Presença de Evandro

5 de fevereiro de 2003

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“Somente uma vida a serviço dos demais vale a pena ser vivida”.
Einstein

Como disse Victor Hugo a respeito de Voltaire, Evandro Lins e Silva morreu imortal. Duplamente imortal,  não só no exercício da cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, mas também  imortal no  seio mais amplo do respeito e da admiração de toda a Nação, pranteado pelos mais representativos  expoentes do mundo jurídico, da cultura, da política e da administração pública. .

De Evandro Lins e Silva, dizer mais o quê? Depois de seu recente desaparecimento, parece que sobre ele tudo já foi dito. Engano! Evandro agora pertence à História de nosso País e ainda há muito o que se dizer dele, dessa fascinante e multifacetada personalidade, uma das poucas unanimidades da vida brasileira. Quero dar minha pequena contribuição pessoal ao perfil deste brasileiro notável.

Meus encontros com o ministro sempre foram em momentos inesperados, em solenidades, nas ruas, no Fórum, em aeroportos, sem agenda, sem hora marcada. Falávamos sempre que nos víamos, às vezes apenas brevemente, outras vezes em conversas mais longas. Em um vôo noturno em que ocupamos lugares contíguos, trocamos idéias, durante bom tempo, a respeito de Educação, tema muito caro a nós ambos e preferido de Evandro. Falei-lhe de meus dez anos como professor de literatura no colégio-piloto da Fundação Getúlio Vargas, em Nova Friburgo e refletimos juntos sobre a finalidade principal da educação, a de formar o homem e não somente instruí-lo para o mercado de trabalho. Foi com alegria que escutei o respeitado mestre avalizar e discorrer sobre a supremacia do Ser sobre o Ter, da relevância da formação sobre a informação na construção de cidadãos úteis para o desenvolvimento solidário da Nação. Nossas afinidades de pontos de vista aprofundaram nossas relações de afeto e nos  fizeram partilhar os sonhos de uma verdadeira revolução a partir da educação. A partir daí, em todos os nossos encontros a conversa fluía naturalmente para a educação, como instrumento para fazer crescer o homem de dentro para fora, um projeto sistêmico de pedagogia nacional: organizar a educação para organizar a Nação. “A própria Academia –disse-me ele, referindo-se à ABL – poderia ter um relevante papel nesta missão”.

Foi então que Evandro, certo dia, transbordante de emoção, revelou seu grande projeto de criar uma universidade – posteriormente concretizado – na qual a reflexão e o pensamento iriam desenvolver a consciência crítica do verdadeiro papel do ser humano em sua  comunidade.

Nos dias que se seguiram a sua morte, a lembrança de Evandro estranhamente se fez presente em vários momentos do meu quotidiano, em lembranças, leituras , em reuniões de trabalho, em conversas comuns. Evandro se ligava a várias circunstâncias ocasionais: Por exemplo, ao ver listados os múltiplos títulos, cargos, missões, condecorações de Evandro, lembrei-me das palavras de Aristóteles: “Dignidade não consiste em possuir honrarias, mas em merecê-las”. E ainda, do mesmo filósofo : “Ser um homem bom e um bom cidadão não é sempre a mesma coisa”. Nosso velho mestre  logrou ser ambas as coisas. E quando o mencionado filósofo define :”A lei é a razão livre da paixão”, quase tive certeza de que Aristóteles estava pensando em alguém como Evandro quando escreveu estas palavras.

Foi notória a aversão de Evandro  pelas ditaduras e sua conseqüente cassação do cargo de  ministro do Supremo, pelo movimento militar  de 64. Lembrei-me então de George Orwell: “Uma situação trágica é precisamente quando o homem é mais nobre que as forças que o destroem”. Uma luva perfeita para Evandro!

Advogado brilhante, Evandro disse um dia em entrevista: “Tudo o que fui, devo à tribuna do júri popular”. Não pude deixar de observar a declaração de Aneurin Bevan, líder trabalhista  britânico: “A primeira função de um líder político é a advocacia”. Em outro momento, Evandro declarou: “Minha vida foi uma sucessão de acasos felizes”. De acordo com o genial Goethe : “O homem que nasceu com um talento que estava destinado a usar, encontra sua maior felicidade em usá-lo”.

Evandro, na véspera de sua morte, foi nomeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para o Conselho de República. Tivesse falecido poucas horas antes, não teria recebido em sua vida mais esta honraria. Não que já não as tivesse de sobra. Contudo, a própria morte não ousou levá-lo antes dessa homenagem derradeira. É que, como disse La Fontaine, “A morte nunca pega o homem sábio de surpresa”.

Por fim, meditei o quanto deve ser consolador, para si e para a família, morrer-se em circunstâncias de uma vida como a de Evandro. E deixei fluir em minha lembrança as palavras de Eurípedes, no distante século V  a . C. : “Existe uma única coisa que suporta o impacto da vida através de toda a sua duração: a consciência tranqüila”.

Adeus, Evandro Lins e Silva. Se uma palavra houver que possa sintetizar uma vida tão honrosamente multifacetada, esta será talvez a palavra liberdade. Por isso, no desvelo da Eternidade tão merecida, ofereço ao eterno mestre e amigo  os doces versos de Cecília Meireles, que coroam sua trajetória de libertário convicto e apaixonado: Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda…