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Pesquisa revela contornos regionais da violência contra a mulher

31 de março de 2017

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Levantamento do Observatório da Mulher contra a Violência apresenta, pela primeira vez, dados sobre os valores repassados pela União, desde 2006, para manutenção das Unidades Especializadas de Atendimento que existem em cada estado brasileiro.

Em agosto do ano passado, a Lei Maria da Penha (no 11.340/2006) completou dez anos de vigência no Brasil. Esse período de tempo foi a base de uma análise inédita do Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), que mostra os índices de ocorrências registrados em cada uma das Unidades da Federação (UF). Apesar do avanço que representa a Lei, os números do “Panorama da violência contra as mulheres no Brasil – Indicadores nacionais e estaduais” não dão margem para comemorações. A taxa de violência letal contra este grupo populacional, como um todo, aumentou em 10% entre 2006 e 2014, refletindo o aumento desse tipo de violência em quase todos os estados.

Roberta Viegas é a coordenadora do OMV, órgão do Senado Federal criado em 2016 e responsável pela catalogação e consolidação de dados referentes à violência contra as mulheres no Brasil. De acordo com ela, o Brasil produz dados de pouca qualidade e de maneira esporádica, não somente na área de violência contra as mulheres, mas de maneira geral. “O Observatório nasceu a partir da constatação de que, para o aperfeiçoamento e efetividade da política de enfrentamento à violência – e de qualquer política pública –, é imprescindível um correto diagnóstico do fenômeno, de maneira aprofundada e que leve em consideração as suas especificidades”.

Este estudo traz o importante diferencial de mapear as ocorrências de violência por estados/regiões, o que o permitiu verificar que os contornos são bem diferentes em cada local analisado. Ao avançar além das taxas nacionais, o OMV tem o objetivo de lançar luzes sobre a diversidade de situações e, consequentemente, apoiar a criação de medidas e ações governamentais a serem adotadas no combate à violência.

Macro e micro universos

De fato, com dados coletados pelo Instituto DataSenado, a pesquisa indica que 18% das mulheres entrevistadas afirmaram já terem sido vítimas de algum tipo de violência doméstica, seja ela física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial. Quando se fala em mortes, o número também impressiona: somente em 2013 foram registrados 4.762 homicídios de mulheres no ano, ou 13 assassinatos por dia, em média (os números são do Mapa da Violência 2015, elaborado pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz).

Analisando-se estas estatísticas de modo regional, a pesquisa do OMV mostra, por exemplo, que, em 2014, enquanto alguns estados, como Santa Catarina (3,2 homicídios por 100 mil mulheres) e São Paulo (2,7) apresentaram taxas 30% inferiores à média nacional (4,6), outros estados registraram índices superiores a 1,5 vezes essa média, a exemplo de Alagoas (7,4), Goiás (8,4), Mato Grosso (7,0) e Roraima (9,5).

Outra variável relevante é que alguns estados chegam a apresentar taxa de homicídio de mulheres pretas e pardas mais de três vezes superior a de mulheres brancas, como é o caso de Amapá, Pará, Roraima, Pernambuco, Piauí e Espírito Santo. Ou seja, enquanto a violência letal contra mulheres brancas foi reduzida 3%, em média, no período, a taxa de homicídios de mulheres pretas e pardas aumentou, em média, 20%.

Roberta Viegas explica que a pesquisa permitiu verificar que, após a vigência da Lei Maria da Penha, enquanto houve redução de 20% das taxas de homicídios de mulheres na região Sudeste, as outras regiões apresentaram aumento significativo dessas taxas, sendo de 53% na região Centro-oeste, de 20% na região Sul, de 38% na região Norte e de 37% na região Nordeste. “Com os poucos dados disponíveis, não é possível tirar conclusões sobre as razões da aparente diminuição da violência contra mulheres verificada nos estados da região Sudeste. Além disso, o mesmo ocorreu em outros estados localizados também em outras regiões, como Rondônia e Pernambuco”, comenta a coordenadora.

Ela acrescenta que, da mesma forma, os dados não permitem afirmar se o aumento das taxas de violência de determinados estados corresponde ao aumento da violência contra mulheres, ao aumento da violência em geral, ou à redução na subnotificação de ocorrências. “Qualquer uma das três hipóteses é plausível e merece ser aprofundada por meio da obtenção de mais dados junto a cada estado, num trabalho que só é possível de ser feito em parceria OMV-Estado. A investigação desse fenômeno é fundamental para se aprofundar o conhecimento acerca da violência contra mulheres no Brasil, conhecendo a realidade específica de cada estado e até mesmo de cada município”, afirma ela.

O levantamento do OMV também mostra que, de acordo com os números registrados pelo serviço do Ligue 180, da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), em 2014 foram feitos 485.105 atendimentos, sendo 11% (52.597) relativos à violência contra as mulheres. Desse total, 52% das mulheres mencionaram ter sofrido violência física e 43% relataram que tais ocorrências são diárias. Aqui também o estudo mostra uma particularidade regional: algumas Unidades da Federação se destacam na utilização do referido serviço, como o Rio de Janeiro (62,6 relatos para cada 100 mil mulheres) e, em especial, o Distrito Federal (109,8) – a média nacional é de 38,7 para o mesmo grupo de vítimas.

tabela mapa brasil

O estudo mapeou também um tipo específico de violência: o número de ocorrências de estupro por grupo de 100 mil mulheres registrado em cada Unidade da Federação, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Verifica-se que as regiões Norte e Sul do País foram as que apresentaram os maiores índices de registro de ocorrências deste tipo. Individualmente, é possível destacar Acre (120,7 para cada 100 mil mulheres), Mato Grosso do Sul (106,3) e Roraima (110,4), todos com taxas superiores ao dobro registrado por outros estados – neste caso, a média nacional é de 48,1, enquanto que a UF com índice mais baixo é o Espírito Santo, com 11,9.

No que diz respeito às ocorrências de qualquer tipo de violência contra mulheres, enquadradas em alguma categoria da Lei Maria da Penha, constata-se que 12 das 27 Unidades da Federação não disponibilizaram dados consolidados. Poucos estados, a exemplo de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal, já apresentavam disponíveis relatórios estruturados, com a classificação das ocorrências por tipos de violência.

Recursos para a rede de atendimento

Talvez o dado mais relevante da pesquisa recente do OMV seja aquele que diz respeito à rede de atendimento coordenada pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM). Pela primeira vez, tem-se um levantamento do número de Unidades Especializadas de Atendimento (UEAs) em funcionamento e do montante de recursos repassados pela União, por meio de convênios assinados com a SPM, no período de 2006-2016. Tais valores são destinados aos municípios, estados ou entidades não governamentais para cumprir com os mais diversos objetivos, desde obras de construção ou a manutenção das UEAs até a capacitação de agentes envolvidos no atendimento a mulheres em situação de violência.

Oferecendo às vítimas de violência serviços de assistência social, justiça, segurança pública, entre outras ações, a rede de UEAs é composta por serviços de abrigamento, delegacias e promotorias especializadas, núcleos de gênero do Ministério Público, defensorias especializadas de atendimento à mulher, juizados especiais e centros especializados de atendimento à mulher em situação de violência.

Os valores que cada UF receberá são definidos com base na análise comparativa das informações referentes aos registros de violência. O estudo da OMV mostra, por exemplo, que o Distrito Federal, o Amapá, o Acre e o Tocantins, apresentam mais de três UEA em funcionamento para cada grupo de 100 mil mulheres, ou seja, mais do que o triplo da taxa média nacional, de 1,03 UEA/100 mil mulheres. Em contrapartida, o caso de Alagoas, Bahia, Ceará e Paraná, registraram taxas iguais ou inferiores a 0,70 UEA/100 mil mulheres.

Na opinião de Roberta Viegas, o panorama indica que os repasses da União para os estados são escassos: em média R$ 4,17 por mulher no período de 10 anos. São Paulo foi o estado que recebeu o menor montante em valor total: em torno de R$ 2 por mulher no decênio. O Acre, por sua vez, foi o estado que recebeu o maior montante por mulher: em torno de R$ 30 por mulher no decênio, perfazendo a quantia de R$ 3,02 por mulher/por ano.

Além disso, pesquisa recente do DataSenado, em parceria com o OMV, sobre as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher verificou que, na opinião de agentes, a quantidade de delegacias é insuficiente para a demanda local e que a integração rede de atendimento às mulheres em situação de violência, de fato, ainda é frágil.

“Quando se pretende lidar com as dificuldades enfrentadas pela rede de atendimento, somente o dado do valor transferido pela União não basta. Para um diagnóstico mais completo que possa permitir uTabelama efetiva comparação entre os estados dos recursos, por mulher, destinados ao enfrentamento da violência contra as mulheres, é fundamental levar em consideração montantes vinculados aos orçamentos estaduais, que financiam o pagamento de policiais e manutenção das delegacias, por exemplo. Assim como os municipais, que podem ser responsáveis pelo pagamento de profissionais de saúde. Esse é um dos pontos que o Observatório pretende aprofundar, em uma ação que pressupõe parceria com Assembleias Legislativas e/ou Câmaras Municipais”, esclarece a coordenadora do OVM.

 

 

Um mapa da violência com a mulher no Rio de Janeiro

O levantamento da OMV revela que, em 2014, o estado do Rio de Janeiro apresentou uma taxa de 5,3 homicídios por 100 mil mulheres, superior à taxa média nacional, de 4,6 homicídios por 100 mil mulheres (dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM, do Ministério da Saúde).

A boa notícia é que estes índices estão em queda desde 2006. A taxa de homicídios de mulheres brancas foi reduzida em 19%, passando de 4,8 a 3,9, enquanto que a relativa às mulheres pretas e pardas diminuiu, no mesmo período, em 15%, passando de 7,4 a 6,3 homicídios por 100 mil.

Por outro lado, no que se refere às ocorrências de estupro registradas em 2014, o Estado apresentou um número de ocorrências de estupros para cada grupo de 100 mil mulheres superior à taxa de estupros registrada no País. O mesmo ocorreu com o número de relatos de violência, por grupo de 100 mil mulheres, registrado pelo serviço do Ligue−180, da SPM – a taxa se mostrou superior às de outros estados. Em 2014, foram registrados 169.428 Boletins de Ocorrência dentro do escopo da Lei Maria da Penha, sendo 420 homicídios dolosos (feminicídios). Esse número corresponde a 1.936 registros de ocorrência por 100 mil mulheres.

No que diz respeito à rede de atendimento às vítimas funcionamento no Estado, atualmente são 78 UEAs, ou 0,89 unidades para cada 100 mil mulheres – taxa inferior à média nacional, de 1,03 UEAs. Em relação aos repasses da União para manutenção desta rede, a SPM recebeu, desde 2006, recursos da ordem de R$ 51,8 milhões, o que perfaz o repasse do montante de R$ 5,92 por mulher residente no estado em todo o período analisado. O valor é superior à média nacional de repasses da União, por mulher, no mesmo período (R$ 4,19).

Para além das estatísticas

Com tais dados em mãos, será possível criar ou aperfeiçoar políticas públicas para combater a violência contra as mulheres? De acordo com Roberta Viegas, para a proposição de políticas, bem como para o monitoramento e avaliação das políticas existentes, é necessário o País se comprometer com o investimento na coleta e sistematização dos dados. “Somente a partir daí poderão ser pensadas intervenções públicas mais adequadas às especificidades da violência em determinada região, estado, ou mesmo município”, avalia.

Um exemplo? Pode ser verificado que em determinado estado há maior incidência de violência sexual do que em outros. Nesse caso específico, pode ser recomendado priorizar o investimento em formação de equipes multidisciplinares de saúde capazes de fazer o atendimento a essas vítimas e, ainda, coletar os vestígios dessa violência, que, além de oferecer um atendimento mais humanizado à vítima, disponibiliza às autoridades policiais elementos que identifiquem os autores da violência e comprovem o ato. “Isso, ao mesmo tempo em que evita revitimizar a mulher, fazendo-a passar por outro exame, e reduzindo a subnotificação do crime”, conclui a coordenadora do OMV.