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Os votos vencidos

23 de outubro de 2012

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No mais momentoso processo já havido no Supremo Tribunal Federal, presentemente em julgamento sob a Relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, que trata do escândalo promovido na Câmara dos Deputados, com o jocoso título de MENSALÃO, dois eminentes membros da alta Corte, os ministros Ricardo Lewandovski e Dias Toffoli, com a edição de votos vencidos, causaram controvérsias na opinião pública, ensejando acaloradas discussões entre os ministros da Corte, com a salutar divergência e fundamentadas defesas que ocorreram com as explanações e contundentes opiniões esposadas.

Torna-se oportuno relembrar o pensamento exarado pelo ministro Celso Mello, eminente decano do Supremo Tribunal Federal, sobre os referidos votos, que, segundo ele, “se revestem da mais alta significação política e jurídica no processo da edificação da República, na construção da prática dos direitos fundamentais proferidos em memoráveis julgamentos por Juízes da Corte Suprema, fazendo prevalecer sempre, sejam quais forem os votos com que nos defrontamos, a autoridade suprema da Lei fundamental da República.

Esse compromisso é também o compromisso do Supremo Tribunal Federal, pois, no Estado Democrático de Direito, não há, – e nem pode haver – margem de tolerância para com interpretações jurídicas, que, longe de se ajustarem à ordem constitucional, culminem, paradoxalmente, por deformar o significado da própria  Constituição da República.

O Supremo Tribunal Federal – que é o guardião  da Constituição, por expressa delegação do Poder Constituinte – não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi  outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República  restarão profundamente comprometidas.

Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental.

Sob tal perspectiva, cumpre observar o itinerário  histórico do Supremo Tribunal Federal, cujas decisões – muitas vezes proferidas em momentos críticos de declínio agudo das liberdades civis e políticas em nosso País – devem  representar valioso paradigma de reflexão no esforço de construção da cidadania e da ordem democrática no Brasil.”

Ainda dissertando sobre o voto vencido o preclaro Ministro expressou: “Aquele que vota vencido não pode ser visto como um espírito isolado nem como uma alma rebelde, pois, muitas  vezes, é ele quem possui o sentido mais elevado da ordem e da justiça, exprimindo, não solidão de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda da realidade social que pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporâneos, na revelação dos sonhos que animarão as gerações futuras na busca da felicidade, na construção de uma sociedade mais justa e solidária e na edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democráticas.

Aquele que vota vencido, por isso mesmo, deve merecer o respeito de seus contemporâneos, pois a história tem registrado que, nos votos vencidos, reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações.

Poderia mencionar neste passo, o nome do Juiz Oliver Wendell Holmes Jr., que se notabilizou, na Suprema corte dos Estados Unidos da América, nos longos anos que ali permaneceu (1902-1932), por suas dissenting opinions, por seus votos vencidos, que, mais tarde, viriam a converter-se em expressão da jurisprudência predominante naquele alto Tribunal.

Revela-se mais importante, no entanto, relembrar, a propósito dos votos vencidos, a própria experiência histórica do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Para tanto, e sem prejuízo de outros casos de grande relevância, basta-me recordar o memorável julgamento do Habeas Corpus nº 300, impetrado, perante este Supremo Tribunal Federal, por Rui Barbosa, patrono dos Advogados Brasileiros, em favor de oficiais generais, de senadores da República, de deputados federais, de jornalistas, como José do Patrocínio, e de poetas, como Olavo Bilac, atingidos em seus direitos e em suas liberdades, por atos prepotentes e arbitrários do Marechal Floriano Peixoto, então no exercício da Presidência da Republica.

No histórico julgamento desse habeas corpus, denegado pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento ocorrido em 23 de abril de 1892, destaca-se, até hoje, o luminoso voto vencido proferido pelo ministro Pisa e Almeida, que não hesitou em sustentar a tese – que, embora solitária, viria a transformar-se, alguns anos depois, no núcleo da jurisprudência dominante nesta Suprema Corte, chegando, até mesmo, a ser consagrada em textos constitucionais  posteriores – na qual acentuava que os abusos, mesmo quando praticados na vigência do estado de sítio, pela Presidência da República, estão sob a jurisdição imediata do Supremo Tribunal Federal, cuja competência, em tal matéria, pode e deve ser exercida, ainda que o próprio Congresso Nacional não se tenha pronunciado sobre a adoção dessa medida extraordinária de defesa do Estado, eis que os poderes de crise, atribuídos ao Chefe do Executivo, não são ilimitados e nem se revelam superiores à autoridade da Constituição.

Afirmou-se, ainda, nesse histórico voto vencido, que a cessação do estado de sítio importava em restabelecimento imediato das  garantias constitucionais, pois a prisão e o desterro, por ordem meramente administrativa, não poderiam prolongar-se indefinidamente, sem processo e sem possibilidade de controle jurisdicional.

Essa tese tão cara à preservação das liberdades individuais, apenas veio a prevalecer alguns anos depois,  por efeito da irresistível força fecundante de que pode revestir-se um simples voto vencido.’’

O desenrolar e a continuidade do julgamento do MENSALÃO, que, por certo, se estenderá até fins de outubro, está a demonstrar o pensamento e a decisão da Corte pela condenação da maioria dos envolvidos e denunciados pelo Procurador Geral da República, com o que se estará fazendo a devida e esperada JUSTIÇA.