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Princípio da licitação x interesse público – Ponderação de acordo com a Constituição

5 de agosto de 2004

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Nas ciências jurídicas, ao contrário do que ocorre nas exatas, não existe verdade absoluta. Quando muito, a verdade possível é extraída de duas teses confli-tantes, de acordo com uma situação fática subjacente.

De fato, no Direito, a aplicação de normas jurídicas é, não raro, relativa. Até mesmo valores máximos como a vida e a liberdade cedem, às vezes, diante de situações excepcionais, como o aborto necessário ou o resultante de estupro (art. 128 do Código Penal).

Fala-se muito, por isso, em ponderação de interesses, filtragem constitucional, interpretação conforme a Constituição e critérios de antinomias, de conflito de regras e colisão de princípios.

Até aí nenhuma novidade. Tudo pode ser lido na obra de Dworkin, de Harvard, escrita há quase três décadas. Como também de Alexy, Canotilho, Bobbio etc.

O que me leva a suscitar esse tema é que, recentemente, uma questão tem sido muito debatida no  Rio de Janeiro e que, certamente, levará a uma conclusão, em breve, pelo Supremo Tribunal Federal.

Refiro-me a validade das permissões de serviços públicos de transporte coletivo anteriores à 1988. As antigas permissões, outorgadas por prazo inde-terminado antes da promulgação da Constituição, que, após mais de 15 anos, estão sendo agora questionados pelo Ministério Público estadual, pelo fato de haverem sido “prorrogadas” sem prévia licitação.

Em que pese o respeito a essa prestigiada instituição, que, sem dúvida, marca positivamente com sua atuação o cenário jurídico nos últimos anos, creio que há, nesse caso, uma certa dose de mitificação e uma carga política que acaba por ofuscar a realidade e, por conseqüência, a correta aplicação do Direito.

É que, sob o suposto manto do “interesse público” e em nome do princípio da licitação, pretende o MP desconstituir mais de uma centena de relações jurídicas (constituídas após a promulgação da Lei Estadual 2.831/97), representadas pelas mais de cem permissões de serviços de transporte coletivo intermunicipais do Estado do Rio de Janeiro.

O problema está, não na aplicação do princípio em si, mas no entendimento de sua própria extensão e finalidade.

Isto porque o Parquet estadual tomou, como premissa, que o princípio da licitação é uma verdade absoluta, o que nos remete de volta à década de 70 e a discussão de Dworkin sobre a aplicação de princípios diante dos chamados “hard cases”.

Ora, no Direito nada é absoluto, nem valores nem tampouco princípios e regras, quando mostram-se inadequa-dos para realizar os valores explícitos ou implícitos na Constituição.

Como se sabe, os princípios, na escala da concretização do direito, representam o “primeiro estágio” de concreti-zação dos valores jurídicos a que se vinculam, e, diferen-temente das normas jurídicas, apresentam ainda um grau elevado de abstração e indeterminação.

Na feliz síntese do Prof. Diogo de Figueiredo, são os princípios “abstrações de segundo grau”, “normas de normas” (em que se buscam exprimir proposi-ções comuns a um deter-minado sistema de leis), que possuem, como prin-cipal característica, a “funcionalidade”, na medida em que se prestam a infor-mar o sistema e a interpretação constitucio-nal, orientando a aplicação de normas e preceitos.

Ao contrário das regras, os princípios são dotados de uma dimensão de peso e comportam uma série indefinida de aplicações, sendo certo que podem sinalizar soluções diametralmente opostas para determinados casos concretos, sem que tal fato denote qualquer inconsistência sistêmica na ordem jurídica.

Daí porque o princípio da licitação é, ontologicamente, relativo. Tanto é assim que os arts. 24 e 25 da Lei 8.666/93 dispensam e afastam a sua aplicação em mais de duas dezenas de situações.

No caso, a exemplo do que ocorreu no âmbito da União (com as concessões de energia elétrica e telefonia), a Lei Estadual 2.831/97, questionada pelo Parquet Estadual, “prorrogou” por 15 anos as permissões outorgadas antes da Carta de 1988. Como não houve, na época, prévia licitação, sustenta o MP que tais permissões são inconstitucionais e, portanto, nulas, por violarem os princípios do certame público e, consequentemente, o da moralidade e o da igualdade.

Sucede, todavia, que essa questão de validade e inconstitucionalidade, apesar de aparentar mera antinomia com uma norma-princípio constitucional (art. 175 da Constituição), demanda, in casu, a análise da própria rationale desse princípio, qual seja, o interesse público.

Com efeito, a razão de ser do princípio da licitação está relacionada com a realização dos princípios da moralidade administrativa e do tratamento isonômico dos eventuais contratantes com o Poder Público. Em outras palavras, o princípio da licitação é mero instrumento (i.e, princípio instrumental) que visa a atender ao interesse público (este sim princípio substancial), consubstanciado na proposta mais vantajosa para a Administração Pública.

Verifica-se, assim, que a licitação só existe, enquanto princípio constitucional, apenas para e quando atender ao interesse público.

Pois bem. Na hipótese vertente, apesar de não haverem sido realizados certames licitatórios, o interesse público foi, na prática, certamente atingido.

E isto porque o legislador fluminense precisava regular situações transitórias (antigas permissões), relações jurídicas que foram atingidas tanto pela nova Constituição da República (que passou a exigir licitação prévia para a outorga de novas permissões de serviços públicos), quanto pelo advento do art. 40 da Lei 8.987/95 (que impôs a sua formalização através de contratos administrativos, com prazos determinados).

A partir daí, o Estado do Rio de Janeiro, assim como os demais Entes da Federação, ficou diante de um dilema quando foi editada a Lei 2. 831/97: ou considerava todas as antigas permissões extintas e determinava a realização de licitação de todas as linhas intermunicipais (sujeitando-se à diversas ações judiciais, por parte das permissionárias, que haviam realizado investimentos não amortizados); ou, por outro lado, mantinha aquelas permissões (preexistentes à Carta de 1988, cuja outorga prescindia de licitação) e fixava-lhes um prazo, de modo que houvesse resgate das aplicações empreendidas naquelas delegações.

Como a substituição “pura e simples” das antigas permis-sionárias por “novas” não consistia um indicador seguro de que haveria melhora em tais serviços e a licitação abrupta de todas as ligações intermunicipais (quase 1.100) tenderia a prejudicar (ao contrário de aprimorar) o serviço adequado a que alude o art. 7° da mesma lei, o legislador estadual optou pela segunda alternativa. Até mesmo porque impediria o ajuizamento de ações de indenizações, que seriam suportadas, em última instância, pelos contribuintes estaduais e pelos usuários de tais serviços.

Por tal razão, o interesse público estava, no caso, não em se licitar, pois esse procedimento importaria no alijamento imediato das então permissionárias de transporte e, consequen-temente, na necessidade de reparação, pelo Poder Público, de imensas indenizações.

Muito ao contrário, a hipótese “mais vantajosa” para o Poder Público estadual era manter as antigas permissões (de prazo indeterminado) e fixar-lhes um prazo para que os investimentos realizados até aquela data fossem devidamente amortizados. Prazo esse que foi fixado em 15 anos, levando-se em conta o paradigma estabelecido pela União Federal (Decretos 934/94 e 2.251/97), e os vultosos investimentos exigidos na sua operação.

Note-se, aí, que a simples realização da licitação, por si só, não atenderia ao interesse público, porquanto não era, como não é, um fim em si mesma.

Entretanto, mesmo que fosse absoluto esse princípio (admitido tão-somente para efeito do debate), forçoso é reconhecer-se que não se estava diante de “nova” delegação, mas da mesma e anterior permissão outorgada antes de 1988, que foi apenas mantida por um prazo razoável.

Portanto e ao contrário do que supõe o MP, é a antiga permissão (e não uma nova) que subsistiu, porém, com um prazo determinado. Não houve “prorrogação” propriamente dita dos prazos daquelas antigas permissões, porque tais permissões não possuíam prazo, i.e, vigoravam por prazo indeterminado, enquanto bem servissem aos respectivos Poderes Permitentes (daí não ser possível prorrogar um prazo que não existia).

O que houve, de fato, foi mera fixação de um prazo, prazo este que passou a ser exigido após o advento da Lei 8.987/95 (a chamada Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos).

Verifica-se, assim, que o Estado do Rio de Janeiro agiu corretamente e o fez no exercício de competência constitucional preconizada no art. 25 da Carta Magna, a fim de organizar os seus serviços de transporte, de caráter essencial.

Em verdade, cada Ente federativo legisla acerca de suas peculiaridades (conforme preceitua a norma geral contida no parágrafo único, do  art. 1º da Lei nº 8.987/95), tornando, pois, extreme de qualquer incerteza a competência deste Estado para legislar sobre o tema “manutenção e prorrogação de permissões preexistentes à Lei das Concessões e Permissões”.

Choca o espírito, por isso, a tese defendida pelo Parquet estadual de que se deveria promover a transferência da execução das linhas mediante licitação prévia, para que, ungidas por esse procedimento, pudessem ser consideradas como “legítimas”. Isto porque observou-se, na outorga das permissões mantidas, o princípio do tempus regit actum, segundo o qual a lei vigente ao tempo em que foi praticado o ato é a que irá reger e fundamentar toda a sua existência, enquanto produzir efeitos e possuir eficácia.

Ora, como não se exigia antes da Constituição de 1988 licitação prévia para suas outorgas, nenhum óbice existe, por esse fato, para que continuem a produzir efeitos as mesmas permissões, que continuam a existir e são eficazes.

A impressão que fica é que talvez, por preconceito e ideologia, se questiona atualmente a manutenção e pror-rogação dessas permissões.

No primeiro caso, é preciso acabar-se com a discriminação contra esse setor econômico, que não é pior ou melhor do que qualquer outro. Possui defeitos e virtudes, embora sempre atue e se desenvolva sem qualquer ajuda ou subsídio, o que deveria ocorrer, por se tratar de transporte de massa.

Chega, inclusive, a ser contraditório tal questionamento, porquanto condena-se a manutenção das permissões preexistentes de transporte por ônibus, mas aplaude-se o setor aéreo, que dispõe de regra própria sobre licitação (ex vi o art. 122 da Lei 8.666/93).

No segundo, é necessário superar-se esse aspecto político, uma vez que os transportes coletivos por ônibus não são de “esquerda” ou nem tampouco de “direita”, pois atende a todos, qualquer que seja a sua ideologia, o que na verdade materializa o interesse público em qualquer matiz.

Portanto, foi na esteira desse raciocínio, considerando o interesse público na manutenção das permissões impugnadas e ponderando-o com o princípio da licitação, que se pror-rogaram tais permissões.

Conclui-se, assim, que não se atentou contra princípios éticos nem muito menos constitucionais, eis que a pauta jurídica que se impunha indicava a direção da manutenção e prorrogação das permissões preexistentes à Constituição de 1988 e à Lei 8.987/95, razão pela qual a ausência de licitação é plenamente justificável, porquanto constituiu-se, in casu, na melhor forma de se atender o interesse público.