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Para entender o plea bargain: Nova modalidade de acordo penal, inspirada no Direito dos EUA, faz parte do pacote anticrime do Ministro da Justiça Sérgio Moro

9 de abril de 2019

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Ministro da Justiça Sérgio Moro enviou o pacote anticrime ao Congresso Nacional para endurecer as medidas contra o crime organizado, a corrupção e os crimes praticados com grave violência. O projeto propõe alterações em vários artigos do Código Penal, do Código de Processo Penal (CPC), da Lei de Execução Penal, da Lei de Improbidade Administrativa, do Código Eleitoral e de outras leis.

Dentre as medidas para introduzir “soluções negociadas” no CPC e na Lei de Improbidade (Lei no 8.429/1992), o projeto inclui a criação no ordenamento brasileiro da modalidade de acordo penal que, na tradição da common law, sobretudo nos Estados Unidos, ficou conhecida como plea bargain. Segundo o texto apresentado pelo Ministro, nos casos em que o investigado confessar um crime – sem violência e com pena máxima inferior a quatro anos – o Ministério Público (MP) poderá propor acordo mediante uma série de condições, que incluem reparações às vítimas, pagamento de multas e prestação de serviços à comunidade.

O principal argumento de Moro é que o plea bargain vai ajudar a Justiça a resolver mais rapidamente casos criminais em que haja confissão. O exato formato do acordo na Lei Anticrime, contudo, ainda é incerto, pois o PL apresentado pelo Ministro tende a ser alterado durante sua tramitação pelo Congresso. Antecipando-nos às discussões legislativas que vão se seguir, entrevistamos o professor de Direito Penal e Processual da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito Rio) Tiago Bottino, para saber mais sobre a natureza do instituto e suas possibilidades de aplicação no Brasil.

Revista J&C – Como funciona o plea bargain?

Tiago Bottino – A proposta pode ser desenhada de várias maneiras diferentes, mas o que temos como referência são os modelos norte-americano e inglês, que já têm 200 anos. Nos EUA os promotores não são obrigados a processar ninguém. Quando acontece um crime, o MP avalia se é o caso de processar em juízo, de fazer acordo ou de não fazer nada. As regras desse sistema foram sendo construídas aos poucos, mas, basicamente, envolvem que a pessoa reconheça que praticou o crime e negocie sua pena. Ao longo do tempo foram feitas mudanças, que resultaram de algumas decisões interessantes da Suprema Corte dos EUA. Hoje há a possibilidade de acordos em que a pessoa não confessa o crime, ela diz ‘vou me submeter a essa pena, mas não pratiquei esse crime’. Isso surgiu a partir do caso Henri Alford versus North Carolina (Alford plea, 1970). O apelido desse tipo de situação é ‘guilty, but innocent’, aceito a pena, mas não fui eu. (risos) Foi uma influência de outros sistemas nos EUA, porque há a tradição de acordos sem reconhecimento de culpa em outros países, inclusive no Brasil, com a transação penal (Lei no 9.099/1995), largamente aplicada nos Juizados Especiais Criminais, em que a pessoa aceita se submeter à pena sem reconhecer culpa. O princípio que está por trás disso é nolo contendere, expressão latina que significa algo como ‘não quero discutir’.

J&C – Um acordo ruim é melhor que um bom processo?

TB – Às vezes é mais fácil para o acusado aceitar o acordo e se submeter à pena do que enfrentar o processo, ainda que seja para, lá no final, demonstrar que é inocente. Dependendo das características da pessoa, responder processo é um peso moral, social, econômico e até profissional. Estar sendo processado pode ser empecilho em várias situações.

J&C – Nos EUA, como é o controle dos acordos negociados pelo MP?

TB – A plea bargain nos EUA vale para qualquer crime. No limite, vale fazer acordo até em homicídio, embora não seja algo comum, porque sempre que o MP escolhe não processar alguém, a responsabilidade recai sobre o promotor, que vai ser cobrado porque deixou um assassino em liberdade ou negociou pena menor para esse assassino. É o que chamamos déficit de justiça. As pessoas querem que as leis definidoras de paradigmas de justiça sejam aplicadas, mas esse papel de quem define o que é justo é partilhado. Uma parte é do Congresso, que faz a lei, outra do MP, que escolhe se vai processar ou fazer acordos. O MP nos EUA não é como no Brasil ou na maior parte da Europa, em que o promotor entra por concurso. Em 35 dos 50 estados americanos o promotor é eleito pelo voto popular, motivo pelo qual se reconhece nele o poder de representar a comunidade. Nos outros 15 estados o promotor é escolhido pelo governador, que pode indicar qualquer pessoa. Se a população achar que o promotor não está fazendo o que é justo, vai pressionar o governador para substituí-lo. Também há uma conexão política muito forte. Já no âmbito federal, os promotores – que no Brasil equivalem aos procuradores da República – são todos indicados pelo presidente e podem ser demitidos a qualquer momento. Quando Donald Trump se elegeu Presidente dos EUA, 49 dos 98 promotores federais foram demitidos no primeiro mês. (…) O modelo é atender a demanda popular. Os promotores podem se pautar dessa forma porque têm controles populares sobre sua atuação, podendo tanto não ser reeleitos quanto ser demitidos pelo político que os nomeou.

J&C – Com essas diferenças, seria possível transpor o plea bargain para cá?

TB – Quando você transplanta alguma coisa, não deve copiar igual, será preciso adaptar à nossa tradição jurídica. Para criar instrumento que dá mais poder ao promotor, será preciso criar também alguns instrumentos de controle. Como aqui o promotor não é escolhido, mas concursado, ninguém quer saber sua opinião, seus valores ou seus princípios. Só queremos saber se é bom técnico e se conhece a legislação, não interessa saber se é de direita, esquerda ou centro. Temos milhares de promotores no Brasil e cada um pensa diferente. Será preciso estabelecer mecanismos de controle e responsabilização por atuações inadequadas.

J&C – Colocar mais poder na mão dos promotores vai gerar incômodo junto aos magistrados? Os juízes teriam dificuldades para abrir mão do controle jurisdicional que hoje têm, por exemplo, sobre as provas utilizadas para embasar acordos ou os critérios para fixação de penas?

TB – Exatamente! Hoje quem fixa as penas é o juiz, depois de apresentadas as provas produzidas pelas partes, mas nesse modelo (de acordo penal) o juiz vai ficar alheio, vai ser colocado de escanteio, sua única função será homologar. (…) É muito complicado deixar na mão do promotor, não pela pessoa do promotor em si, mas porque isso será feito em momento anterior à produção de provas. O juiz aplica a pena no final do processo, quando tem muito mais elementos para decidir. (…) Se não houver processo, não haverá esses elementos. Isso é um problema.

J&C – Como superar esse problema?

TB – A melhor forma de evitar disparidades é fixar critérios claros na lei. Em nossa tradição, a lei diz que os acordos penais só valem para crimes leves, com pena até dois anos, e que não podem envolver pena de prisão. Dessa forma, se minimiza o risco. Se há acordos para que o sujeito se submeta a uma pena sem que se apresente todas as provas em juízo, sem que a pessoa tenha tido a oportunidade de se defender, o que pode ser feito para evitar grandes injustiças é limitar os acordos às penas que não sejam de prisão, como prestação de serviços à comunidade, restrição de direitos, proibição de exercer determinados cargos, etc. Outra lógica por trás dos acordos é a ideia de economizar dinheiro, porque o processo é caro, toma tempo dos juízes, do MP, do servidores públicos, demanda papel, computador e outras estruturas. Como resolver o aumento do número de processos sem aumentar os custos? Fazendo acordos. Agora, se esses acordos colocarem pessoas na prisão, tudo o que foi economizado será gasto em dobro. O custo individual do preso é de quase R$ 3 mil/ mês, fica mais caro que o processo. (…) Se não queremos gastar mais, basta que os acordos não contemplem penas de prisão, para que não tenhamos custos nem com o processo, nem com a execução.

J&C – Os EUA têm a maior população carcerária do mundo. Eventual redução do número de processos no Brasil com o plea bargain poderia resultar, paradoxalmente, na explosão da população carcerária?

TB – Se a gente conhece a experiência de lá, poderemos evitar determinados erros. A explosão carcerária nos EUA começou no final dos anos 1980, e o plea bargain tem 200 anos, então a culpa não é só desse instituto. Foram dois os principais motivos. O primeiro deles é que o Congresso aprovou em 1984 as guidelines, tabela que estabelece penas mínimas muito altas e que os juízes são obrigados a cumprir. Essa lei foi feita porque havia uma discrepância muito grande de juiz para juiz. Não é como aqui, em que as penas são bem graduadas. Lá havia penas de zero à prisão perpétua, com um espaço de subjetividade muito grande. Fizeram essas guidelines justamente para tentar conter a subjetividade dos juízes na aplicação da pena. Com isso, o promotor pode chegar para o acusado e dizer: “Tua pena mínima é de dez anos. Quer fazer um acordo comigo de cinco? Se você for condenado, por mais que seja boa pessoa, o juiz será obrigado a dar dez anos, sem considerar questões particulares. Isso é garantido”. No momento em que o juiz foi amarrado, criou-se um poder muito grande de negociação para o MP e houve a explosão carcerária. Por isso, hoje já se discute nos EUA mudanças nesse modelo, para diminuir os acordos, que lá são super criticados por gerar custos altíssimos e encarceramento em massa. Digo de novo, não precisamos copiar igual. Se tivermos o cuidado de não repetir os mesmos erros, esse modelo poderá ser muito bom para nós.

J&C – Enxerga risco aos direitos fundamentais do acusado, como o direito a um julgamento justo, a um juiz imparcial, de não se auto incriminar…

TB – Não é risco, é certeza. A pessoa vai abrir mão de todos os direitos que tem, de ser processada, de não ser condenada sem provas. Por isso, se tiramos a prisão da jogada, se permitirmos apenas acordos sem pena de prisão, o sujeito estará sim abrindo mão de direitos, mas, por outro lado, a liberdade dele não será afetada. Todos esses direitos foram pensados para proteger a liberdade. (…) Outro problema que eles têm lá e que teremos muita dificuldade de evitar aqui é que nos EUA os promotores pressionam barbaramente as pessoas – e a Suprema Corte já chancelou isso, pode pressionar, pode ameaçar, faz parte do jogo da negociação. Aqui, não tenho dúvida, teremos muitas prisões temporárias e preventivas para pressionar o sujeito a negociar. Outro motivo para não colocar a liberdade nesse cardápio.

J&C – Os hipossuficientes estarão suscetíveis a assinar confissões falsas?

TB – Não tenho dúvida, isso vai acontecer. O sistema lá é muito seletivo, a maior parte dos presos é preta e pobre. Não é diferente aqui, apesar de todas as garantias, também temos uma população carcerária formada majoritariamente por pobres, negros e jovens. Não tem como fugir desse traço de seletividade, porque não é problema da lei nem das instituições, é um problema de quem aplica, é um problema de formação dos magistrados.

J&C – Há alguma cautela que possamos tomar para evitar?

TB – Não, porque isso é um problema de quem o juiz é enquanto pessoa. Para se tornar juiz no Brasil é preciso terminar o curso de Direito e passar vários outros anos estudando, sem trabalhar, para conseguir passar no concurso. Qual é a classe social que consegue bancar de quatro a seis anos de estudos para virar juiz ou promotor? Então, é claro que já existe um corte, só vira juiz hoje quem pertence a uma classe favorecida. Essas pessoas, salvo exceções, acabam tendo pela sua formação um traço de seletividade, de recorte de classe, de gênero e de raça. A lei não consegue impedir esse tipo de preconceito. (…) Seria ingênuo acreditar que podemos fazer uma lei que vai evitar essa seletividade e esses preconceitos.

J&C – No caso específico dos crimes contra o patrimônio público, há risco de que acordos ruins tragam prejuízos aos interesses da sociedade?

TB – Há risco de déficit de justiça nas duas pontas. Hoje nos EUA estima-se entre 1% a 2% de inocentes condenados. Em uma população carcerária com 2,5 milhões de presos, são milhares de pessoas. Há injustiça na outra ponta também. Para dar um exemplo da colaboração premiada, os diretores da Petrobras ou os grandes empresários que praticaram corrupção receberam penas, em média, de dois anos de prisão. Mesmo que eles tenham pago multas milionárias ou passem outros dois anos em prisão domiciliar, será que esse acordo atende aos interesses da Justiça? Após vários anos de Operação Lava Jato, os políticos receberam penas altíssimas, mas os empresários corruptores não. Esses fizeram acordos e receberam penas baixas. Os membros do MP escolheram beneficiar corruptores com acordos para pegar os agentes públicos corruptos. Talvez fosse melhor fazer o oposto. Você consegue não eleger um político, mas não consegue se livrar do dono de uma grande empresa que vai continuar operando. (…) Talvez a população quisesse mesmo que os políticos pagassem, mas o ponto é que as escolhas do MP foram feitas sem que houvesse controle popular ou qualquer forma de responsabilização.

J&C – E quanto à possibilidade de alguém assumir falsas condutas, sob ameaça ou intimidação, para proteger, por exemplo, líderes de milícias ou outras organizações criminosas?

TB – Isso já acontece hoje nos presídios. O sujeito pobre, que não tem onde cair morto, assume uma morte que acontece no presídio em troca de dinheiro para sustentar a família do lado de fora. Quem assume fica mais dez anos preso, quem matou sai amanhã. Se forem banalizados os acordos, feitos com menos provas, esse risco vai existir. A forma de evitar é responsabilizar quem tomou a decisão. Cada vez que for proposto um acordo é preciso saber se o caso foi adequadamente investigado. Hoje o MP denuncia uma porção de inocentes, mas quando eles são absolvidos o que acontece com o promotor que denunciou errado? Não ganha nem careta do chefe, nenhuma advertência, nada. (…) Não pode ser assim, tem que responsabilizar. Hoje é difícil responsabilizar porque a lei obriga que o MP processe todo mundo. É preciso mudar isso para essa desculpa desaparecer.

J&C – O projeto de lei é o melhor caminho para criar o plea bargain?

TB – Tem que ser por lei. Existe hoje uma resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que criou acordos penais, mas já ajuizaram ação no Supremo para questionar a legalidade, porque o CNMP não pode fazer leis. O modelo é razoável, tem várias coisas boas, mas não pode ser feito por órgão administrativo. (…) Se o Ministro da Justiça tiver interesse em fazer algo muito bem feito, não pode se fiar só na competência dos assessores dele, porque está cercado de pessoas que pensam muito parecido. Será preciso fazer o projeto, submeter à consulta pública, deixar que professores, advogados, juízes e outros membros do MP que não fazem parte daquela mesma linha de pensamento possam discutir, depois esperar mais seis meses e só então consolidar o projeto para levá-lo ao Congresso. Essa é a forma de fazer uma lei, que muda muito o nosso sistema, correndo menos riscos de fazer errado. Não podemos fazer leis sem nos preocuparmos com todos os efeitos que ela vai gerar.

 

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