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Segurança Jurídica e o “pecado original” da licitação – conduta administrativa cinquentenária e proteção da confiança

12 de julho de 2011

Darci Norte Rebelo Membro do Conselho Editorial e Advogado

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Es la seguridad la que une nuestra vida presente y nuestra vida futura por un lazo de prudencia y de previsión y perpetúa nuestra existencia en las generaciones que nos siguen
[Bentham,  cit. por  Radbruch, in Los Fines del Derecho – Bién común, justicia, seguridad, ed. Unam, México, 1967, os. 65/6]

O “pecado original” das licitações não feitas
Prática administrativa cinqüentenária gerou, no País, o mais extraordinário sistema de transporte coletivo sobre pneus do mundo. Quase todas as delegações desses serviços operavam, e ainda operam, sob o regime jurídico de permissão e quase todas nasceram de processos espontâneos de iniciativa de pequenos empresários que,  atraídos pela Administração, arriscavam seus patrimônios no serviço público, sem procedimento licitatório, estranho àqueles tempos de pioneirismo. Essa conduta tradicional da Administração – a de admissão de empresas no serviço público por procedimentos informais – contava com a crença de sua legitimidade por parte dos administrados.

Com o advento da Carta de 88, imaginou-se que esse extraordinário sistema, já consolidado economicamente, estava crismado juridicamente, já que o art. 175, na prática, equiparara concessões e permissões, e instituíra, em homenagem à exigência de continuidade, o princípio da prorrogação para as concessionárias e permissionárias existentes.

Ademais, a Carta conferira a láurea de essencialidade aos transportes urbanos pela sua importância para o exercício das funções da cidadania [CF, art. 30, V]. A lei regulamentadora do art. 175 da Constituição, Lei no 8.987/95, porém, sete anos depois, terminou com essa tranqüilidade ao editar mal pensadas e, pior ainda escritas, normas transitórias que vieram a  criar generalizada insegurança institucional nesse setor estratégico da economia. Em vão, eminentes juristas alertaram que essas normas não se aplicariam a estados, Distrito Federal e municípios1, o que salvaria do desastre pelo menos os essenciais transportes urbanos do País.

A hermenêutica que a essas normas transitórias começou a dar o Ministério Público agravou esse quadro de incerteza e resultou traduzida em dezenas de ações civis públicas, promovidas contra os municípios para constrangê-los a licitar os serviços existentes ou para anular atos ou mesmo leis de prorrogação das permissões ou concessões de  ônibus. O argumento básico de todas as demandas é uma suposta ilegitimidade do sistema por não ter sido ungido na pia batismal de processos licitatórios.

[In]segurança jurídica como questão constitucional
A insegurança institucional em que mergulhou o sistema de ônibus, contudo, não é questão infraconstitucional. É, ao contrário, relevante questão constitucional que toca muito de perto o Estado de Direito por estar vinculada ao princípio da segurança jurídica.

A humanidade teve de passar por uma tragédia para [re]definir o Rechtsstaat. “Foi a dogmática alemã que, com maior clareza, vinculou o princípio da segurança jurídica à idéia de Estado de Direito e as notas definidoras da regra do Rechtsstaat. Essa regra ou princípio se edificou na Lei Fundamental de Bonn, de 1949, sobre sólidos fundamentos éticos, com a pretensão de conjurar definitivamente os perigos aos quais um excesso de positivismo constitucional havia conduzido na recente historia alemã”2. Daí, a nova face do Estado de Direito acabou transformada num “dos elementos ‘estrela’ do Direito Administrativo europeu”3, tendo-se  expandido, em “marcha triunfal”4 pelo direito comunitário, de onde chegou às letras jurídicas brasileiras pela pena de eminentes juristas, entre os quais, a do professor Almiro Couto e Silva5, invocado em diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal (MS 24268-MG, entre outros).  Mas a novidade ainda não se democratizou. Domina, entre nós,  exacerbado positivismo, como este do culto da licitação, em devoção ao qual se ajoelham bem intencionados membros do Ministério Público e muitos juízes. Segundo esse grupo de hermeneutas do apocalipse, tudo o que existe nesse sistema de ônibus deve ser desmontado para ser remontado, pouco importando as conseqüências econômicas e sociais derivadas desse ensandecido desperdício de economias. O sistema teria de ser passado a limpo através da prova licitatória, uma ordália administrativa ou um “juízo de Deus”, de modo que somente quem se submetesse ao teste seria ungido e recebido no seleto grêmio da “teoria pura do Direito”.

De momento, não lhes resta, ao sistema social de transportes públicos, sequer a “impaciência de uma esperança”6 de dias melhores, de um despertar do bom senso.  O “amanhã é um poder escondido”, diria o poeta Paul Valéry, algo indecifrável, uma pergunta sem resposta, pois o presente se transformou num ponto por onde se escoam dois nadas: um futuro que ainda não é e um passado que já foi7.

A tentativa de licitação generalizada como violação da segurança jurídica
Os importantes investimentos efetuados no setor só existiram e existem em face da confiança legítima que os concessionários e permissionários depositavam nessa prática da administração vigente durante desde sempre como regra geral e, por isso mesmo, geradora do sentimento de legitimidade dos seus beneficiários. Essa crença legítima não pode ser fraudada, desprotegida, censurada, sob pena de se negar o princípio da segurança jurídica e o próprio Estado de Direito. Na Argentina, ao discutir-se uma lei de renegociação para introduzir mudanças no serviço público, observam Cassagne e Ariño Ortiz, que “habrá que respectar los derechos emergentes de los contratos celebrados con las empresas privadas, sin introducir modificaciones legislativas susceptibles de afectar sus derechos patrimoniales, ya que, de lo contrario, el Estado y todos los ciudadanos serán los principales perjudicados por el establecimiento de políticas que impulsen una suerte de castigo a las empresas privadas prestadoras. Cabe tener en cuenta que la mayoría de esas empresas han llevado a cabo inversiones de considerable magnitud y que actúan en el mercado de los servicios con un alto nivel de calidad y eficiencia, comparable a los niveles internacionales” 8.

A posição pioneira do STF em defesa da proteção da confiança
A proteção da confiança felizmente vem ganhando acolhida inovadora no Supremo Tribunal Federal, que incorporou o princípio em recentes decisões da Corte ao conceder, com o voto majoritário do ministro Gilmar Ferreira Mendes, mandado de segurança para assegurar a continuidade de pensão, cassada pelo Tribunal de Contas dezoito anos depois de concedida (ainda que ilegalmente)9. Se a confiança é legítima, prevalece sobre o vício10. A proteção da confiança, disse o STF, “é pedra angular do Estado de Direito”.

Em outra recente decisão, no REsp 348.364-1-Rio de Janeiro, o ministro Eros Roberto Grau afirmou sua crença na “estabilidade das situações criadas administrativamente” em face do “princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica”. Na questão de ordem no 2.900-3, do Rio Grande do Sul, o ministro Gilmar Ferreira Mendes reitera que “considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito)”. “Para os cidadãos significa – segundo a doutrina alemã –, em forma primária, a proteção da confiança legítima”11.

As mudanças normativas e o respeito ao tempo
Uma das formas de que é feito o alicerce da confiança é exatamente o tempo que consolida situações, convalida irregularidades e justifica a permanência das situações assim constituídas.  Essa foi, pioneiramente, a postura do Superior Tribunal de Justiça12:“(…) Fatos posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao tempo, podem transformar o contexto em que esta se originou, de modo a que fique vedado à Administração Pública o exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria ainda maiores agravos ao Direito, por afrontar à segurança jurídica e à boa-fé” e, por isso, “sem prejuízo econômico ou do interesse público, deve-se procurar a estabilidade do ato ou do contrato”.

Por isso, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “tanto se recompõe a legalidade fulminando um ato viciado, quanto consolidando-o.”13 Da mesma opinião partilha Weida Zancaner: “O dever de invalidar não se coaduna com a inércia administrativa, e é por esta razão que não pode a Administração Pública, a seu talante, fazer e desfazer atos viciados concessivos de benefícios por um lapso demasiado longo de tempo”14. E também o professor Juarez Freitas: “No atinente ao princípio da segurança jurídica, dimanante, como os demais, da noção mesma de Estado Democrático, significa que a Administração Pública deve zelar pela estabilidade e pela ordem nas relações jurídicas como condição para que se cumpram as finalidades superiores do ordenamento. A estabilidade fará, por exemplo, que, em certos e excepcionais casos, a Administração tenha o dever de convalidar atos irregulares na origem. É que sem estabilidade não há justiça nem paz, tampouco respeito às decisões do soberano”15.

Ernst Fortshoff professorava: “Se a administração tolera que exista um fato que não é legal senão por ela autorizado, sua  atitude faz presumir que ela o permite” (si l’administration tolère un fait qui n’est legal que par son autorisation, son attitude fait présumer qu’elle le permet)16. Michel Stassinopoulos, na mesma linha, reitera: “se a atitude da administração dá, durante longo tempo, a um homem de boa-fé, a impressão de que ela já reconheceu uma situação de vantagem ao administrado, pode-se, então, assimilar esse comportamento a um ato favorável” (si l’attitude de l’administration donne pendant longtemps a un homme de bonne foi l’impression qu’elle a dejà reconnu une situation ou profit de l’administré, ont peut alors assimiler dette attitude a un acte favorable)17.

Almiro Couto e Silva, falando acerca de  “princípios da legalidade da Administração Pública”18, ensina que o poder público não pode “declarar inválidos estados de posse dos cidadãos que havia deixado subsistir sem contestação durante muitos anos”. Também Miguel Reale: “Se a administração já permitiu que se constituíssem situações de fato já revestidas de forte aparência de legalidade, a ponto de fazer gerar nos espíritos a convicção de sua legitimidade, seria deveras absurdo que, a pretexto da eminência do Estado, se concedesse às autoridades um poder-dever indefinido de tutela”19.

Donde a doutrina haver concluído: as conseqüências da aceitação do princípio da expectativa legítima “son dos fundamentalmente: la protección de la permanencia y la continuidad de lo que ya existe20.

O Direito como necessidade de certeza e de segurança
Recaséns Siches afirma que o Direito “é fabricado pelos homens” pela necessidade de certeza (saber orientar-se) e de segurança (confiança em que as regras serão observadas). “O Direito – diz ele – cumpre uma função de certeza e uma função de segurança”21.

A segurança jurídica envolve pelo menos duas dimensões: segurança de orientação, ou certeza da ordem; segurança de realização, ou confiança na ordem22. Quando essa função se debilita, o administrado, o contribuinte, o investidor, o executor do serviço público, todos, ficam subordinados ao humor do político de plantão nas várias instâncias decisórias.

Quando um país se torna imprevisível e a sociedade começa a duvidar das suas instituições básicas, a doença da imprevisibilidade e da incerteza podem chegar às formas epidêmicas da anomia e a corrupção se transforma em apólice de seguro contra a instabilidade.

O custo [econômico] dos direitos
O Direito tem custos como quase tudo. Original trabalho de análise econômica do Direito23 alerta que “levar os direitos a sério é incluir pragmaticamente no rol das trágicas escolhas que são feitas todos os dias pelas pessoas, os custos dos direitos, pois, como já se disse (…) direitos não nascem em árvores”24. “A partir desta concepção, a questão central da análise econômica do Direito será a eficiência econômica ou, mais precisamente, a maximização da eficiência econômica das instituições sociais e, dentre estas, também o Direito”25.

Maximizar a instituição social dos transportes públicos implica adotar uma política de estabilidade. Como disse o ministro Édson Vidigal, em despacho monocrático acerca da gratuidade de idosos no transporte interestadual sem fonte de custeio: “Dinheiro não dá em árvores. Por mais verdes que sejam, as folhas não se transmudam em dólares. Nem nos reais da nossa atual unidade monetária, que exibe uma mulher cega, ar desolado de quem ganhou e logo perdeu a última olimpíada. Não é difícil fazer lei sob as melhores intenções. Nem vale lembrar o Getúlio, soberbo – ‘a lei, ora a lei…’” Oportuno, porém, lembrar o Bismarck, pasmo – “não me perguntem sobre como se fazem as leis, nem as salsichas”26. Basta não criar leis absurdas que desafiam as leis da economia, criam iniqüidades entre os que contribuem e falsas promessas aos incautos. Ao invés da desmontagem do sistema atual de ônibus, a solução de bom senso está na política da manutenção do que existe, dando-lhe garantia jurídica para investir, melhorar, crescer e gerar mais empregos.  A falta de proporções entre a cegueira positivista que quer licitar tudo e as supostas vantagens restritas unicamente à fria obediência ao princípio da legalidade, aponta que a única solução correta é a prevalência do princípio da segurança jurídica, o respeito às situações definitivamente consolidadas pelo tempo e a proteção da confiança legítima dos concessionários e permissionários existentes.

Se isso se fará por uma reforma legislativa ou através da solução favorável de inumeráveis litígios, já desenhados no mapa jurisdicional do País, vai depender da mea-culpa dos legisladores, da revisão de conceitos do MP e do bom senso dos juízes. O princípio da legalidade, se é que violado foi, deve ceder ao princípio da segurança.  O custo para manter o que existe é zero; para desmontar, milhões.

NOTAS __________________________
1  Vide, entre outros, o Parecer de Ives Gandra da Silva Martins, acerca da interpretação do art. 42 da Lei no 8.987/95, in Questões de Direito Administrativo. Obra Jurídica Editora, 1999. Florianópolis. p. 147-163
2  NOVOA, César García. El princípio de seguridad jurídica en el derecho tributario. Ed. Marcial Pons. Barcelona, 2000. p. 29
3  A expressão é de Luciano Parejo Alfonso, catedrático da Universidade Carlos III, de Madri, no Prefácio da obra de Federico A. Castillo Blanco,  La Protección de Confianza en el Derecho Administrativo, Prólogo, p. 14
4  A frase é citada por Javier García Luengo, in El principio de la protección de la confianza en el derecho administrativo. Madri, 2002. p. notas 13, 14 e 15
5  Cf. o notável trabalho pioneiro do professor Almiro Couto e Silva na Revista de Direito Administrativo, n. 237, p. 271-315,  sob o título “O princípio da segurança jurídica [proteção à confiança] no Direito público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União [Lei no 9.784/99]
6 François Ost, O tempo do Direito, p. 202
7 idem, p. 430
8  CASSAGNE, Juan Carlos e ORTIZ, Gaspar Oriño. Servicios públicos, regulación y renegociación. LexisNexis, Abeledo-Perrot. B. Aires, 2005. p. 210
9  Ac. STF no MS 24268-MG, Rel. Ministro Gilmar Ferreira Mendes
10  Precedente semelhante foi julgado pela Corte alemã  em caso chamado de “A Viúva de Berlim”, em 14 de novembro de 1956, a quem foi igualmente  assegurada a continuidade de pensão, mesmo ilegalmente deferida, em respeito ao princípio da confiança legítima que  a beneficiária tinha quanto a sua legitimidade
11  COVIELLO,  Pedro José Jorge. La Proteccíon de la confianza del administrado – derecho argentina y comparado, p. 49
12  Revista do STJ, ano 8. n. 78. p. 129
13  Curso de Direito Administrativo, 8a ed. Malheiros. SP, 1996. p. 284. n. 160
14 Da Convalidação e da Invalidação dos Atos administrativos. Malheiros. SP, 1996. 2a ed. 2a tiragem, p. 96
15  O Controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais. Malheiros. SP, 1997. p. 75-6
16  Traité de Droit Administratif Allemand, trad. de Michel Fromont, Bruxelas, 1969. p. 341
17  Traité des Actes Administratifs. Paris, 1973. p. 124
18  in Revista de Direito. Público, 84/55
19  Revogação e Anulamento dos Atos Administrativos. Ed. For. Rio, p. 86
20 CASTILLO BLANCO, Federico A.  La protección de  confianza en el derecho administrativo. Ed. Marcial Pons. Barcelona-Madri, 1998. p. 116
21  Introducción al Derecho. Editorial Porrua. México, 1977. p. 112-3
22  A referência é ao sociólogo Teodoro Geiger, feita por Eduardo García Maynes, Filosofia Del Derecho, Ed. Porrua, México, 1974,  p. 477
23  GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos – Direitos não nascem em árvores. Lúmen Júris Editora. Rio, 2005
24 idem, p. 347
25 ibidem, p. 242
26  Suspensão de Segurança 1.404-DF, STJ