Por uma comunicação não violenta no sistema de justiça

5 de dezembro de 2023

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O tema da comunicação não violenta começa a ocupar importantes espaços na rotina de magistrados e profissionais do Direito. Sua introdução vem ocorrendo de forma gradativa, especialmente por meio de cursos de formação para o uso dos métodos consensuais de tratamento de conflitos, como mediação, conciliação e Justiça Restaurativa.

A comunicação não violenta (CNV), também denominada comunicação compassiva, é uma abordagem específica da comunicação, desenvolvida por Marshall Rosemberg, voltada a aperfeiçoar a forma como as pessoas se expressam e ouvem umas às outras, gerando conexões e, com isso, facilitando a resolução pacífica das controvérsias. Trata-se de um processo comunicacional, estruturado sob quatro elementos (observação, sentimento, necessidade e pedido), que evita reações automáticas entre os interlocutores, permitindo a formulação de respostas conscientes, honestas, claras, respeitosas e empáticas.

Forjados, porém, para o litígio, os atores do sistema de Justiça acionam poderosas armas quando se comunicam no processo. A retórica empregada carrega agressões, acusações recíprocas, ironia, julgamentos moralizadores, pré-concepções, determinações, advertências e ameaças, como se a defesa dos pontos de vista e a condução escorreita do processo dependessem disso.

Vencer o debate e ver as próprias razões triunfarem é tão ou mais importante do que a própria solução dos conflitos.

Dificilmente, porém, essa linguagem contribui para o tratamento adequado dos conflitos sob julgamento. Ao contrário, ela torna os interessados ainda mais beligerantes do que chegaram ao processo e em estado de alerta, de prontidão para o contra-ataque. Resta, ao final, como única alternativa, uma solução adjudicada, carregada de imperatividade, que pretende resolver a lide, mas que não harmoniza as relações humanas que lhe deram origem.

O vencido não será convencido, recorrerá indefinidamente e, ao final, creditará ao Estado-juiz a responsabilidade por sua frustração. O vencedor, por sua vez, sairá do processo com a convicção, reforçada pela vitória, de que a solução para outros problemas estará em litigar e residirá nas mãos de um terceiro. Quanto ao julgador, estará cada vez mais à vontade para substituir-se aos interessados e, ao ser “confrontado com a frustração de não ver cumprida alguma decisão que encontra inexequibilidade na vida real”, tenderá a reagir, invocando seus poderes. Há, aqui, um intrincado movimento tautológico, a gerar ainda mais litigiosidade.

Diversos fatores podem dificultar ou mesmo bloquear a adequada comunicação entre os atores do processo.

Segundo Rosemberg, um dos fatores que mais alienam a comunicação é a tendência de se fazer julgamentos moralizadores, juízos “que subentendem uma natureza errada ou maligna nas pessoas que não agem em consonância com nossos valores”. Segundo o autor, “culpa, insulto, depreciação, rotulação, crítica, comparação e diagnósticos são todos formas de julgamento”. Julgar um comportamento como certo ou errado, bom ou mau, responsável ou irresponsável, inteligente ou ignorante nada mais faz do que estabelecer barreiras à adequada e produtiva comunicação.

Julgamentos moralizadores, porém, são muito comuns no contexto forense, em decisões, petições, audiências ou sessões. Desde o juiz, ao acusar de desleal o causídico ou usar de ironia para desdenhar uma das partes, até o advogado, que peticiona desqualificando o juiz ou a contraparte. São interações que trazem consigo o pressuposto de que o interlocutor é mal-intencionado, desonesto ou inadequado e têm por objetivo envergonhá-lo, diminuí-lo ou mesmo intimidá-lo.

Dito isso, como compatibilizar os pressupostos da CNV com a função de julgar, atribuída ao magistrado? Como exigir do advogado, ao patrocinar os interesses de seu cliente, que não avalie negativamente a contraparte? Como falar em responsabilidade subjetiva, na busca de uma indenização, sem atribuir a alguém a culpa pelos danos?

Não há uma resposta simples para tais perguntas e a própria legislação, matéria-prima dos operadores jurídicos, contém comandos, vedações e cominações. Porém, é possível dizer que existem diferenças importantes entre reconhecer ou não direitos, a partir da avaliação das razões trazidas à apreciação e fazer julgamentos moralizadores, adotando linguagem dicotômica ao classificar alguém como bom ou mau, honesto ou desonesto. Rosemberg lembra que todos fazem juízos de valor sobre as qualidades que admiram na vida, como liberdade, honestidade ou paz e que isso não se confunde com os julgamentos moralizadores de pessoas que estão em desacordo com esses valores. Se honestidade é um valor relevante, aquele que praticou uma ação que não corresponda a esse valor, ainda que por ela deva responder, não é necessariamente alguém mau ou ontologicamente desonesto. A linguagem de sentenças, petições e pareceres deve ser assertiva, mas não precisa ser moralizadora.

A filosofia da não violência, nas palavras de Pelizzoli, tem um sentido realista e “não pede necessariamente que nos amemos, mas que evitemos algo que sempre tememos e queremos evitar: a violência, a violação de outrem”, cuja tendência é reverberar no tempo e nos espaços de convívio.

O debate sobre a forma de comunicação em juízo é fundamental e deve entrar na ordem do dia dos cursos de formação dos profissionais do Direito. Pesquisa referida por Rosemberg, e que foi desenvolvida por O.J. Harvey na Universidade do Colorado, constatou que há mais violência nos espaços em que as pessoas são rotuladas como boas ou más. A partir de amostras aleatórias de obras literárias de diversos países, que foram tabuladas quanto à frequência no uso de palavras que avaliam as pessoas, o pesquisador constatou que há correlação elevada entre o uso frequente dessas palavras e a incidência de violência.

Trata-se de saber ouvir as próprias necessidades e as dos outros, comunicando-as com clareza, evitando, sempre que possível, que pedidos sejam feitos sob a forma de exigências. O pressuposto é que aquilo que o outro ouvir e soar como uma crítica impedirá o estabelecimento de uma conexão que permita colaboração. Poderá até motivar o interlocutor, destinatário da censura ou exigência, a agir e fazer o que se pretende, mas será por medo, culpa, vergonha ou ameaça de punição, fatores que não sustentarão uma relação colaborativa logo na sequência, por não serem voluntários.

É interessante perceber que na comunicação forense diversas expressões remetem diretamente ou trazem velada a crítica a possíveis comportamentos. Ordena-se, adverte-se e requisita-se porque se pressupõe que o outro será renitente em atender a uma necessidade. Utilizam-se expressões violentas, por vezes em caixa alta e coloridas, porque se supõe que, de outra forma, os argumentos não serão lidos e ponderados e aquele que escreveu tem uma profunda necessidade de que o sejam.

Rosemberg alerta para o fato de que pouquíssimas pessoas são ensinadas a expressar suas necessidades e percebê-las nos outros ao se comunicarem. Ao contrário disso, aprende-se a crítica, o insulto e formas de comunicação que distanciam as pessoas. “Em vez de ambos os lados expressarem suas próprias necessidades e compreenderem as da outra parte, todos entram em disputa para ver quem está certo.” Obviamente isso alimenta os conflitos, e o Direito ainda tempera esse caldo cultural com grandes doses de ironia, especialmente nos discursos orais.

A comunicação, seja qual for a área do conhecimento, é essencial. No âmbito jurídico, porém, o desafio no desenvolvimento de competências relacionadas ao saber conviver é ainda maior. O papel de todo operador do Direito é contribuir para a harmonização das relações sociais, atuando em momentos de conflito e crise, ajudando a solucioná-los ou, ao menos, evitando que escalem.

A litigiosidade, no Brasil, é um fenômeno extremamente complexo e, portanto, multifatorial. Seu tratamento, porém, vem sendo reativo e pouco funcional. O volume crescente de casos novos, assim como o surgimento de formas anômalas de litígios, sinaliza para um escalonamento do fenômeno. Abordá-lo requer mais do que atuação reativa, requer atenção para as estruturas dos conflitos e para os pressupostos do pensamento sistêmico. Atuar nas estruturas é alcançar a rede de relações, cujas interações vêm produzindo os resultados que se quer mudar. Significa conectar, desconectar, reconectar, abrir espaços para que valores e modelos mentais possam ser trazidos à mesa e ponderados.

A comunicação, em tal contexto, pode favorecer ou dificultar as conexões. A adoção do processo da CNV traz reais possibilidades de mudança.

Trata-se do desenvolvimento de competências específicas. Aprender CNV é possível, a qualquer momento, e produz enorme impacto, nos âmbitos pessoal e profissional, ao habilitar o aprendiz na arte de perceber que todas as mensagens – transmitidas ou recebidas – expressam necessidades, desenvolvendo técnicas para expressá-las adequadamente e para auxiliar os interlocutores a fazê-lo.

Há um imenso campo de possibilidades no Direito para o uso da CNV, resta saber se o apelo à retórica violenta, vinculada a um modelo mental fortemente reforçado nos espaços forenses, pode ceder espaço a uma espécie de comunicação que tem a compaixão como grande pressuposto.

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