Paridade de gênero nas instituições, a revolução do óbvio

7 de março de 2022

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No meio jurídico, segundo informa a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mulheres representam aproximadamente 50% dos inscritos na Instituição. No Brasil, temos, portanto, uma paridade numérica entre homens e mulheres na advocacia.

Em que pese o fato de metade da classe ser composta por advogadas, a OAB, criada em 1930, nunca teve uma mulher na Presidência da entidade federal e, até 2020, todas as 27 seccionais eram presididas por homens. Na verdade, nos 90 anos de existência da entidade, somente dez mulheres foram eleitas presidentes de seccionais.

Com a aprovação da proposta de paridade de gênero – apresentada por Valentina Jungmann, em Fortaleza-CE, durante a III Conferência Nacional da Mulher Advogada, referendada pela Presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada, Daniela Borges, e por cerca de três mil participantes do evento, entre homens e mulheres – o quadro se modificou. O Conselho Federal alcançou, pela primeira vez, uma composição paritária, com 81 conselheiras, entre titulares e suplentes. Trata-se de uma evolução significativa da participação das mulheres na gestão da entidade, tendo em vista que o recorde feminino, em gestões anteriores, foi de apenas 16 conselheiras federais.

O processo eleitoral das seccionais da OAB de 2021 foi o primeiro sob o efeito da paridade de gênero. E os resultados já puderam ser vistos com cinco mulheres eleitas para conduzir as seccionais de São Paulo, Bahia, Santa Catarina, Mato Grosso e Paraná. Em 89 anos, a OAB-SP – a maior seccional do País – teve, pela primeira vez, uma mulher na Presidência. Patricia Vanzolini foi eleita com 67.395 votos para comandar a entidade paulista no triênio 2022/2024. Uma vitória também inédita na Bahia, onde se elegeu uma chapa 100% feminina. A advocacia baiana depositou a sua confiança em Daniela Borges e na sua Vice, Christianne Gurgel. Num cenário de 27 seccionais, a eleição de cinco mulheres ainda é pouco, mas significa um grande passo na representação classista.

De fato, seria natural que a representação de uma classe, composta por aproximadamente 50% de mulheres, contasse com uma equivalência percentual na gestão institucional. Mas não é, comprovadamente, o que nos mostram os números, as estatísticas e a história da OAB. Então, está demonstrada a necessidade de políticas públicas e institucionais que fomentem e ampliem participação feminina nestes cenários.

A OAB, com paridade de gênero, pode criar e manter políticas institucionais que incentivem e favoreçam a eleição/indicação/nomeação de outras mulheres, em cargos de liderança, em eventos, seminários e congressos – fomentando, inclusive, a indicação paritária ao quinto constitucional. Ter o mesmo número de homens e mulheres, concorrendo ao quinto constitucional nas indicações da entidade, significa contribuir para reduzir a disparidade de gênero também encontrada, no Brasil, nos tribunais superiores. Para mencionar apenas os dois principais tribunais do País – temos o Supremo Tribunal Federal, com 11 membros, dentre os quais, apenas duas mulheres; e o Superior Tribunal de Justiça, composto de 33 ministros, com somente seis mulheres em seus quadros.

Difícil se posicionar contra a paridade de gênero nesse contexto, eis que não se pode sustentar maior aptidão dos homens no exercício das funções inerentes à gestão de uma entidade de classe ou no desempenho de atribuições de cargos de liderança ou técnico-jurídicos. Deste modo, é inevitável a adoção de políticas que corrijam essas distorções, não sem antes percorrer o caminho de identificar a causa deste problema estrutural.

É consenso que o gênero (feminino ou masculino) não interfere na competência, no desempenho das atribuições inerentes às profissões jurídicas. Então, a indagação que não se pode afastar é a seguinte: Por que mulheres, no meio jurídico, ainda são minoria, em cargos de liderança ou de hierarquia superior?

É bem verdade que liderança é aptidão pessoal, alguns a têm e outros não. Liderança é, também, escolha. Alguns almejam cargos, posições de comando; outros não. E nos Estados Democráticos de Direito, como o nosso, temos que respeitar essas aptidões e essas escolhas, de forma individual e personalíssima, garantindo, a cada ser humano, independentemente do gênero, a liberdade para exercer suas escolhas, na condução da sua carreira profissional.

Os caminhos que nos levam aos cargos jurídicos de liderança, postos pelo ordenamento jurídico pátrio, são diversos, podendo depender de indicações técnico-políticas (como ocorre com o quinto constitucional), de aprovação prévia em concurso público (como ocorre com o provimento de cargos públicos) e/ou de escrutínio (como ocorre nas eleições da OAB). Estes são os sistemas disponibilizados aos homens e mulheres, aparentemente, em condição de igualdade.

De fato, não há vedações, proibições normativas ou legais que impeçam a presença feminina em cargos de chefia e/ou superiores. Contudo, temos que reconhecer que as aspirações de liderança, quando exercidas por mulheres, são abafadas desde o início da vida profissional e, também, no âmbito familiar e de amigos. Elas são instadas a responder, não raras vezes, “para que e por que” querem ou pretendem ocupar posições de liderança e/ou cargos de chefia. Não há o aplauso, a compreensão e o incentivo dados ao homem que revele a mesma pretensão. Homens, antes de assumirem um cargo de chefia e/ou de coordenação/liderança, não são questionados se são ou não casados, se pretendem engravidar nos próximos anos, com quem vão deixar seus filhos durante o horário de trabalho, nem recebem comentários a respeito da sua aparência física.

Esse peso é carregado pelas mulheres, apenas por serem mulheres.

Exatamente por isso, chegamos a 2022, ainda com essa pauta de paridade de gênero nas instituições de classe, mesmo na advocacia, profissão que reúne homens e mulheres, numa proporção praticamente equânime. Imaginem o que ocorre noutros ambientes, em que a base ainda é predominantemente masculina, como na Engenharia, nas Ciências da Computação ou no meio militar.

Propor e adotar políticas públicas que tratem a paridade de gênero como um direito universal e integrado, a exemplo do que se experimentou na OAB em 2021, é o compromisso de todos que visam a ampliar a representação e tornar mais plurais as nossas instituições. Uma composição colegiada paritária fortalece a classe, enriquece o debate e as decisões por meio da diversidade, porque nada supera, em eficácia, a concentração de poder de decisão nas mãos de quem já experimentou violações ou restrições de seus direitos. Com efeito, a ampliação da agenda equitativa de gênero tem a ver com valores libertários e com a própria democracia.

Reparem que, na política, mesmo depois das mulheres conquistarem o direito ao voto, com a previsão no Código Eleitoral, em 24 de fevereiro de 1932, e do voto feminino ter sido incluído no texto da Constituição Federal em 1934, a presença das mulheres se mantém mitigada e sub-representada no Poder Legislativo, em esferas federal, estadual e municipal, nas quais os ambientes continuam revestidos de fortes notas masculinas em suas composições e estruturas, a despeito das políticas de cotas impostas por lei aos partidos políticos (Lei no 9504/1997).

Realmente, a presença minoritária de mulheres no topo hierárquico dos ambientes profissionais e políticos possui fortes contornos sociais e culturais e, por isso mesmo, a mutação das perspectivas de gênero requer tempo de absorção e, por óbvio, pressupõe a mudança de postura das mulheres em face da sociedade e, também, em reciprocidade, da sociedade em face das mulheres. As políticas públicas são positivas, afirmativas e cumprem o efeito de produzir algum resultado, mas devem vir aliadas à educação. Oportunizar a discussão sobre esse tema, principalmente numa revista intitulada “Justiça & Cidadania”, cumpre um efeito didático importantíssimo, que não pode ser negligenciado por aqueles que desejam reconstruir a representação nas instituições, nos órgãos e nos Poderes.

Noutro enfoque, não se pode olvidar que ambientes majoritariamente masculinos intimidam e afastam a participação das mulheres, ou, no mínimo, não são a elas atrativos. Em muitos casos, às mulheres ficam reservadas as posições mais baixas, subalternas, na hierarquia da organização, mantendo elevada a distinção salarial/rendimentos, mesmo quando as mulheres são igualmente ou mais capacitadas que os homens. O ambiente predominantemente masculino constitui mais um degrau na árdua e longa escalada imposta às mulheres que insistem em se inserir no topo hierárquico dos mercados. A previsão formal de paridade de gênero se afigura, portanto, como um importante passo, capaz de acelerar a correção da distorção existente, fazendo com que as mulheres reconheçam que os mais altos escalões, privados e públicos, também podem ser ocupados por elas.

Apesar dos resultados positivos das políticas afirmativas e das conquistas das mulheres, ainda há muito preconceito e muitas dúvidas sobre a capacidade de se entregar ao trabalho. Geralmente, os dirigentes e gestores enxergam que o homem tem mais disponibilidade no trabalho, para viajar e/ou realizar hora-extra, afirma Adriana Paz, cientista social e Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Ora, não adianta só concordar e/ou aplaudir as mulheres que se arriscam a exercer cargos ou funções de liderança. A sociedade precisa absorver o conceito isonômico como ponto fundamental para fortalecer as instituições e os projetos num contexto paritário e plural e, por que não dizer, acolhedor e democrático. Tem que suprir afazeres que são exercidos pelas mulheres, mas que possam ser desempenhados por outros, em todos os redutos sociais e domésticos, para que elas possam alçar postos hierarquicamente superiores. Aceitar e/ou pretender que a mulher se arrisque em cargos de liderança, vencendo, sozinha, desafios como o preconceito e as duplas (ou até triplas) jornadas é pouco, e chega a ser cruel.

A iniciativa privada já reconheceu que a igualdade também impacta na retenção de talentos, já que trabalhadores tendem a priorizar ambientes inclusivos e capazes de valorizar o potencial de seus diversos funcionários. A diversidade, por isso, aumenta a criatividade, enriquece as perspectivas da empresa e resulta em inovação e produtividade.

Não é à toa que a meta para o alcance da igualdade de gênero está concentrada no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5 da Organização das Nações Unidas (ONU) e está transversalizada em outros 12 objetivos globais, objetivando acabar com todas as formas de discriminação contra as mulheres e meninas, em qualquer parte, merecendo destaque, dentre outras intenções, a de garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.

Trata-se de um passo decisivo para a igualdade de gênero, que integra um plano de ação para promover o desenvolvimento sustentável e a erradicação da pobreza no mundo. Além dessas políticas de promoção e empoderamento das mulheres, foram definidas 169 metas globais, com foco nas pessoas, no planeta, na prosperidade e na paz mundial. Essa agenda busca fortalecer a paz universal com mais liberdade, requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável e para o fortalecimento democrático.

Todos os países e todas as partes interessadas, atuando em parceria colaborativa, implementarão este plano, que pretende libertar a raça humana da falta de oportunidades; do machismo; dos revezes dos menores salários, mesmo realizando as mesmas tarefas dos profissionais homens; do assédio; das dificuldades, na contratação e manutenção de emprego e de cargos de chefia, com a maternidade; além do preconceito e da discriminação contra as mulheres; que é um grande problema para a humanidade em diversos sentidos, do contexto social ao econômico.

Medidas e políticas públicas ousadas e transformadoras são urgentemente necessárias para direcionar o mundo para um caminho sustentável e resiliente. Ao embarcarmos nesta jornada coletiva, não podemos deixar ninguém para trás. No meio jurídico institucional, a OAB deu o primeiro passo. A Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape), começa a trilhar o mesmo caminho, sob os aplausos daqueles que sonham com espaços privados e públicos que assegurem, visceralmente, uma paridade de gênero em seus processos, ideais, metas e condutas cotidianas. Caminhar é preciso. Avançar com gestões plúrimas e paritárias é essencial. Vamos juntos!

Notas___________________________________

1  Site da OAB – quadro institucional da Advocacia – quantitativo por gênero.
2  https://blog.bettha.com/mulheres-mercado-de-trabalho/