Constituição da Quinta República (conceito cunhado por Debré e De Gaulle, segundo o qual cada nova constituição fundava nova república) confiou o Legislativo a um parlamento bicameral. O Senado, que havia desaparecido sob a Quarta República, retornou com o direito de retificar leis votadas na Assembleia Nacional. As novas disposições conferiam ao presidente amplos poderes, como o de nomear o primeiro-ministro, convocar referendos relativo à organização dos poderes públicos e, em caráter excepcional, exercer todos os poderes de forma unificada. Esse último previsto em situações de ameaça às instituições, à independência da nação ou a sua integridade territorial – o que era o caso na época da promulgação, durante a Guerra de Independência da Argélia, que durou de 1954 a 1962.

“Era considerada uma constituição de espera, de um período de guerra, no qual o poder naturalmente se concentrou nas mãos do presidente da República. Os primeiros anos de vigência foram determinantes para sedimentar essa primazia, que dura até hoje”, disse em sua exposição o Professor Dominique Rosseau, ao explicar a ambiguidade aparente de um sistema parlamentarista que concentra tanto poder no Executivo. “Não se trata de saber se o regime é presidencialista ou parlamentarista, a questão é saber se os direitos são observados e se a oposição é respeitada”, acrescentou o Reitor Pascal Jan.

Um Conselho Constitucional de nove membros, espécie de Corte Suprema francesa, é a garantia da constitucionalidade das leis. A Instituição, contudo, não tem a mesma autonomia conferida ao Judiciário brasileiro pela Constituição de 1988, submetendo-se ao Poder Executivo.