Os juízes e a reforma da Previdência

5 de julho de 2003

Compartilhe:

Numa sociedade de massas, na qual tudo é repercutido e amplificado muito rapidamente, nenhuma informação divulgada é inofensiva. Sem levar em conta esse princípio, o governo federal vem conduzindo a discussão sobre a reforma da Previdência com amadorismo e ignorância – para não dizer má-fé.

Duas são as certezas vendidas com impressionante competência: a) a reforma é imprescindível, sob pena de o país “quebrar”; b) os responsáveis pelo déficit são (mais uma vez) os servidores públicos. Quer dizer, não fossem os privilégios concedidos ao funcionalismo estatal, teríamos condições de redistribuir riqueza, melhorando a qualidade de vida dos demais aposentados, investindo em hospitais, saneamento, escolas.

A enorme e indesejável confusão estabelecida a esse respeito na opinião pública tem origem na inexistência de estatísticas confiáveis e na ausência de uma proposta oficial apresentada para debate. O discurso é sedutor, mas as premissas são falsas, resultado de grotesca manipulação de dados. Primeiro: a reforma, ao contrário do que se apregoa, não é imprescindível. Os números do Ministério da Previdência demonstram que não existe déficit na seguridade social, mas extraordinário superávit, o qual não redundou na elevação dos benefícios pagos pelo INSS. Seu destino é desconhecido. Segundo: o funcionalismo público não é responsável pela crise fiscal brasileira. A especulação, a má gestão e o fisiologismo é que explicam o fenômeno.

Assim, a contribuição previdenciária dos servidores, se aplicada, por exemplo, em um fundo de pensão a taxas conservadoras, renderia, ao cabo dos mesmos 35 anos, valores muito superiores aos percebidos a título de aposentadoria integral. Numa palavra: há algo estranho nas contas divulgadas, o que deve ser apurado com coragem e seriedade. É o mínimo que se pode esperar de um governo legitimado pelas urnas, que não aja com leviandade ou cinismo.

Prega-se a isonomia, a sustentabilidade do sistema previdenciário e o fim dos “privilégios adquiridos”, apontando distorções apenas nas aposentadorias do regime próprio, dos servidores. Esquecem-se de dizer que os servidores não possuem fundo de garantia, além de contribuírem (os da União) com 11% sobre a totalidade de seus vencimentos. Omitem, também, que anualmente são concedidos R$ 25 bilhões em benefícios fiscais, que a fraude não é combatida com rigor, que a sonegação gerou uma dívida ativa conhecida de R$ 140 bilhões (isto é, empresas que não pagam à Previdência), que igrejas, partidos políticos e entidades filantrópicas estão isentas de impostos. Não mencionam o regime de aposentadoria dos integrantes dos poderes Executivo e Legislativo, ferindo, aí sim, ao tratar diferentemente os magistrados, o princípio da isonomia.

Diante de um povo que praticamente só conhece a face punitiva do Estado, o efeito perverso daí resultante é a provocação da intolerância para com o servidor público e a magistratura, em particular, agora identificada como detentora de privilégios de difícil justificação ética. merece desconfiança o movimento tendente à mediocrização de tão importante função estatal.

Não bastam argumentos planfetários para a edificação de um país com mais justiça social. para garantir respeito à autoridade da lei e aos direitos das minorias, enfim, da própria sociedade, todo o mundo ocidental civilizado resguarda o Poder Judiciário, tratando de não vulgarizá-lo, possibilitando que seus membros exerçam suas funções com a retidão e a imparcialidade esperadas, sem sofrer as injunções habituais dos sistemas econômico, político e da megacriminalidade. Nos EUA, o paraíso dos fundos privados de previdência e pensão, os membros do Poder Judiciário se aposentam com proventos integrais pagos pelo poder público. Lá, no templo do mercado, há carreiras de Estado que são protegidas das influências agressivas do próprio mercado. Só os levianos, os grosseiramente desinformados ou os civicamente tacanhos podem pensar que tal circunstância funciona em favor dos próprios juízes.

É hora de os condutores da reforma da Previdência deixarem de lado o fetichismo das estatísticas de conveniência, com as quais, pelo seu poder de síntese e dramatização, querem transformar a realidade da vida econômica e social, e sintonizarem o discurso com a prática, no resgate da ética prometida, na correta divulgação de dados, na não crucificação do setor público, que já foi satanizado demais pelos governos anteriores, e na correção criteriosa e honesta das inúmeras falhas do sistema de seguridade social do Brasil.